As bancadas que contam no Congresso Nacional são as do agronegócio, das empreiteiras, da mineração, dos bancos, da bola, da bala... Elas se aglutinam como partidos de fato, hegemonizam comissões em que haja matérias de seu interesse e não obedecem ao comando dos partidos formais
É costumeiro dizer que a existência do Parlamento chancela o caráter democrático do regime político. Nossa história, como a de muitos outros países, não confirma isso.
No Império, a partir de 1822, a Assembleia Geral reunia os “representantes do povo”. Mas os eleitos, a exemplo dos que chegavam às câmaras municipais, desde a Colônia, eram os “homens bons”. Machos, brancos, ricos nos padrões da época e... cristãos. A Monarquia parlamentarista brasileira chegou a revezar liberais e conservadores no ministério, auxiliando o sereníssimo e magnânimo D. Pedro II. O trono assentava-se na prosperidade de um “rei” que não era o Pelé, e sim o café. Aristocracia é rima, mas não solução para democracia. Os debates e discursos no Parlamento, entretanto, sempre reverberavam algumas questões candentes da sociedade, por mais elitista que ele fosse. O abolicionismo e a emancipação tardia, com a Lei Áurea, revelam isso.
Na República Velha, dos “coronéis”, dos “bacharéis” ou do “café com leite”, a dominação oligárquica também moldava o Congresso Nacional. Eram inexistentes os representantes dos camponeses – maioria dos que trabalhavam no país predominantemente rural – e da classe operária nascente. O voto de cabresto e os currais eleitorais impediam essa presença. As autoridades da República dita democrática jamais perguntavam, ao colocar em prática suas políticas, sobre os interesses do povo, sobre seus quereres. A plebe marginalizada só era percebida quando, confrontando a lei (do mais forte), se rebelava, dizendo por A mais B, com armas na mão e braveza no coração, que não aceitava mais tanto C de controle e coerção. Foi assim em Canudos, Contestado, Caldeirão, Chibata. E no cangaço.
A Revolução de 1930 (“Façamos a revolução antes que o povo a faça”, alertou Antonio Carlos, presidente da província de Minas Gerais) não alterou muito esse quadro de debilidade da representação. É verdade que já estavam na cena política brasileira novos atores, oriundos das mudanças socioeconômicas da urbanização. Em décadas anteriores já se organizavam sindicatos operários, de forte influência anarcossindicalista. Uma organização de esquerda, o Bloco Operário e Camponês, chegou a eleger alguns parlamentares no Rio de Janeiro, mas eles foram cassados antes de assumir os mandatos. A incorporação das massas ao processo político só ocorria em espasmos e graças ao seu próprio combate. O voto secreto do eleitor, instituído pela Constituição de 1934, reduzia um pouco o poder dos “coronéis”, mas não os destruía. Os analfabetos, dois terços da população, continuavam impedidos de votar. O “novo” da República brasileira seguia sendo a velha combinação de liberalismo (formal), autoritarismo (patriarcal) e elitismo (patrimonial).
O Estado Novo (1937-1945) dispensou as formalidades e os incômodos do Parlamento, inspirando-se no corporativismo dos regimes fascistas da Europa. Difundiu-se, pela propaganda e pela extrema centralização governamental, que uma elite intelectual de técnicos, militares e políticos “modernos” seria capaz de interpretar os “verdadeiros interesses nacionais e das classes populares”.
Os ares do final da Segunda Guerra Mundial chegaram ao Brasil, e nossa democracia liberal formal, recomposta, estabeleceu o pluripartidarismo e a garantia da expressão de correntes à esquerda, como o Partido Comunista (por breve tempo), o Socialista e o Trabalhista. Getúlio Vargas, que conduzira o país por quinze anos consecutivos e três distintas formas de governo (provisória, constitucional e unitária), já vislumbrava os novos caminhos: “Quando terminar a guerra, em ambiente próprio de paz e de ordem, com as garantias máximas à liberdade de opinião, reajustaremos a estrutura política da Nação, fazendo as necessárias consultas ao povo brasileiro”.
De uma ou de outra forma, quase sempre controláveis ou manipuláveis, o ente “povo brasileiro” ia adquirindo fisionomia e não podia mais ser ignorado. O chamamento “Trabalhadores do Brasil!” que Vargas fazia, nas comemorações do Primeiro de Maio, para anunciar “benesses” às “classes laboriosas” funcionava como anteparo à influência socialista e comunista entre os “de baixo”. Mas tanto os segmentos populistas quanto os mais ideológicos, defensores da auto-organização dos trabalhadores, iam conquistando espaço, inclusive nos legislativos. O golpe civil-militar de 1964, ao dissolver os treze partidos políticos de então e impor o bipartidarismo entre o “sim” (MDB) e o “sim, senhor” (Arena), empenhou-se em cassar parlamentares defensores das reformas de base. A ceifa foi grande, revelando que o Parlamento já não era tão irrelevante assim.
Após o “intervalo trevoso” da ditadura, chegamos à nossa etapa liberal-democrática atual, sob a égide da Carta Cidadã de 1988. Obtivemos inegáveis conquistas, com a capilarização da ideia de democracia como valor universal, tese do saudoso Carlos Nelson Coutinho. Mas é imperativo reconhecer que vivemos uma “democracia de baixa intensidade”, para usar a expressão de Boaventura Souza Santos. O clientelismo e os mandatos de negócios, que buscam sua reprodução por meio da “fidelização” do eleitorado paternalizado, dão o tom dissonante da democracia real. A participação popular nas decisões de âmbito municipal, estadual ou nacional, embora afixada como princípio constitucional, não é desejada nem estimulada. Os mecanismos desse ativismo são, em geral, esvaziados. Não se viabiliza a saudável combinação entre democracia direta, por meio dos conselhos e plebiscitos/referendos, e a expressão parlamentar. Os partidos ainda pretendem ter o monopólio da representação, apesar de seu escandaloso artificialismo: existiriam de fato 33 correntes de opinião e, consequentemente, de projetos de sociedade, manifestando a visão de distintos grupos e classes no Brasil? A verdade dessa degeneração partidária é que as siglas não correspondem às suas práticas: republicanos, social-democratas, socialistas, democratas, trabalhistas, comumente, não o são. Os nomes das legendas escondem sua real natureza: vínculos com os poderosos para reprodução de mandatos voltados para os bens particulares, e não para o bem comum.
Hoje, as bancadas que contam no Congresso Nacional são as do agronegócio, das empreiteiras, da mineração, dos bancos, da bola, da bala... Elas se aglutinam como partidos de fato, hegemonizam comissões em que haja matérias de seu interesse e não obedecem ao comando dos partidos formais. Não por acaso, 386 dos 513 deputados receberam financiamento de campanha desses segmentos, e apenas 1% só de pessoas físicas. O derrame do dinheiro das empresas torna as eleições cada vez mais previsíveis. Não foi por outra razão que a Câmara dos Deputados derrubou, em 16 de outubro, emenda para limitar os gastos de campanha e o Senado vetou, em 6 de novembro, a ampliação da prestação de contas, indo na contramão do “clamor das ruas”, que, cinicamente, diziam ouvir.
Apenas uma reforma política substantiva, que só o será com forte participação popular, poderá reduzir a influência do poder econômico na constituição dos executivos e dos legislativos, possibilitando que as maiorias sociais se tornem maiorias políticas. Sem mudança radical no sistema privado de financiamento de campanhas, na concepção e atuação dos partidos e na consciência do eleitor, que precisa se tornar um cidadão de tempo integral, continuaremos neste “museu de grandes novidades”. Vendo, como cantou profeticamente nosso Cazuza, “o presente repetir o passado”.
Chico Alencar é professor de História e deputado federal (Psol-RJ)
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