Há pouco menos de 4 horas para a virada do ano, arrisco-me a enfadá-los com angústias, sentimentos, desejos e votos para 2014, expressos de maneira pouco convencional, no que ambiciona ser, sobre o momento, uma breve reflexão.
Termina 2013, mas as vicissitudes da vida continuarão em 2014. Tristeza, alegria, dor, felicidade, perdas, conquistas, derrotas e vitórias, permanecerão eivando com suas intensidades, nossa trajetória neste “Jogo Social” que é o “necessário imperativo” de continuar a viver. Para muitos de nós, a despeito das agruras e dificuldades, 2014 será possivelmente, um ano melhor, onde concluiremos projetos e iniciaremos outros, tudo “mais ou menos” conforme o planejado. Mas, para outros, será um ano de “falta”. Falta de perspectiva; falta de sentido; falta das pessoas amadas...é a primeira virada de ano, para dar um exemplo trágico, que a família do pedreiro Amarildo, passará sem ele.
Numa desgraçada coincidência, o companheiro Amarildo foi seviciado, torturado e morto, pela genocida polícia do governo do Estado do Rio de Janeiro, no Brasil, em 14 de julho de 2013, exatamente 224 anos após, na França, os gritos de liberdade, igualdade e fraternidade terem propugnado ações revolucionárias, que consolidaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Direitos estes, que foram retirados de Amarildo, durante seu suplício. Essa desgraçada e quase imperceptível coincidência, apenas mostra como nenhuma conquista do processo histórico-emancipatório humano, é conservada por automatismo. Estarão sempre prontas a serem vilipendiadas por “humanos desumanos”. E não faltarão, como não faltaram até agora, interpretações e justificativas estúpidas, para o assassinato do companheiro. Das mais delirantes até as mais raivosas. “Mas dizem que ele tinha envolvimento com o tráfico...”, “ A polícia tem que passar o cerol nesses filhas da puta mesmo...”. Sobre o segundo tipo, só lamentar e combater, nada mais a comentar. Sobre o primeiro, é o pensamento reconfortante, que, mesmo pessoas boas, assumem para legitimar sua indiferença. Esquecem, que a suspeita ou comprovação de transgressão da lei, em nossa legislação, não autoriza ninguém a matar. Nem mesmo o Estado, detentor “natural” do monopólio da violência. Mesmo numa “lei” como essa. Burguesa. Pérfida. Suja. Hipócrita o suficiente para encobrir o quanto, e enquanto pode, o crime dos “Verdadeiros Facínoras”, que humilham e matam com canetadas. Cruel e implacável o suficiente para devassar a dignidade de um proletário. Mas, mesmo os mais imunes à insensibilidade e à indiferença, possam talvez dizer: “ Companheiro Amarildo?”. Ora, não se enganem! Se você vive do seu trabalho, Amarildo era seu companheiro, sim! Queira você, ou não. Goste disso, ou não. Mesmo que você tenha como referência, magnatas abutres e energúmenos, e os filhos destes, esses sim, verdadeiras “sementinhas do mal”, que com seu narcisismo cruel, e suas carretas, assassinam ciclistas “bêbados”.
Mas, espere um pouco... sobre o caso Amarildo, eu havia dito, exemplo trágico? “Trágico” nos imputa a ideia central de algo terrível, mas também, secundariamente, de algo “um tanto” raro. Certo? Infelizmente, para este tipo de tragédia, errado. O extermínio e o massacre em vida, de pobres e “despossuídos” é tragédia cada vez mais comum. Que o diga também a família do “Guri”, o estudante Douglas Rodrigues de 17 anos, que foi assassinado, na zona norte de São Paulo. Foi morto, sem nem saber o porque, e deixou uma cicatriz indelével no coração de uma mãe, para a próxima “inesquecível” passagem de ano, e para o resto da vida. E teve “idiota” preocupado com os ônibus queimados. Tenho um filho de 5 anos. Não consigo pensar em nada pior...
O mais desesperador é que esses dois companheiros são apenas uma pequeníssima parte desta tragédia cotidiana, que por mais bem intencionados e espirituosos que sejam os votos de ano novo, que inundam as comunicações cibernéticas nesse momento, não cessará em 2014. São emblemas. São representantes de um extrato social marginalizado, que não tem espaço no construto sociocultural do sistema contemporâneo, e que, na idealização utópica de mundo, das burguesias nacional e internacional, igualmente desprezíveis, deveria habitar na inexistência. Mendigos, pobres, negros, prostitutas, pivetes, desapareçam do mundo e deixe-nos viver a sós nossas vidas hedonistas e consumistas. São os desejos mais recônditos da virulenta burguesia. E para os mais corajosos e desavergonhados, nem são tão recônditos assim. “Para lá” caminham os que se intitulam “classe média”, contextualização que o “levezinho” Márcio Pochmann já desconstruiu brilhantemente. Estarão nos estádios, caso haja a copa do mundo, torcendo mais para que as forças repressoras garantam sua segurança, contra “ladrões”, “favelados” e “vândalos , do que para a própria seleção brasileira. Estarão lá, com alta pompa e sentimento de distinção, pois “podem mais” do que Amarildos e Douglas. Mas será que podem mesmo? Estarão de volta ao trabalho, na segunda-feira.
Um amigo meu que é de esquerda, e um lutador, me disse durante um debate: “Cara, o futebol é um ópio, e um ópio muito bom!” Ele está certo. Sou louco por futebol. Tanto que continuo acreditando, com inesgotável energia, no ser humano, no comunismo, e no Flamengo. Mas, não quero copa as expensas da dignidade humana. Só a impotência de uma família que é arrancada de sua casa, e vê um trator passar por cima de parte da sua história, da sua vida...só essa impotência pode traduzir um sentimento desse. São os Amarildos e Douglas que não foram assassinados, mas que estão sendo massacrados em vida. São os Cíceros assassinados na luta do MST contra a opressão latifundiária. São os índios que resistem no contexto urbano, na intrépida e valente Aldeia Maracanã. São os índios que resistem nas reservas, diante das novas demarcações desse governo mentiroso e nojento. São os bancários, que enfrentam os “riscos” da função e são solenemente substituídos por máquinas, que por sinal, não funcionam. São os carteiros, que andam dezenas de quilômetros por dia, durante 30 anos, e tem dificuldade de estabelecer nexo-causal, em doenças nos joelhos e nos pés. São os atendentes de telemarketing, que desenvolvem distúrbios psicóticos e comportamentais, em razão de sobrecarga do trabalho. Ameaçados pela alta rotatividade do setor e pelas baixas remunerações, são constrangidos a realizar horas-extras que incorrem em jornadas de até 16 horas, num trabalho isolado, repetitivo e enlouquecedor. São os caixas de supermercados, cuja natureza da função e a ganância dos pútridos patrões, motivaram uma inventiva e doentia “inovação” gerencial para a função, em uma rede de supermercados. A da utilização compulsória de fraldas geriátricas, para os caixas não se ausentarem para necessidades fisiológicas, e não “comprometerem” as vendas! São os eletricitários que são mortos pelo “invisível”, e estão sendo destruídos como categoria. São os petroleiros que, submetidos à forma mais predatória de produção, são assassinados às centenas, no ambiente de trabalho, nos últimos 20 anos, pra falar apenas de “números brasileiros”. São os professores, “função maior” da atividade laboral humana, perpetuadora do conhecimento inerente a todas as demais. Reprimidos nas suas reivindicações, são “valorizados” na medida contrária da sua importância. Com péssimas condições e salários de fome. São os motoristas de ônibus, mal remunerados, sobrecarregados, que cobram passagem, dão troco e dirigem. São os boias-frias, que tem sua saúde aniquilada pela obrigação de cortar em média, 12 toneladas diárias de cana, com remuneração inferior a R$ 3,00 por tonelada, desferindo cerca de 9.700 golpes de “podão”. O resultado óbvio é a diminuição drástica da expectativa de vida. E, é claro, nesse contexto, as crianças não escapam. São os escravos, “escondidos” das “fiscalizações” nas fazendas do “Brasil afora”, submetidos a todo tipo de maldade e exploração. São os “mendigos”, moradores de rua e “pedintes”, que excluídos desde sempre, não tem “planejamento de vida”. Sua aventura, sua odisseia, é garantir a próxima refeição. E de novo, as crianças...São os aposentados e pensionistas, abandonados e achatados, criminalizados por “sair da vida produtiva”, como se o tempo e a biologia não fossem os mandatórios nessa questão. São os presidiários, vítimas de “nossa” sanha reacionária, explicitado no raivoso jargão: “Bandido bom é bandido morto”, vociferado inclusive, por pessoas que se dizem de esquerda, e que se dizendo de esquerda, não tem posição definida sobre o esdrúxulo debate de redução da idade penal. Incrível! Alguns, enlouquecerão aqui...vítimas?!! E as vítimas deles? Digo-lhes com sobriedade e tristeza. Também são vítimas! Vítimas de vítimas bestializadas pelo sistema. Qualquer debate amplo, honesto e humano sobre a situação de apenados e seus crimes, tem de perpassar pelas condições as quais são submetidos, no cumprimento de suas penas. Seu “pagamento” à sociedade, não se dá só, com a privação da liberdade. Superpopulação e degradação são as regras. Aqueles 20 minutos entre Botafogo e a Central, no Metrô, onde não conseguimos nos mexer; Ou as 4 horas diárias, em ônibus e trânsitos caóticos, na ida e volta ao trabalho, dos trabalhadores residentes em periferias. Imaginem isso, 18 horas por dia, todos os dias, durantes os anos de cumprimento de pena. Seguem assim, comendo, urinando e defecando no mesmo lugar, estuprando e sendo estuprados, matando e morrendo, desumanizando e sendo desumanizados. Este é o cenário em vários complexos prisionais. Lá “caem”, desde o sociopata assassino em série, até o pai de família “ladrão” de frutas de uma quitanda. Esse “pretenso” sistema correcional, leva pra eles, “justiça” e “reabilitação”.
“Mendigos”, “Bandidos”, trabalhadores empregados e desempregados, refugiados de guerra, todos sofrem e conhecem bem as violências dos seus contextos específicos. Demissão, perseguição, assédio moral, assédio sexual, preconceitos de gênero, opção sexual e etnia, preconceito social, precarização, terceirização, violência física, violações, banimento, abandono, fome, miséria, degradação, dependência química, alcoolismo, insegurança crônica, etc...são em todos nós, as agressões cada vez mais “refinadas” e aprofundadas de um “sistema produtivo mundial” visceralmente opressor, perverso e brutal, que tem “fome de dinheiro e corpos”, e “sede de petróleo e sangue”. Todos somos os mesmos, entre os oprimidos, com os mesmos problemas, sangrando ante o “paradoxo do progresso” que ameaça a existência de toda a humanidade. Se não “existimos”, se nada somos, se nada podemos dizer, gritar, fazer, o que podemos então? Lutar, para tudo podermos!
E aí que faço meus votos para 2014, pensando em 2013...
Em 2013, vimos uma explosão de revoltas, reivindicações e manifestações que tomaram as ruas do país, surpreendendo a praticamente todos. Quem poderia prever os acontecimentos históricos recentes, de lutas por respeito, dignidade e direitos, que envolveram mais de 100 cidades brasileiras? E pensarmos que a faísca detonadora foi uma obviedade. A audácia do “Estado Empresarial” em aumentar o preço do transporte rodoviário, já, absurdamente caro, antes do aumento! Mas essa faísca só produziu o incêndio que vimos porque havia premido um enorme acúmulo potencial. Insatisfação, sofrimento, cansaço e desespero, produzidos pelas relações produtivas que mencionamos aqui, até agora. Neste sentido 2013 também foi um ano ímpar, o “Ano da Resposta”, e nada será novamente como antes. Mas nada é garantido nesse mundo louco, e o que será, dependerá do que decidirmos ser. Se solidários, altruístas, esperançosos, amorosos, críticos, obstinados e lutadores; ou acomodados, acríticos, subservientes, competitivos, indiferentes, egoístas, individualistas...
É por isso que, em 2014, não desejo paz a ninguém. A paz é um luxo num mundo de angústia e injustiça, e reservada para opressores, e oprimidos sem consciência. Dos opressores a roubaremos, mas não para tê-la. Ao invés de paz, desejo aos oprimidos do mundo, inquietação, desassossego e movimento, pois só isso pode motivar a crítica, a autocrítica e a consequente transformação. Não desejo sucesso e prosperidade a ninguém. Estes são “conceitos” apreendidos pela lógica destrutiva do capital, que tudo mensura e mercantiliza. Afinal o que é prosperidade e sucesso hoje, em nosso “mundinho”? Opulência e ostentação, encontro outros seres humanos comem lixo? Ser chefe na Petrobrás, ou em qualquer outra empresa? Desculpem-me os ansiosos por isso...não desejo pra ninguém!
Desejo Fé, por que a fé não costuma a falhar
Desejo Ação e Movimento, pois tudo dependerá disso
Desejo Esperança, pois as coisas não virão todas de uma vez
Desejo Força, por que definitivamente, a jornada da vida não é fácil
Desejo Previdência, pois além de toda turbulência esperada, ainda há o imprevisto
Desejo Saúde, para tudo vivermos e realizarmos
Desejo Solidariedade, ahhh essa palavra, qualidade tão escassa nas relações sociais
Desejo Amor, num mundo sem amor. Essa qualidade sublime, que move o verdadeiro revolucionário
Desejo Luta, a eterna luta
Dedicado aos amigos e familiares, e a todos os oprimidos do mundo, em especial aos irmãos de classe, que agora estão nas “ilhas metálicas”, longe de suas famílias, produzindo para a “Fascista Sanguinária” que nada respeita...
São meus votos para 2014...
Saudações fraternas, classistas e combativas
Francisco Tojeiro
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