A partir do segundo trimestre de 2009, o comércio mundial começou a emergir (+ 0,5%) do mergulho profundo em que se lançou entre o 4º trimestre de 2008 (-7,8%) e o 1º trimestre de 2009 (-10,7%). Essa modesta estabilização do comércio mundial foi promovida, sobretudo, pelas importações dos países asiáticos que cresceram 7,2% no período enquanto as importações dos países desenvolvidos continuaram a se contrair.
Estudos sobre a evolução do comércio mostram que o plano anticíclico de US$ 580 bilhões (cerca de 12% do PIB) colocado em prática pelo governo chinês impulsionou a demanda doméstica e teve impacto importante nas economias vizinhas. Coreia e Cingapura elevaram as despesas públicas em infraestrutura e estimularam a expansão do crédito. Os efeitos benéficos da estratégia chinesa destinada a enfrentar a crise não pouparam os exportadores de commodities, felizes beneficiários da recuperação dos preços e volumes dos bens destinados ao comércio exterior.
Apesar dessas ações virtuosas, um dos temas do momento é a resistência da China diante das sugestões ou das súplicas para que deixe o yuan flutuar. São cada vez mais frequentes as queixas dos que se julgam prejudicados pela agressiva “invasão chinesa” nos mercados de manufaturas. Não são poucos os países que apontam a “resistência cambial” dos asiáticos como o maior obstáculo à almejada correção dos desequilíbrios de balanço de pagamentos que afligem gregos e troianos no jogo da economia global.
O Tesouro americano ameaça colocar a etiqueta de “manipulador da moeda”, no Império do Meio, ainda que uma fração importante do superávit comercial chinês tenha origem nas exportações das empresas americanas para os Estados Unidos. Seja como for, muitos países estão incomodados com teimosia dos asiáticos que não parecem dispostos a abandonar as políticas de subvalorização de sua moeda.
Os chineses, todos sabem, seguiram a cartilha de seus antecessores asiáticos na busca da industrialização rápida e da graduação tecnológica. Adotaram políticas agressivas de comércio exterior com o objetivo de sustentar estratégias de crescimento acelerado. A busca de saldos comerciais expressivos, com rápido crescimento das exportações, tem o propósito de permitir taxas de acumulação de capital elevadas, acompanhadas forte expansão do crédito e do investimento domésticos.
Nos países asiáticos e, com menor intensidade, na China, o aumento da participação das exportações de manufaturas foi acompanhado por um aumento correspondente na geração do valor agregado manufatureiro mundial. Isso tem uma implicação importante: o valor das exportações se elevou com a maior integração da economia ao comércio internacional e induziu o crescimento da renda interna. Nesse caso, pode-se concluir que houve um “adensamento” das cadeias produtivas domésticas que permitiram a apropriação do aumento das exportações pelo circuito interno de geração de renda e de emprego.
Essas políticas são desdenhosamente chamadas de neomercantilistas porquanto colocam ênfase na obtenção de um saldo comercial favorável e na acumulação de reservas. Na visão contemporânea, tais práticas afetam negativamente o comércio internacional, na medida em que perpetuam desequilíbrios nos balanços de pagamentos de outros países e subtraem liquidez às transações globais.
Em um mundo em que são fortes as assimetrias de poder econômico e financeiro entre as nações, as práticas neomercantilistas permitiram o avanço tecnológico e produtivo das economias em desenvolvimento. Apoiadas em políticas de crédito generosas, as estratégias neomercantilistas alentaram a rápida expansão do investimento industrial e, no caso da China, financiaram a expansão da infraestrutura. A acumulação de reservas elevadas – capturadas por meio dos saldos comerciais – garante o atendimento da demanda por liquidez em moeda forte e assegura a estabilidade da taxa de câmbio.
A revista “The Economist” diz que, depois da crise cambial e financeira de 1997, é compreensível que os países asiáticos desejem manter reservas elevadas para defender suas moedas de futuros ataques. Mas afirma, corretamente, que as operações de esterilização – mediante a colocação de títulos públicos para absorver o “excesso” de liquidez gerado pela formação de reservas – vão se tornando cada vez mais onerosas.
Muitos países da região, inclusive a China, estão estimulando empresas e famílias a adquirir ativos no exterior, como formas de evitar os efeitos monetários da expansão das reservas. Desde 2000, algumas economias asiáticas tornaram-se – no fluxo anual de capitais – credoras líquidas, ajudando a financiar os déficits do balanço em conta corrente dos Estados Unidos.
A economia mundial, depois do forte deslocamento do capital produtivo das últimas décadas, está com capacidade excedente em quase todos os setores. A recessão desencadeada pela crise financeira iniciada em 2007 agravou o problema da capacidade sobrante e são ainda tênues os sinais de recuperação da demanda para os setores mais atingidos. Uma fração importante da nova capacidade criada pelos dois últimos ciclos de expansão está localizada na Ásia. Essa circunstância vai tornar ainda mais acirrada a luta pela conquista de mercados e mais difícil o ajustamento da conta corrente nos países deficitários, particularmente o dos Estados Unidos.
O realinhamento entre o dólar e o yuan, segundo os otimistas, promoveria a ativação das fontes de crescimento domésticas na China e, consequentemente, a moderação da estratégia exportadora chinesa, compensada por um reequilíbrio da conta corrente americana. Mas, os advogados da valorização imediata do yuan (e, consequentemente, da desvalorização do dólar) parecem ignorar as dificuldades da transição de uma economia “exportadora de manufaturas” para uma economia apoiada na expansão da demanda doméstica. As lideranças chinesas sabem que a mudança, se ocorrer, será lenta, gradual e segura.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
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