A sociedade brasileira não pode se iludir. Crimes como o assassinato de estudantes na escola Tasso de Silveira no bairro do Realengo, no Rio de Janeiro, podem acontecer de novo. A opinião é do ex-secretário nacional de Segurança Pública, o antropólogo Luiz Eduardo Soares. Para ele, apesar de não ser previsível e controlável, a tragédia poderia ter sido evitada "se não houvesse essa imensa negligência com a questão da arma no Brasil".
Nesta entrevista ao Poder Online, Soares, que também foi coordenador de segurança do Estado do Rio de Janeiro (de 1999 a 2000), defende que o governo crie todas as todas as dificuldades possíveis para que as armas não cheguem até os cidadãos. Inclusive aos cidadãos de bem. "É uma ilusão achar que o indivíduo não profissional pode recorrer às armas para se defender."
Poder Online – O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmou que a tragédia de Realengo reforça a necessidade de ações mais enérgicas do governo contra o uso das armas e anunciou que uma nova campanha pelo desarmamento começa em junho. Como o senhor vê essa decisão?
Luiz Eduardo Soares - É muito importante, sábia, madura e no caminho correto. Não temos nenhuma alternativa agora senão procurar evitar que as loucuras e transtornos individuais se armem. Não podemos impedir que os seres humanos vivenciem situações que lhes conduzam a extremos como o que testemunhamos. Em alguns casos é até possível, mas há casos – como este – que são absolutamente incontroláveis e imprevisíveis. Não há como blindarmos e protegermos todas as escolas e crianças, infelizmente. No entanto, nós podemos, sim, impedir que essas perversões individuais se armem. Essa é a nossa responsabilidade. Sabemos há muitos e muitos anos que a disponibilidade de armas é um dos fatores preponderantes que condicionam os níveis elevadíssimos de homicídios dolosos no Brasil. Sabemos que a melhor forma, portanto, de reduzir os homicídios e controlar essa dinâmica trágica é criar todas as dificuldades possíveis para que as armas não cheguem até os cidadãos.
Poder Online - E os que justificam que compram as armas para se defender?
Luiz Eduardo Soares - A regra também é para os cidadãos de bem, que muitas vezes acabam recorrendo às armas, mas que em um determinado momento, ao invés de ser um instrumento de proteção, se converte num acervo de destruição. É uma ilusão achar que o indivíduo não profissional pode recorrer às armas para se defender. Esses são exceção. As estatísticas apontam o contrário: mesmo entre cidadãos de bem as armas não ajudam. Elas aumentam as chances de acidentes, aumentam as chances de homicídios, fazem com que a violência doméstica se converta em tragédia letal. Por todas as razões do mundo, as armas devem ser controladas. Temos hoje no Brasil cerca de 16 milhões de armas na sociedade. Sendo que metade delas é ilegal. Estão circulando ilegalmente e as instituições públicas não têm sido capaz de controlar essa disseminação. É preciso uma atitude muito mais rigorosa por parte das autoridades políticas.
Poder Online - A decisão do governo de lançar a campanha de desarmamento no meio da tragédia foi uma forma de dar uma resposta à sociedade?
Luiz Eduardo Soares - Claro que sim. A sociedade esperava do governo algum pronunciamento, alguma resposta, algum tipo de iniciativa que sugerisse uma reação. Não se pode simplesmente contemplar a tragédia de braços cruzados. Ela, infelizmente, já aconteceu. Mas o dever dos governantes é examinar a situação, analisar o quadro e encontrar uma maneira de agir para que casos futuros, se não forem impedidos, sejam pelo menos reduzidos em probabilidade. Sabemos que o único vertente, neste caso, passível de controle por parte do poder público é o acesso às armas. Isso tem a ver não só com essas loucuras perversas que podem se disseminar no Brasil, como também com a própria dinâmica usual da segurança pública.
Poder Online - O senhor acredita que a tragédia de Realengo tem a ver com o resultado do referendo de 2005, quando mais de 60% votou contra a proibição do comércio de armas de fogo e munição no Brasil?
Luiz Eduardo Soares - Não é que tem a ver com o referendo. O Brasil avançou bastante nessa área de controle de armas porque se constituiu uma consciência a respeito disso na sociedade. Vou lhe dar um exemplo bastante prático: em 1999, quando estive no governo do Rio com responsabilidade na área da segurança, liderei uma campanha pelo desarmamento e propus, com colegas da equipe e com interlocutores na sociedade civil e também no governo, uma pesquisa a respeito das armas no Rio de Janeiro. Tínhamos 350 mil armas que estavam sob a cautela do Estado, armazenadas em um depósito especialmente construído para isso na Polícia Civil. Fizemos a pesquisa e chegamos a uma conclusão que a imensa maioria, cerca de 85% dessas armas que tinham sido recolhidas, era constituída por pistolas e revólveres. Ou seja, identificamos, portanto, que eram as armas leves e nacionais que estavam alimentado a criminalidade. Essas primeiras informações punham por terra os mitos de que os problemas eram armas importadas, contrabandeadas e longas. Além disso, fizemos também um apelo ao Exército, responsável pelas armas do país, que nos apresentasse a lista com os nomes dos proprietários das armas que tinham seus números identificados. Queríamos saber quem as tinham comprado. Para a nossa perplexidade, 90% dos proprietários daquelas armas que caíram nas mãos dos criminosos eram pessoas inexistentes, eram identidades falsas. O que significa que as informações oficiais brasileiras eram informações falsificadas já na base da comercialização. E elas não estavam sendo checadas e verificadas. Era como se não estivéssemos em meio a uma imensa tragédia na segurança pública. A tragédia estava sendo tratada com negligência, não estava tendo a atenção necessária na fiscalização.
Poder Online - É possível afirmar que houve avanços desde então?
Luiz Eduardo Soares - Esse quadro aterrador de negligência e indiferença de todos os poderes – da Polícia Federal, do Exército, dos governos dos Estados e da própria sociedade – nos mostrou que estávamos nos tornando muito vulneráveis. E acho que houve um avanço muito grande desde esses primeiros esforços, que acabou se sintetizando e se expressando no referendo de 2005. Infelizmente, por uma série de questões, o referendo foi muito mal conduzido, as propostas de proibição ao comércio de armas foram mal apresentadas e não foram compreendidas adequadamente. Os lobbies das armas acabaram se aproveitando da crise política do governo, que não teve liderança política o suficiente - por falta de credibilidade – para apontar um caminho alternativo. E esse contexto muito particular fez com que nós sofrêssemos uma tremenda derrota. Mas, apesar dessa derrota, já tínhamos conseguido alguns avanços, inclusive na própria constituição do Estatuto do Desarmamento. E esses avanços, de acordo com vários pesquisadores, já foram suficientes para promover uma redução no número de homicídios.
Poder Online - Mas o fato de uma das armas usadas pelo atirador na tragédia de Realengo ter sido roubada há mais de dez anos e a facilidade para comprar munições não mostra que ainda há muito no que se avançar?
Luiz Eduardo Soares - No Brasil há ainda uma leniência e uma tolerância enorme com as práticas irresponsáveis e até criminosas na negociação no comércio das armas. A verdade é que qualquer um pode ter acesso a armas no Brasil porque há muita facilidade para transgredir as normas. Precisamos fazer com que as normas restritivas – que são insuficientes, mas são as que existem – sejam praticadas. Mas para isso é preciso que haja fiscalização. Temos de ver as instituições motivadas para o controle das armas. A Polícia Federal, por exemplo, se empenha em muitas investigações no plano empresarial e político contra a corrupção, mas qual foi a grande operação da Polícia Federal contra as armas ilegais? E nas secretarias de seguranças dos Estados, qual a importância que se atribui ao controle, à fiscalização e à retenção das armas ilegais? Isso tem que ser uma prioridade absoluta para as polícias.
Poder Online - Neste momento, especialistas de todas as áreas tentam buscar explicações para o que aconteceu na escola Tasso da Silveira, mas alguns admitem que a tragédia seja inexplicável. O senhor concorda?
Luiz Eduardo Soares - Sim. Nós, seres humanos, não suportamos o incompressível, o ininteligível, o enigmático, aquilo que trai as nossas expectativas. Nos sentimos muito angustiados quando estamos diante de algo que não conhecemos e que, por consequência, significa que não se pode controlar. Todas as explicações possíveis para um fato como esse são explicados a posteriori. Esse é um exercício que pode ser feito, mas é sempre, no máximo, capaz de mostrar que talvez haja alguma correlação entre a experiência existencial e a estrutura desequilibrada com o crime que ele praticou. Mas isso não nos dá de forma alguma conhecimento do ato e de suas causas. Porque esse é um ato que se dá em situações extremas e, por definição, imprevisível, que está na conta da liberdade da iniciativa humana. A liberdade, no caso, usada na forma perversa e destruidora.
Poder Online - Não há, então, como prever que casos semelhantes aconteçam daqui para frente no Brasil?
Luiz Eduardo Soares – Não há como nós concebermos uma fórmula capaz de explicar esse ato de tal maneira que pudéssemos prever a reprodução desse ato em situações futuras. E nós não conseguimos montar nenhuma operação que blinde e proteja as nossas crianças e a nós mesmos. Não há como, aqui, culpar governos, culpar políticas de segurança, políticas de saúde ou buscar grandes explicações. São esforços condenados ao fracasso. Ao encontrar culpados e possíveis explicações, nos sentimos mais seguros e um pouco mais apaziguados com o nosso sentimento de instabilidade interior. Mas é importante não nos iludir: fatos desse tipo podem acontecer de novo, infelizmente. E nós não seremos capazes de prevê-los, nem de controlá-los. O que podemos fazer é reduzir sua incidência apostando no controle de armas para que loucuras individuais não se armem e não produzam efeitos tão desastrosos – que não ocorreriam se não houvesse essa imensa negligência com a questão da arma no Brasil.
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