A degradação da democracia brasileira e a
existência do governo Temer não são fruto acidental da conjuntura política, dos
muitos erros do PT e do governo Dilma, da mera vontade moralizadora da Lava
Jato, da parcialidade manipuladora de setores da grande mídia, da permanente
disposição do assalto ao botim por parte do PMDB e dos partidos do centrão, do
inconformismo golpista de Aécio Neves e do PSDB em face da derrota eleitoral.
Sim, todos esses fatores contribuíram para degradar a democracia e viabilizar o
governo Temer.
Mas ele é expressão de algo mais profundo,
de um mal entranhado na genética política, social e moral da sociedade
brasileira, de uma vocação criminosa, de uma vontade de morte. Algo que dormita
sobre as cinzas de um passado escravocrata e criminoso e que emerge de tempos
em tempos com toda a sua virulência trágica que degrada e degrada, sem
sublimar, sem produzir uma força de transcendência desta realidade mutilada de
sentido histórico e de força e virtude morais.
A qualidade da política e dos políticos
brasileiros é da pior espécie. Os motivos são vários, mas alguns são cardeais:
herança do patrimonialismo orientado para a privatização do poder público;
prevalência dos interesses de grupos econômicos e do particularismo dos
interesses partidários postos acima do bem comum e da perspectiva
universalizante do Estado; ausência de uma cultura política elevada de debate e
formulação de ideias e programas; ausência de uma cultura republicana; visão
instrumentalista da moralidade pública e ausência de efetiva prática moral
orientada para os fins éticos da coisa pública.
Os políticos não são possuidores e não
cultuam as virtudes republicanas da prudência, da simplicidade, da frugalidade
e da humildade. Ao assumirem posições de poder – seja num partido ou no Estado –
se tornam pequenos tiranos. Tornam-se fascinados pelo brilho do poder e deixam
as causas em segundo plano. Aliás, manejam as causas de forma instrumental para
alimentar a vaidade. Terminam querendo o poder pelo poder e subordinam os fins
aos meios.
Atavismo
e vontade de morte
Esse atavismo social, político e cultural
criminoso, antissocial, anti-povo, com sua existência recorrente e com
frequentes surtos eruptivos, aprisiona o país à desigualdade, à violência e a
incultura. Mantém o Brasil dentre os países mais violentos do mundo, mais
violento que as guerras e somente quando a erupção despadronizada da morte se
evidencia a sociedade percebe a dimensão dos massacres. Mas no dia-a-dia são
massacrados índios, jovens negros, mulheres, trabalhadores, camponeses num país
que tem como pedras fundamentais o sangue e a violência, a escravidão prolongada,
a injustiça e a desigualdade sistêmica. Esse atavismo se evidencia no
apoio que teve o agente da chacina de Campinas, em manifestações nas redes
sociais, no desejo de que novos massacres ocorram nos presídios, na
desumanização tornada um elemento da opinião pública, nos campos de
concentração que são as nossas cadeias, na transformação da política em
atividade criminosa.
Esse atavismo criminoso distorce a moral
mesmo daqueles que defendem um país mais justo. Na velha prática da
subordinação dos fins aos meios e da transformação dos meios em fins, aceitam
práticas criminosas contra a res publica em nome de que todos os partidos as
praticam, aceitam que campões nacionais sejam erguidos com o suor dos
trabalhadores e com o assalto aos cofres públicos. O atavismo criminoso
entorpeceu ou apodreceu até mesmo a consciência dos "bons" e dos
"justos".
O país não precisa viver uma condenação
eterna a este atavismo. Mas para libertar-se dele será preciso que surjam
líderes com novas qualidades e novas virtudes, partidos que sejam capazes de
amalgamar uma nova vontade coletiva, práticas efetivamente democráticas e
republicanas. É preciso extrair as duras lições do passado, rever o nosso
presente e repensar o futuro com novas visões e concepções. Muito do que foi e
é a nossa política precisa receber a extrema unção para ser enterrado, sem
esperança de salvação, pois não há o que ser salvo.
O
colapso moral do país
Mesmo que hoje o governo Temer seja
rejeitado pela imensa maioria da população, o fato é que essa maioria o aceitou
como uma solução de conveniência. Esse governo não tem apenas os requisitos de
legitimidade para existir, mas não tem também os requisitos morais. O
ex-Secretário Nacional da Juventude, Bruno Julio, é a expressão moral desse
governo. Trata-se de um agressor de mulheres e um defensor de massacres. Isto
não pode ser individualizado, mas é uma expressão do que esse governo
representa.
Qual é o significado ou o papel de um
Secretário Nacional de Juventude? Ele deve ser a manifestação do que se quer
para o futuro, do que se exige dos novos líderes, do que se vislumbra para o
amanhã, o exemplo para a juventude brasileira. Quem Temer escolheu como expressão
simbólica desse futuro? Exatamente um agressor de mulheres, um defensor
de massacres, um catecúmeno do mal, um noviço da degradação moral. Mais do
que em qualquer outro lugar e pela sua relevância simbólica, a ocupação dessa
Secretaria por tal tipo, expressa, de agressiva, o triunfo da razão criminosa.
Que governo é esse que manteve até ontem
sob seu auspícios tal infame representação do futuro? Que governo é esse que
mantém como seu articulador político principal um criminoso ambiental, um
acusado de grilagem, um condenado em juízo que não paga a dívida da condenação?
Que governo é esse cujo ministro da Justiça mente publicamente acerca de um
pedido de ajuda do Estado de Roraima para evitar a violência nas prisões?
E que governo é esse cujo presidente
demora três dias para se manifestar acerca de um brutal massacre e ainda
o classifica como acidente? Acidente, senhor Temer, é algo que acontece por
acaso, por imprevisto, é algo fortuito. Ali não foi acidente, foi um massacre
eruptivo, somado a massacres menores que vêm se prolongando ao longo dos anos.
Alguém que se pretende condutor de uma nação não tem o direito de se comportar
de forma leviana como se comportou Temer.
Neste país dilacerado, desigual, com
milhões de desempregados, violento, corroído e corrompido, cada vez mais
dominado pelo crime organizado, com a juventude da periferia sendo recrutada
pelo narcotráfico a sociedade está à procura de um amálgama moral, de um
conforto espiritual, de uma esperança material. Mas o que se encontra são consciências
embotadas, líderes embotados, partidos degradados, palavras estéreis, discursos
vazios. O que se vê é um governo que é a expressão do triunfo da razão
criminosa, que dá vazão a violências e massacres, que investe com vigor contra
a segurança social dos cidadãos e contra os seus direitos.
O que se vê são os representantes do povo
agindo contra o povo. O que se vê é um Judiciário que aceita a violação
da Constituição e que condena à degradação e à morte centenas e milhares de
presos. Prendem ladrões de salames e de galinhas, mas não prendem
sonegadores e outros altos criminosos. O que se vê é uma oposição pálida,
impotente, quando não conivente com isto que está aí. O que se vê é um país que
aumenta a verba para a construção de presídios onde se formam os criminosos e
reduz os recursos da saúde e da educação. É preciso até mesmo colocar em dúvida
se temos capacidades de nos livrar desse atavismo social e cultural perverso e
de construir uma perspectiva mais promissora para o futuro.
Aldo Fornazieri - Professor da
Escola de Sociologia e Política.
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