Em 30 de agosto de 2010, seis procuradores da República em São Paulo assinaram uma ação civil pública que pedia à Justiça Federal a condenação de três ex-agentes da ditadura militar acusados de tortura, abuso sexual, desaparecimento forçados e homicídios, em serviço e nas dependências de órgãos da União durante o regime militar (1964-1985).
O documento, de 59 páginas, era resultado de uma extensa compilação de relatos, retirados de investigações e documentos oficiais – como processos de auditorias militares, arquivos do Dops e livros, entre eles “Brasil: Nunca Mais” e “Direito à Memória e à Verdade” -, sobre as crueldades praticadas pelos policiais nos porões do Doi/Codi, os órgãos de repressão do regime.
Em junho de 2008, CartaCapital publicou a matéria “Impunes, por enquanto”. Nela, os repórteres Gilberto Nascimento e Rodrigo Martins conversaram com o delegado Dirceu Gravina, um dos réus da Ação Civil Pública do Ministério Público. Leia aqui a reportagem
Em um dos testemunhos contido na ação, uma militante chegou a relatar o dia em que, após tomar choques “nos ouvidos, na boca, nos tornozelos, nos seios, no ânus, na vagina”, caiu numa cama de campanha, quase desmaiada, e acordou sendo observada pelos filhos, de cinco e quatro anos, trazidos pelos torturadores para observá-la em seu estado. “Colocaram-me na cadeira do dragão, toda urinada e suja de vômito e me exibiram as crianças. Jamais esquecerei que Janaína (a filha) perguntou: mãe por que você está roxa e o pai, verde?”.
Com base nesses relatos, e nos reconhecimentos das vítimas dos autores de crimes como este, o Ministério Público Federal iniciou uma batalha na Justiça pedindo o afastamento imediato e a perda dos cargos e aposentadorias de três delegados da Polícia Civil paulista que, segundo a ação, participaram diretamente dos atos. Os procuradores pediam a responsabilização pessoal de Aparecido Laertes Calandra (codinome Capitão Ubirajara), David dos Santos Araújo (capitão Lisboa) e Dirceu Gravina (JC), os dois primeiros aposentados e o terceiro ainda na ativa, além da condenação a reparação por danos morais coletivos e restituição das indenizações pagas pela União. Eles foram reconhecidos por várias vítimas ou familiares em imagens de reportagens veiculadas em jornais, revistas e na televisão.
A ação, no entanto, foi rejeitada em março pela juíza Diana Brunstein, da 7ª Vara Federal Cível, que baseou-se na validade da Lei de Anistia para considerar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ainda não havia se pronunciado sobre o tema e, portanto, não caberia a ela decidir sobre o caso.
O Ministério Público Federal em São Paulo recorreu da decisão. Em maio, o órgão ingressou com embargos declaratórios – recurso interposto ao próprio juiz do caso – visando correção do que classificou como “erro de fato” e omissão da decisão judicial.
Leia aqui a Ação Civil Pública movida pelo MPF
O MPF considerou que a sentença continha “erro de fato”, pois foi proferida em março de 2011, partindo da ideia de que a Corte Interamericana de Direitos Humanos ainda não havia se pronunciado sobre o caso brasileiro de omissão quanto à responsabilização das violações aos direitos humanos perpetradas durante a ditadura militar.
Os procuradores lembraram que a decisão da Corte já havia sido proferida em novembro de 2010 e que o MPF havia juntado cópia aos autos por ocasião de sua réplica. O MPF espera agora que a sentença seja revista com base neste argumento. O recurso, mais uma vez, foi rejeitado pela juíza, segundo quem não cabe à Justiça Federal de primeira instância discutir questões de direito internacional.
“As decisões proferidas pela Corte Internacional de Direitos Humanos sujeitam-se às regras firmadas em tratado internacional, competindo aos Estados signatários as providências convencionais de seu cumprimento, operando-se aí mecanismos de Direito Internacional”, escreveu.
Diante da nova recusa, os procuradores anunciaram nesta segunda-feira 11 que encaminharam a apelação do caso ao Tribunal Regional Federal (TRF). Está, portanto, nas mãos dos desembargadores federais tomarem providência para que, conforme argumentam os procuradores, ao menos neste caso seja concluída a “transição à democracia e a consolidação do Estado de Direito”. “Certamente, dar um basta a essa intolerável inércia é de interesse de toda a coletividade”, aponta a procuradora Eugênia Augusta Gonzaga, autora da apelação.
Segundo ela, “os órgãos integrantes do sistema de Justiça brasileiro não podem recusar a sentença condenatória da Corte Interamericana sob a alegação de prevalência do direito constitucional interno, pois é este mesmo direito constitucional que vinculou o Estado à autoridade do tribunal internacional”.
A apelação também contesta a afirmação da juíza de que a Lei da Anistia afasta a tese da responsabilização civil por ato ilícito. “Na verdade ocorre exatamente o contrário. As responsabilidades civil, penal e disciplinar convivem de maneira independente no ordenamento jurídico pátrio”, aponta.
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