segunda-feira, 31 de março de 2014

A ditadura militar no Brasil: a história em cima dos fatos – Caros Amigos / Lista de Livros

Do blog Lista de livros



Editora: Caros Amigos
ISBN: 978-85-86821-83-7
Páginas: 390
Opinião: bom



      “Ao contrário do que, honesta e sinceramente, acreditaram muitos dos que participaram ativa ou passivamente do golpe de 64, este correspondeu para as Forças Armadas não ao restabelecimento da hierarquia e da disciplina, ao contrário, ao agravamento de sua subversão.”
(Nelson Werneck Sodré – em “A história militar do Brasil”)


      “Por ordem minha, não começa uma guerra civil no Brasil”.
(João Goulart, ao negar a oficiais da aeronáutica, fieis a ele, a autorização que pediam para bombardear as tropas de Mourão Filho que avançavam de Minas Para o Rio)


      “Os professores, intelectuais, atores e jornalistas foram os primeiros a sofrer. Porque as ditaduras, a primeira coisa que golpeiam, é a cultura.”


Truculência e besteirol
     Na invasão da Universidade de Brasília, militares confiscaram como indícios de subversão comunista: O vermelho e o negro, romance do escritor francês Stendhal (1783-1842); e, maior prova de comunização apresentada à imprensa, uma bandeira da China que encontraram hasteada na faculdade de educação – só que a bandeira era do Japão, em homenagem a crianças japonesas que ali expunham gravuras. (...)
     O golpe sai vencedor, autoridades organizam em Porto Alegre uma exposição com material dito subversivo, apreendido em casas de esquerdistas e militantes em geral. Lá esta um livro bem antigo, e ao lado a legenda: “livro subversivo em chinês”. Era uma bíblia, em hebraico.


      “Os jornalões não continham a euforia e se derramavam em bajulação aos militares. É impressionante como transformavam a ilegalidade em legalidade. Alguns exemplos:
       “Feliz a nação que pode contar com corporações militares de tão altos índices cívicos”. (O Estado de Minas, dia 5)
       “A Revolução democrática antecedeu em um mês a revolução comunista”. (O Globo, dia 5)
      Pontes de Miranda diz que Forças Armadas violaram a constituição para poder salvá-la!” (Jornal do Brasil, dia 6)”


      “A hostilidade empresarial contra João Goulart aumentou em setembro de 1962, quando o congresso brasileiro aprovou a Lei de Remessa de Lucros, que Goulart sancionaria em janeiro de 1964. A nova lei restringia a remessa de lucros para o exterior a 10% do capital registrado.
     A aproximação das eleições brasileiras, em outubro de 1962, elevou a participação norte-americana em nossos assuntos internos. O Instituto Brasileiro de Ação Democrática, Ibad, despejou milhões de dólares nos bolsos dos conservadores. Segundo Philip Agee, ex-agente da CIA, os fundos estrangeiros regaram as campanhas de oito candidatos aos governos dos onze estados onde houve eleições, quinze candidatos ao Senado, 250 candidatos à Câmara e mais de quinhentos candidatos às Assembleias Legislativas.
     O resultado não compensou. A bancada “da esquerda” aumentou. E a enxurrada de dólares originou Comissão Parlamentar de Inquérito. Descobriu-se que o dinheiro entrava pelo Royal Bank of Canada, Bank of Boston e First National City Bank; e que empresas como Shell, Coca-Cola, IBM e Texaco colaboraram.
     Os planos para derrubar Goulart ganharam velocidade. Vernon Walters falava com militares. Lincoln Gordon estabelecia linha direta entre, de um lado, as agências financeiras e o governo dos Estados Unidos e, de outro lado, os governos estaduais de oposição. Gordon considerava como “ilhas de sanidade administrativa” as atuações de governadores como Carlos Lacerda (Guanabara) e Adhemar de Barros (São Paulo). O dinheiro de empréstimos negados a Goulart chegava aos cofres de seus adversários.
     O assassinato de Kennedy em 1963 e a ascensão de Lyndon Johnson empurraram a diplomacia norte-americana para um velho estilo, mais truculento, em relação à América Latina. A política do novo secretário-assistente para Negócios Interamericanos, Thomas Mann, a Doutrina Mann, foi expressa num artigo do New York Times no início de março de 1964:
      “Os Estados Unidos não mais procurariam punir as juntas militares por derrubarem regimes democráticos.”
     Em trágica sequência, os governos eleitos democraticamente foram caindo e dando lugar a ditaduras militares de extrema-direita.”


      “A revista Pif Paf durou pouco. Na oitava edição, a contracapa continha a “advertência”:
      “Quem avisa, amigo é: se o governo continuar deixando que certos jornalistas falem em eleições; se o governo continuar deixando que determinados jornais façam restrição à sua política financeira; se o governo continuar deixando que alguns políticos teimem em manter suas candidaturas; se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem por sua própria cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo numa democracia”.
     Os militares apreenderam a tiragem. A revista acabou.”


POVO, NÃO: POPULAÇÃO
     Na Folha, logo na primeira semana após a vitória dos golpistas, passamos a grafar “golpe de 1º de abril”. Logo o editor de política, Francisco de Célio César, o França, nos repassou a ordem superior para grafar “Revolução Democrática de 31 de Março”, mas podíamos abreviar para “Revolução de 31 de Março”.
Com o tempo, outros termos entrariam no índex. Nada de camponês: agricultor. Nada de povo: população. Não havia dúvidas sobre qual era o ator principal que vieram tirar de cena. (Mylton Severiano)


E Jango estava bem no Ibope
     A pedido da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, o Ibope realizou pesquisa, durante os últimos dez dias antes do golpe, na maior cidade do país – aquela que, segundo os golpistas, saiu às ruas em peso para apoiar a deposição de Jango. Os índices colhidos entre 20 e 30 de março de 1964 mostravam, ao contrário, significativo apoio dos paulistanos ao governo.
     Mais de 80% dos quinhentos eleitores entrevistados sabia dos decretos de Jango: encampação das refinarias de petróleo; desapropriação de terras às margens de açudes, ferrovias e rodovias federais; e tabelamento de alugueis – medidas aprovadas por 64%.
     No dia 26 de março, o Ibope concluiu outra pesquisa: metade dos eleitores de oito capitais votariam em Jango à reeleição. Não há notícia de que tais pesquisas tenham sido publicadas na época.


      “Anistia é um ato pelo qual o governo resolve perdoar generosamente as injustiças e crimes que ele mesmo cometeu.” (Barão de Itararé)


      “A ascensão das massas, as greves, as reivindicações, a politização das classes populares, tudo quanto faz parte de um processo democrático estava sob o crivo dos militares de direita, dos conservadores, da imprensa grande a serviço das forças do atraso. Não estavam gostando nada daquilo que para um democrata é natural e para eles não passava de desordem.”


      “A verdadeira força dos governos não esta em exércitos ou armadas, mas na crença do povo de que eles são claros, francos, verdadeiros e legais. Governo que se afasta desse poder não é governo – mas uma quadrilha no poder.” (Trecho da peça Liberdade, Liberdade, que veio a ser proibida)


      “Linha-dura é pessoa rude, estúpida, curta de inteligência, teimosa (...). Agora, nosso pessoal radical de direita não tinha ideologia nenhuma. Queria simplesmente ser contra.”
(General Moraes Rego, que após o golpe, como tenente-coronel, serviu no gabinete militar de Castelo Branco)


      “Com leis draconianas, intimidando e cassando, impedindo o voto popular, baixando sua própria constituição, o regime se fixa e inventa um novo sinônimo para ditadura: “estado de exceção”.”


      “O AI-1, editado em 9 de abril de 1964, estipulava o prazo de 60 dias, isto é, 9 de junho, como limite para cassar mandatos e suspender por dez anos os direitos políticos de quem pudesse atrapalhar o governo militar. Obviamente, os primeiros cassados foram Jango, Brizola, Jânio Quadros, Luiz Carlos Prestes e Juscelino – este, por ser forte candidato a eleição presidencial, em 1965, embora tivesse dado importante apoio à indicação de Castelo.
     Rolaram as cabeças de dois governadores, Arraes, de Pernambuco, e Seixas Dória, de Sergipe (curiosamente, eleito pela UDN, União Democrática Nacional, de direita); mais 50 deputados, a maioria do PTB (nenhum da UDN). O expurgo atingiu 49 juízes, cerca de 1.400 civis e 1.200 militares.”


Abaixo a inteligência!
Expulsaram os maiores crânios do país
Era ou não era uma era de obscurantismo?
     Cientistas de renome internacional são cassados, humilhados, presos. O que fizeram com o físico nuclear Mário Schenberg dá ideia. Schenberg (1914-1990) tinha, entre seus feitos, importantes contribuições para a astrofísica. Pois bem. Em 1964, antes de levá-lo preso, de pijama, o delegado depredou seus livros e objetos de arte. Seria depois aposentado compulsoriamente e proibido de entrar no campus da Universidade de São Paulo – um cientista mundialmente respeitado.
     Expulsaram do país: Leile Lopes, consolidador da física teórica no Brasil; Jayme Tiommo, outro importante pesquisador da física; Warwick Kerr, maior especialista do mundo em genética de abelhas; Roberto Salmeron, dos primeiros a estudar raios cósmicos no Brasil; Luís Hildebrando Pereira da Silva, autoridade internacional em malária; Josué de Castro, médico, geógrafo, um lutador contra a fome, traduzido em 25 línguas e duas vezes indicado para o Nobel da Paz; Celso Furtado, estudioso do subdesenvolvimento, economista brasileiro mais conceituado no exterior; Paulo Freire, educador traduzido em 28 línguas, homenageado com estátua em Estocolmo, capital da Suécia. (...)

     Na década de 60, Manguinhos, agora Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz, defende a criação de um Ministério da Ciência para fortalecer a pesquisa. Mas chega a ditadura militar e interfere no instituto já em 1964, nomeando diretor o médico Rocha Lagoa, que seria seu carrasco em 1973, no episódio batizado de Massacre de Manguinhos pelo professor Herman Lent, uma de suas vítimas e grande pesquisador da doença de chagas. Ministro da Saúde de Médici, Rocha Lagoa cassou os direitos políticos dos dez principais pesquisadores da Fiocruz, com base no Ato Institucional 5, AI-5, alegando que exerciam atividades “de cunho comunista”. A perseguição redobra com o AI-10, que praticamente os proíbe de trabalhar no Brasil. (...)
     A produção científica no Brasil sofre perdas inestimáveis. Manguinhos era instituição de excelência e referência em tecnologia para o Brasil todo, inclusive para instituições não voltadas para o campo da saúde. O esvaziamento não se restringe aos cassados:
      “Estende-se a todos os estagiários que saíram junto, e cerca de 150 novos pesquisadores que poderiam ter sido formados. O massacre não foi só de pessoas, mas do conjunto da atividade científica da instituição”, diz Paulo Gadelha, pesquisador da história do Massacre de Manguinhos.


Castelo: é mesmo um terror
     Até o chefe do golpe de Estado e primeiro presidente do regime militar, general Castelo Branco, ficou irritado com o “IPM da feijoada”. Escreveu ao general Ernesto Geisel, chefe da Casa Militar, uma carta que entre outras críticas dizia:
      “Por que a prisão do Ênio (Silveira, dono da editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro, que lançava livros de esquerda)? Só para depor? A repercussão é contrária a nós, em grande escala. O resultado esta sendo absolutamente negativo. (...) Há como que uma preocupação de mostrar ‘que se pode prender’. Isso nos rebaixa. (...) Apreensão de livros. Nunca se fez isso no Brasil. Só de alguns (alguns!) livros imorais. Os resultados são os piores possíveis contra nós. É mesmo um terror cultural.”
     Até então a polícia federal havia apreendido cerca de 17.000 volumes de 35 obras consideradas subversivas. Ênio Silveira ainda seria preso por duas vezes, uma delas incomunicável por 29 dias.


O prende e solta
     Estima-se que a Força Pública (depois PM), a Polícia Civil e os militares das três armas prenderam cerca de 50.000 pessoas em todo o país, nos primeiros meses após a queda de Jango.
     O governo militar agia à margem do sistema legal. Como recurso de intimidação, seus agentes faziam detenções temporárias, muitas vezes com espancamentos ou tratamento violento durante algumas horas e, antes que pedidos de habeas corpus fossem apresentados, liberavam os presos. Passado algum tempo, repetia-se tudo outra vez.


Caíram em cima dos estudantes e trabalhadores
     Segundo a estudiosa norte-americana Martha Huggins, “o objetivo final da ‘limpeza’ era previsível desde o início. Em 2 de abril de 1964 (...) três governadores estaduais favoráveis a Goulart foram depostos e detidos (...), quase dez mil funcionários públicos foram demitidos de seus cargos, 122 oficiais das Forças Armadas foram obrigados a reformar-se, e 378 líderes políticos e intelectuais foram despojados de seus direitos civis pela cassação, que os impedia de votar e serem votados durante dez anos”.
     A UNE, cuja sede no Rio foi invadida por tropas e incendiada no mesmo dia do golpe, em 1º de abril, o governo militar extinguiu oficialmente. E criou outra estrutura estudantil controlada pelo Ministério da Educação, sob orientação de Flávio Suplicy de Lacerda. Seu ex-presidente Jean Marc Von der Weid lembra que a entidade organizou clandestinamente um referendo nacional, para saber se os estudantes apoiavam a nova ordem ou uma UNE ilegal:
      “Aproximadamente 98% dos estudantes votaram pelo apoio à organização ilegal.”
     Para controlar os sindicatos, bastou ao governo militar recorrer à legislação, herança do Estado Novo. As normas permitiam ao Ministério do Trabalho intervir e afastar seus dirigentes e nomear outros, sem possibilidade de recurso. O ministério ainda podia anular eleições e vetar candidaturas. Organizações intersindicais paralelas e independentes, como o CGT, o governo extinguiu por decreto.


      “Lemos em Platão e Aristóteles, filósofos gregos do século 4 a.C.:
      “... os tiranos são ditadores que ganham o controle social e político pelo uso despótico pelo uso da força e da fraude. A intimidação, o terror e o desrespeito às liberdades civis estão entre os métodos usados para conquistar e manter o poder. A sucessão nesse estado de ilegalidade é sempre difícil”.”


Um helicóptero despeja ácido, clima de pânico
     Em 21 de junho de 1968, o Jornal do Brasil publicou crônica do jornalista José Carlos Oliveira sobre a invasão da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na véspera: ... “moças e rapazes deitados de bruços, com a cara enfiada na grama; moças forçadas a andar de quatro diante de insolentes soldados da PM; dezenas de estudantes encostados a um muro e com as mãos segurando a nuca, ou na mesma atitude, mas deitados de bruços”.
     Nos dias 19 e 20 de junho, o campus esteve agitado. Na quinta-feira, 400 estudantes foram retirados de uma assembleia na Faculdade de Economia e levados ao campo do Botafogo, palco das cenas que chocariam o país. Comentando a crônica do colega, Zuenir Ventura disse que “a descrição de soldados urinando sobre corpos indefesos ou passeando o cassetete entre as pernas das moças” constituía “uma alegoria da profanação”.
     Nesse clima acordou na sexta a Cidade Maravilhosa. O ministro da Educação Tarso Dutra tinha prometido receber os estudantes, que marcharam sob a liderança de Vladimir Palmeira, mas encontraram o pátio do ministério cercado. Ali começou a “batalha campal”.
     Com paus e pedras, os estudantes ainda atacaram a embaixada dos Estados Unidos, em protesto contra os acordos MEC-USAID, que previam a introdução de novo modelo de educação, baseado em moldes estadunidenses. Isolados no último andar, funcionários da embaixada atiravam contra os estudantes. Eles tentam correr, mas estão cercados; de um lado, agentes do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e da Polícia Federal; de outro, a PM. Um helicóptero despeja ácido. Clima de pânico.

Parecia Paris, mas não era
     O centro vira praça de guerra pela hora do almoço naquela Sexta-feira Sangrenta. Bombas de gás lacrimogênio chovem. O povo não se intimida. Quem sai do trabalho adere à luta, indignado com a agressividade policial. Bancários, comerciários, funcionários públicos. Do alto de um edifício, atiram cubos de gelo. E tudo passa a servir de munição aérea: garrafas, cinzeiros, cadeiras, vasos, até uma máquina de escrever.
     No solo, luta-se com paus e pedras; barricadas erguidas com material de construção protegem contra os chutes, cacetadas e tiros. Estendeu-se por quase dez horas o maior combate de rua travado pelo povo contra a ditadura. Quatro pessoas morreram, entre elas um policial atingido por um tijolo. Mil presos pelo Dops.
     As cenas naquele 21 de junho pareciam espelhadas nas agitações parisienses de maio, com uma diferença: aqui lutava-se contra algo concreto – um governo cada vez mais intolerante.

Passeata dos 100.000
     Menos de uma semana depois da Sexta-feira Sangrenta, na quarta-feira 26 de junho, as ruas do centro do Rio ficaram, por decisão do governo, sem policiamento – ou seja, sem incidentes.
     O povo se moveu cantando o Hino da Independência, emocionando-se nos versos:
Ou ficar a pátria livre
Ou morrer pelo Brasil
     Era a passeata dos 100.000, multidão assombrosa, impensável naqueles dias. Marchavam artistas, intelectuais, religiosos, sindicalistas, mães de estudantes, o povo carioca. À frente, os líderes estudantis Vladimir Palmeira e Luís Travassos,  presidente da clandestina UNE.
     Uma comissão levou reivindicações a Costa e Silva, que as negou em bloco. No dia 17 de julho, o governo proibiu toda manifestação pública. Então, boa parte da estudantada concluiu que, contra a ditadura, só restava a luta armada.


      “Quando ouço falar em cultura, saco logo meu revólver.”
      (Joseph Goebbels, ministro da informação e propaganda da Alemanha nazista)


      “Em 16 de abril de 1968 estoura a greve dos metalúrgicos de Contagem, sob o comando de Ênio Seabra: 1.600 operários param. A Delegacia Regional do Trabalho (DRT) declara a greve ilegal. Mas, em efeito cascata, com poucos dias os grevistas passam de 6.000.
     O ministro do trabalho, coronel Jarbas Passarinho, vai a Minas e, numa assembleia, diz que, se houver luta, perderá quem tiver menos força. Resultado da ameaça: a greve se expande. O governo recua, propõe reajuste de 10%, como abono. Mais dez empresas aderem à greve. O aparato policial-militar é grande. Mas a greve só para quando Costa e Silva anuncia a extensão do abono a todos os trabalhadores brasileiros.”


      “A Oban (Operação Bandeirantes) foi alimentada financeiramente por uma “caixinha”, administrada pelo então ministro da fazenda Delfim Netto. Ele “passou o chapéu” em almoço para quinze empresários e banqueiros. Por sugestão de Gastão Bueno Vidigal, dono do banco mercantil e organizador do encontro, cada grupo ali representado contribuiu com 100.000 dólares.
     Assim nasceu a Oban, poderosa organização à margem da lei, clandestina, com carta branca para agir impunemente, desvinculada de qualquer organismo oficial, formada por militares de diversas patentes, no começo apenas do II Exército; e investigadores, delegados da Polícia Civil e da Polícia federal. Como financiadores citava-se, entre outras empresas, grupos Ultra, Ford, General Motors. (...)
     A Oban logo mostrou serviço. Entre o fim de setembro e começo de outubro de 1969, seus agentes produziram no corpo do preso Virgílio Gomes da Silva as seguintes lesões, descritas em exame médico-legal: escoriações em todo o rosto, braços e joelhos; escoriações circulares, nos punhos direito e esquerdo (algemado); equimoses (manchas causadas por hemorragia sob a pele) no tórax e abdômen; hematomas na mão direita e na polpa escrotal; internamente, hematoma intenso e extenso na calota craniana; fratura com afundamento do osso frontal; hematomas em toda a superfície do encéfalo; hematoma sob quatro costelas esquerdas; fratura de três costelas direitas.
     Virgílio, comandante da operação de sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, morreu por traumatismo crânio-encefálico causado por instrumento contundente. Qual? Taco de beisebol? Barra ou cano de ferro? Com o tempo, “aperfeiçoariam” o método, combinando espancamento com choque elétrico, pau-de-arara, empalamento e todo tipo de sevícia ao gosto de cada torturador.
     A Oban trabalhava assim. E não dava satisfação a ninguém, nem ao temível Dops. A tortura se tornaria como que uma política de Estado.”


      (...) “O resultado da votação na Câmara, contra a licença para processar o deputado Moreira Alves, constituiu ótima oportunidade para o governo mostrar força. A 13 de dezembro de 1968, o presidente se reuniu com o Conselho Nacional de Segurança Nacional no Palácio das Laranjeiras, Rio, para votar o quinto Ato Institucional, redigido pelo ministro da justiça, Gama e Silva.
     Dos 23 presentes, apenas o vice Pedro Aleixo ficou contra. Sugeria o estado de sítio como alternativa. Justificou que, por aquele caminho, estariam “instituindo um processo equivalente a uma ditadura”. A palavra ditadura estava na boca de outros conselheiros, como o coronel Jarbas Passarinho, que no entanto, considerando-a “inevitável”, pronunciou a célebre frase: “Às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência”.”


      “Sair das quadras constitucionais é fácil. Difícil é voltar.”
      (General Octávio Costa, assessor de relações públicas do governo Médici)


      “Dinheiro estrangeiro (via empréstimo) viria mesmo a rodo na ditadura militar, engordando a dívida externa que em 1964 somava pouco mais de 3 bilhões de dólares e era um dos motivos alegados para o golpe; em 1985, os militares a deixariam nos píncaros dos 100 bilhões de dólares.”


Stuart Edward Angel Jones: assassinado num ritual monstruoso
     Tinha 26 anos, era bonito como galã de cinema e, como tantos outros companheiros de luta, largou a universidade para se dedicar à militância revolucionária. Pertencia ao Movimento Revolucionário 8 de Outubro, MR-8.
     Agentes do Cisa, Centro de Informações da Aeronáutica, assassinaram Stuart à noitinha do mesmo dia em que o prenderam, em 14 de junho de 1971. Foi torturado, amarrado à traseira de um jipe e arrastado pelo pátio do quartel, com a boca aberta presa ao cano do escapamento. Da janelinha de sua cela, o preso Alex Polari presenciou o ritual monstruoso que relataria em detalhes à mãe de Stuart, Zuzu Angel, um ano depois.
     Zuzu, apelido da mineira Zuleica Angel Jones, era desquitada do norte-americano Norman Angel Jones, pai de seus três filhos, incerto na presença e na participação para o sustento da família. Zuzu trabalhou duro como costureira até chegar à merecida fama de estrela da alta costura. Quando Stuart desapareceu, tentou afastar o fantasma da morte, mas a confirmação veio na carta de Alex Polari.
     Os militares, cinicamente, continuaram colando os cartazes de “Procura-se” com a foto dele. Mas, a essa altura, usando seu prestígio e o fato de Stuart ter dupla cidadania, Zuzu conquistou a simpatia de importantes artistas e políticos americanos, como o senador Edward Kennedy e o secretário de Estado Henry Kissinger. Seu modo criativo de chamar a atenção para a situação política do país despertou ódio nos órgãos da repressão.
     Cinco anos depois da morte de Stuart, chegaria a vez dela. De acordo com a versão oficial, Zuzu morreu em acidente na Estrada da Gávea, na saída do Túnel Dois Irmãos, atualmente túnel Zuzu Angel. Na semana anterior, havia deixado um documento na casa do amigo Chico Buarque para divulgação caso lhe acontecesse algo anormal:
      “Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido por obra dos assassinos de meu amado filho”.”


Da cela, a mãe de Ivan Seixas ouviu o marido ser torturado até a morte
      “De quem é esse presunto”, pergunta um policial. O outro responde: “Esse era o Roque”.
     Roque era o nome de guerra do metalúrgico Joaquim Alencar Seixas, pai de Ivan Seixas, futuro jornalista. Ivan foi preso junto com o pai em 16 de abril de 1971, às 10 da manhã, na rua Vergueiro, São Paulo. Tinha 16 anos. Foram levados para a Oban e torturados juntos, “na mesma sala”. Foi torturado madrugada adentro e, na manhã do dia 17, levado pelos policiais para uma mata que mais tarde seria o Parque do Estado. Simulariam um fuzilamento para fazê-lo falar.
      “No caminho, os caras pararam para tomar café e me deixaram algemado no porta-malas da C14, onde vi a manchete da Folha da Tarde dizendo que meu pai havia morrido ao resistir à prisão. Tinha a foto dele e tudo o mais”.
     Ao voltar para a Oban para mais tortura, Ivan reencontrou o pai ainda vivo. Joaquim Seixas seria assassinado pouco depois, por volta das 7 da noite. A mãe de Ivan, presa também, estava logo abaixo da sala de torturas. E ouviu Joaquim ser torturado até a morte. Soube que o marido estava morto quando ouviu aquele diálogo entre os dois policiais.


      (...) Anos depois, o jornalista Mário Magalhães encontrou o laudo da necropsia feita no corpo de Virgílio Gomes da Silva, o comandante Jonas da Aliança Libertadora Nacional. Não há um osso inteiro, esta escrito: “o único órgão intacto é o coração”. Não conseguiram destruir o coração de Virgílio.
     A viúva de Virgílio, Ilda Martins da Silva, mulher vigorosa, depois de torturada e separa dos quatro filhos pequenos (que conseguiu reaver), depois de nove meses de prisão, rumou para Cuba. De lá, voltou dezoito anos depois, com três filhos formados em engenharia e a caçula em geologia.


Mário Alves: esfolado vivo e empalado com cassetete estriado
     O jornalista baiano Mário Alves, junto com os ex-colegas de PCB Jacob Gorender e Apolônio de Carvalho, fundou em 1968 o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, PCBR, cuja secretaria-geral exercia. Agentes do Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna) o prenderam em 16 de janeiro de 1970 e levaram ao quartel da Polícia do Exército na rua barão de Mesquita, Tijuca, um dos centros de tortura do Rio. Os torturadores “capricharam”: esfolaram Mário vivo, com uma escova de metal. Testemunhou o advogado Raimundo Teixeira Mendes, preso com ele:
      “Depois de violentamente espancado, torturado com choques elétricos, no pau-de-arara, afogamentos, etc., manteve a posição de nada responder a seus torturadores... então introduziram um cassetete de madeira com estrias, que provocou a perfuração de seus intestinos e a hemorragia que determinou sua morte”.”
     Foi o primeiro caso em que a união reconheceu responsabilidade pelo desaparecimento de um preso político, em 1987.


      “O general Adyr Fiúza de Castro, um dos criadores do Centro de Informações do Exército, CIE, declarou aos historiadores:
      “Quando decidimos colocar o Exército na luta contra a subversão – que praticamente foi estudantil e intelectual na sua totalidade, de gente pequeno-burguesa, grã-fina, pois nunca encontrei um proletário, era tudo gente fina, acostumada a lençóis de linho –, foi a mesma coisa que matar uma mosca com um martelo-pilão. Evidentemente, o método mata a mosca, pulveriza a mosca, esmigalha a mosca, quando, às vezes, apenas com um abano é possível matar aquela mosca ou espantá-la. E nós empregamos o martelo-pilão”.


      “Muito depressa a Igreja Católica, apoiadora de primeira hora do golpe militar, descobriu que havia embarcado em canoa furada. Aos poucos, passam a multiplicar-se os choques até de arcebispos com o governo. A vala cavada entre os dois se aprofunda depois de 1968. A igreja, em breve cairá na total oposição à ditadura.”


Arrebentaram Frei Tito por fora e por dentro
     Preso em novembro de 1969 em São Paulo, acusado de ligações com Carlos Marighella, Tito de Alencar Lima é entregue ao delegado Fleury e aos capitães Albernaz, Homero e Maurício – este, ao buscá-lo para “interrogatório”, diz-lhe:
      “Você agora vai conhecer a sucursal do inferno.”
     Sofreu cutiladas, pau-de-arara, telefones (tapas simultâneos com as duas mãos nos ouvidos), choques, cadeira-do-dragão (de metal, eletrificada, sentavam o supliciado nu e molhavam o chão para aumentar o choque), pauladas, ofensas religiosas, massacre sexual, queimaduras de cigarro, corredor polonês.
     Deportado para o Chile em 1971, segue para Roma e Paris, onde recebe apoio dos dominicanos.
     Enforca-se a 10 de agosto de 1974, aos 29 anos, enlouquecido pelo trauma das torturas que sofreu nas mãos dos militares.


     Em 1973, ficaram famosos dois crimes que envolviam gente poderosa: as mortes de Aracelli Cabrera Crespo, de quase 9 anos, em Vitória, Espírito Santo; e de Ana Lídia Braga, 1 ano mais nova, em Brasília, emblemáticos: só poderiam acontecer num país dominado pelo terror de Estado.

Virariam senhores acima de qualquer suspeita
     Entre os implicados no caso Aracelli figuravam Dante Michelini Júnior, filho de latifundiário influente nos meios militares; e Paulinho Helal, de família igualmente poderosa. A menina, que a mãe mandou entregar um envelope a Jorge Michelini, tio de Dante, foi drogada, estuprada e morta num apartamento do edifício Apolo, centro da capital capixaba. Os rapazes, sob efeito de cocaína, lhe destruíram a dentadas os seios, parte da barriga e da vagina. Levaram o corpo para o bar-boate de Jorge Michelini, onde o deixaram num freezer por vários dias.
      “Quando voltaram a si, não sabiam o que fazer com o cadáver”, diz o jornalista José Louzeiro, autor de Araceli, Meu Amor (Civilização Brasileira, 1976).
     O corpo pretejou no freezer. Os jovens jogaram-lhe ácido para dificultar a identificação e o abandonaram num matagal, nos fundos do Hospital Jesus menino. Segundo Louzeiro, o caso produziu 14 mortes, desde possíveis testemunhas até pessoas interessadas em desvendar o crime.

“Saia desse hotel que vão te envenenar”
      “A ditadura era toda a favor dos implicados, sobretudo o Dante Michelini, o pai dele era golpista e beneficiário do regime. Estavam acima do bem e do mal”, diz 35 anos depois o jornalista José Louzeiro.
     Na época, ele era secretário de redação de Última Hora, no Rio, e preparava o livro Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia, sobre um bandido popular, que viraria filme de Hector Babenco. Conta que a turma da motoca, grupo de playboys de Vitória, tinha certeza da impunidade. Anos antes, eles se envolveram noutro crime de morte: atropelaram um guarda de trânsito que ordenou ao grupo para parar. Sequer resultou em inquérito.
     Sobre o caso Aracelli, Louzeiro entrevistou mais de 40 pessoas. Certa vez o funcionário de um hotel, pertencente a família Helal, o salvou:
      “O senhor não é o autor de Lúcio Flávio? Então saia desse hotel que vão te envenenar”.
     Louzeiro passou a preencher ficha num hotel e se hospedar noutro. Algo o intrigava: pessoas ouvidas pela polícia recebiam orientação dos advogados dos acusados. A família contratou os doze melhores advogados de Vitória. Em 1980, Dante e Paulinho foram condenados, mas a sentença foi anulada. Em novo julgamento, em 1991, foram absolvidos. E se tornariam pais de família, católicos, senhores acima de qualquer suspeita, arremata Louzeiro.
     A data da morte de Aracelli, 18 de maio, pela Lei 9.770, de 17 de maio de 2000, virou Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. (Como um escárnio, Dante Michelini, ainda é o nome de importante avenida de Vitória)

Ana Lídia: Sufocada sob os estupradores
     Tarde de 10 de setembro de 1973. Ana Lídia Braga sai do Colégio Madre Carmen Salles com um rapaz loiro, alto. Seu corpo será encontrado no dia seguinte no terreno da universidade de Brasília, UnB. Esta nu. A perícia apontará morte por sufocação. Os cabelos loiros foram cortados e se espalhavam pela terra. A boneca Susy, quatro cadernos e alguns lápis de cor são localizados nas redondezas. A mochila e as roupas jamais apareceriam.
     Ana Lídia foi sequestrada pelo próprio irmão de 20 anos, Álvaro Henrique, 13 anos mais velho, e levada a um sítio em Sobradinho, perto de Brasília. Um grupo de jovens estuprou e matou a menina.
     O sítio pertencia ao senador capixaba Eurico Rezende, da Arena, Aliança Renovadora Nacional, partido do governo militar. A censura proibiu a divulgação do resultado das investigações.
     Fazia parte da turma, entre outros filhos de gente graúda, o futuro presidente Fernando Collor, que não participou do crime. Estavam envolvidos, sim, Eduardo Ribeiro Rezende, filho do senador e vice-líder da Arena no Senado; e Alfredo Buzaid Júnior, o Buzaidinho, filho de nada menos que o ministro da justiça de Médici.
     Especialistas que acompanharam o caso são unânimes: houve falhas na investigação. E o crime ficaria impune.


Inferno no paraíso: Cultura “do pau” na luz e na casa da Vovó
     Ao estourar o golpe de 1964, a cultura “do pau” estava disseminada na polícia. Chegou ao Dops, na Luz, levada pelo delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury. Também chegou ao Doi-Codi, no Paraíso, chamado pelos militares de Casa da Vovó.
     Os prisioneiros chegavam em sangue, feridos ou agonizantes. Pendurados no pau-de-arara, recebiam descargas elétricas. Às vezes ficavam descalços em pisos molhados, o que aumentava a força dos choques. Recebiam violentos jatos de água e areia.
     Furadeiras elétricas perfuravam corpos. Coronhadas abriam cabeças. Socos, pontapés, afogamento, navalhas rasgando a carne, queimaduras de cigarro, ataques sexuais: torturas aplicadas pelos homens de Fleury, listadas em Autópsia do Medo, livro de Percival de Souza.

      “Quando havia homem e mulher, companheiro e companheira, marido e esposa, ‘ele’ era obrigado a ficar olhando o momento em que se enfiavam os dedos no ânus dela”.

     Crueldade requintada: ao interrogar um padre, o investigador vestiu-se como religioso. De Bíblia na mão, na escuridão, ele torturava o padre física, emocional e espiritualmente. Agentes em bando saíam pelos corredores com uma ratazana pintada de rosa, enquanto tocavam trombone e bumbo. Tudo era tão aterrorizante que uma mulher afirmou que viu uma banheira cheia de sangue na diretoria do Dops. O jornalista não conseguiu confirmar. Mas a banheira de sangue se transformou no pesadelo dessa prisioneira.
     Torturadores obrigavam presos a voltar para a cela arrastando-se; médicos reanimavam presos para suportar novas torturas. A ordem era: se matassem alguém, os agentes deveriam sumir com o corpo, sem sinais de identificação, para o caso de ser achado. No Dops, um agente arrancou os dedos de um preso com um punhal de lâmina afiada. O investigador Henrique Perrone levou para casa no bolso do paletó um dedo, que sua mulher encontrou. No Instituto Médico Legal, a cabeça de um foi costurada no corpo de outro.
     Calcula-se que, entre 1969 e 1973, os subterrâneos da ditadura provocaram pelo menos 500 mortes.


      “A Arena é o partido do “sim”; e o MDB é o partido do “sim, senhor!”.
      (Leonel Brizola, político gaúcho)


O verdadeiro motivo
      “Comissão Parlamentar de Inquérito, dirigida por Alencar Furtado, demonstra que as maiores empresas estrangeiras instaladas no Brasil investiram aqui um total de 299 milhões de dólares trazidos de fora, enquanto remeteram para o exterior, só de 1965 a 1975, um total de 755 milhões em dólares, e, ainda, reinvestiram aqui lucros em cruzeiros registrados em dólares no valor de 693 milhões. Como negar que somos um dos principais exportadores de capitais do mundo capitalista? O deputado pagou caro pela ousadia: foi cassado.”
(Darcy Ribeiro – em Aos Trancos e Barrancos: como o Brasil deu no que deu)


Para esconder um fracasso, deixaram morrer quase 3.000 crianças, só em 1974
      “A historiadora Maria Helena Moreira Alves, explica que o objetivo central da censura num regime autoritário é esconder os conflitos na tentativa de “construir”, ainda que artificialmente, uma sociedade estável e homogênea.
     Assim, os meios de comunicação – todos – foram proibidos de noticiar um surto de meningite em São Paulo em 1974.
     Nas redações sob censura prévia, os censores de plantão se encarregaram de vetar as notícias. Nas outras, os jornalistas sofriam o drama: primeiro, não sabiam de nada; depois, quando sabiam, era pelo telefonema da censura “proibindo qualquer notícia sobre meningite”... A notícia se espalhou no boca a boca, devagar e incompleta. Décio Nitrini conta que a epidemia começou atacando a periferia, atacando as crianças pobres.
      “Só quando atingiu a classe média, centro e regiões nobres, não dava pra esconder mais, aí o governo fez vacinação em massa”, recorda Décio.
     E por que os militares queriam esconder um surto de meningite, mesmo à custa da morte de inocentes? Porque mostraria que não eram onipotentes. A prioridade, como sempre, era mostrar ao povo que mantinham tudo sob controle.
     A liberação da notícia chegou tarde, e com restrições:
      “Continua, entretanto, proibida a divulgação de matérias alarmistas e tendenciosas, que possam gerar pânico entre a população.”
     Morreram, no auge da epidemia, 2.575 em São Paulo e 305 no Rio de Janeiro, crianças na quase totalidade. E o povo não foi avisado. Por causa da censura, para esconder seu fracasso na área da saúde, a ditadura permitiu que quase 3.000 crianças morressem só em 1974.


      “Geisel, que havia assumido o governo com uma dívida de 10 bilhões de dólares, ao final de seu mandato em 1979 deixaria uma dívida mais que quadruplicada: 42 bilhões de dólares.”


As guerreiras que pegaram em armas contra a ditadura
      (...) Um dia, o capitão Sebastião de Moura, codinome Dr. Luchini, ou também Curió, tirou a prisioneira da guerrilha do Araguaia Dina do cativeiro e a entregou a uma equipe que embarcou num helicóptero. Aterrissariam nalgum ponto da espessa mata, perto de Xambioá. O sargento do Exército Joaquim Artur Lopes de Souza, Ivan de apelido, chefiava a equipe.
      “Vocês vão me matar agora?”, perguntou Dina, ao tocar o solo.
      “Não, mais na frente um pouco. Agora só quero que você reconheça um ponto”, teria respondido Ivan.
     Duzentos metros adiante, o grupo para em uma clareira.
      “Vou morrer agora?”, volta a perguntar a moça.
      “Vai, agora você vai ter que ir”, responde Ivan.
      “Então, quero morrer de frente”, pede, encarando o executor nos olhos.
     Ivan se aproxima e, a 2 metros, atira com a pistola calibre 45, atingindo Dina acima do coração. Ela não morreu no ato e levou um segundo tiro, na cabeça. Enterraram Dina ali mesmo. O corpo jamais foi encontrado.

     O universo da guerrilha, urbana e rural, é pontuado de mulheres que se destacaram na luta para livrar o Brasil da ditadura militar. Sofreram torturas, constrangimentos físicos, sevícias sexuais. Embrenharam-se na mata empunhando armas. Muitas morreram bravamente encarando os algozes, como Dina; discursando pela liberdade antes de abatidas; cantando, perdidas na selva, para espantar a fome e sobreviver a fim de transmitir ensinamentos aos novatos. Surpreenderam os militares, obrigados a admirar-lhes a coragem.
     Ivan gostava de contar aos colegas de farda que o último olhar de Dina transmitia mais orgulho que medo. Falou da guerrilheira como a pessoa mais valente que conheceu, elogiou Dina até quando ele próprio ia morrer, treze anos mais tarde, assassinado supostamente como “queima de arquivo”.
      “As mulheres são muito mais ferozes do que os homens”, afirma o general Adyr Fiúza de Castro, um dos criadores do Centro de Informações do Exército, Cie, que chefiou o Centro de Operações de Defesa Interna, Codi, no Rio.
     Difícil dizer se a percepção do general Fiúza é a mais acertada. Mas é certo que essas mulheres foram corajosas e obstinadas em seu objetivo de derrubar a ditadura. Telma Regina Cordeiro Corrêa, a Lia, escapou de todos os cercos da ditadura no Araguaia. Sozinha, tentou sair do Bico do papagaio ao ver que a guerrilha havia sido derrotada. Perdeu-se numa região rochosa, acabou sem comida, sem água. Em meados de 1974, os militares encontraram o corpo decomposto, com um diário ao lado.
     Nas últimas páginas, Lia registra que passava fome e sede, mas não podia morrer, pois ainda tinha muita coisa a passar para os outros guerrilheiros. A ponto de sucumbir, cantava a estrofe da canção dos guerrilheiros:
      “Ama a vida, despreza a morte e vai ao encontro do porvir.”
     E seguia adiante. “Não aguento mais”, foram as últimas palavras escritas, com letra fraca.”

Vendeu caro sua vida: Sônia enfrentou a patrulha sozinha e acertou dois
     A carioca Lúcia Maria de Souza, a Sônia, cursou medicina e ganhou a estima do povo da mata por atender como parteira. No livro Operação Araguaia, Taís Morais e Eumano Silva narram sua saga. Na tarde de 24 de outubro de 1973, Sônia e um morador saem do acampamento para encontrar dois companheiros. Onze dias antes, os militares mataram três guerrilheiros.
     Sônia não atendeu à regra de evitar caminhos conhecidos. Escondeu as botinas e foi descalça até um córrego. Ao voltar, não as encontrou. Aparece uma patrulha com oito homens, chefiada pelo doutor Asdrúbal – codinome de um major. Ao receber voz de prisão, Sônia saca do coldre um revólver, que cai porque Asdrúbal a acerta na coxa. Escurece e os militares desistem de ir atrás do morador, que foge.
     Sônia sangra no chão e Asdrúbal aproxima-se. Acha a moça bonita. A guerrilheira tinha outro revólver escondido: Asdrúbal leva uma bala no rosto e uma na mão; outro oficial levou o terceiro tiro no braço. Os militares restantes imobilizaram Sônia, que já tentava escapar arrastando-se pelo capinzal, sem largar o 38.
      “Qual o seu nome?, perguntou um oficial.
      “Guerrilheira não tem nome, seu filho da puta. Tem causa. Eu luto pela liberdade” – respondeu Sônia.
      “Se quer liberdade, então toma!”, reagiu o militar, descarregando ele e companheiros, suas armas. Sônia levou mais de 80 tiros. Deixaram o corpo no local. O povo da região contava essa história variando as versões, admirado da valentia da moça, como admirados ficaram os militares que a enfrentaram.


Os generais não podiam alegar que não sabiam
     Os militares prenderam moradores do Araguaia de forma arbitrária, torturaram, atiraram em guerrilheiros feridos no chão, executaram prisioneiros, profanaram corpos, abandonaram seus próprios valores e rasgaram a Convenção de Genebra (1949), que entre outros atos veta a prisão e a “punição coletiva” de civis.
      “Agiram, enfim, segundo a lei da selva, de acordo com os princípios da barbárie que deveriam combater. Quando tudo terminou, apagaram as evidências daqueles atos: cremaram arquivos e cadáveres para que não restasse sinal algum de um ou de outro”, escreve o jornalista Hugo Studart, em Lei da Selva – Estratégias, Imaginário e Discurso dos Militares sobre a guerrilha do Araguaia.
     No entanto, jamais jornalista algum nem historiador encontrou qualquer documento sobre quem dava e como dava as ordens para tantas execuções sumárias. Ao que parece, as ordens teriam sido todas verbais; e, pelas leis supremas dos militares, as da disciplina e da obediência à hierarquia, só podiam vir do chefe-mor: o general-presidente.
     Os membros da Comunidade de Informações no Araguaia e das duas equipes de operações especiais tinham grande independência para atuar. Oficiais subalternos, até mesmo sargentos, tomaram muitas decisões vitais. Contudo, não agiam contra a vontade de seus superiores, especialmente os generais.
     “Não se pode alegar que no Araguaia alguns pequenos grupos militares tenham adquirido ‘autonomia’ e cometido os ‘excessos’ por conta própria, sem que os generais em Brasília tenham qualquer responsabilidade sobre esses atos”, escreve Studart.”


Cem milhões de anos sob as águas
     Severo crítico da obra da construção da usina de Itaipu, Darcy Ribeiro, ministro-chefe da Casa Civil do governo Goulart, escreveu:
      “Deixamos de construir, totalmente em território brasileiro, uma hidrelétrica de 10 milhões de quilowatts, projetada até o detalhe e iniciada no governo Goulart, para construir uma de 12 milhões de quilowatts, metade da qual pertence ao Paraguai (que contribuiu financeiramente na bilionária construção de Itaipu, com a quantia exata de 1 dólar). Nos anos seguintes se gastariam vários bilhões de dólares, metade deles emprestados ao Paraguai para serem pagos com a energia produzida. (...) A maior estupidez da operação, porém, foi a ecológica. Com ela, estancamos, sem nenhuma necessidade, a mais bela cachoeira do mundo”.
     Darcy se referia ao Salto de Sete Quedas, as quedas-d’água mais volumosas do planeta, com 300 metros de altura e mais de 100 milhões de anos de idade, que desapareceu em 1982, quando as comportas de Itaipu se abriram e a inundação cobriu uma imensidão de território.


      “Como é que se chega ao meu nome? Ora, porque fulano é cretino, sicrano é burro, beltrano é safado! Isso é jeito?”
(General Ernesto Geisel, comentando que “só num país como o Brasil” um homem como ele “poderia chegar a presidente da república”)


      “... a polícia esta matando a três por dois. Eu tenho mais medo, hoje, da polícia do que do ladrão”.
(General Carlos Alberto da Fontoura, chefe do SNI no governo Médici, entrevistado em 1993)


      “O Doi (...) é destacamento de operações: ‘Vá lá e faça isso’. (...) Então, o Doi era o braço armado da ‘Inquisição’, vamos dizer assim. É isso.”
(General Adyr Fiúza de Castro, que chefiou o Doi-Codi do Rio de Janeiro)


Medo, o editor
     Nós somos uma geração de jornalistas formados no AI-5, na paranoia. Nós somos o medo. Ele escorre por cada linha que escrevemos. E mancha o papel de vergonha. Nosso jeito de escrever foi moldado pela grande imprensa – pela autocensura. Nosso trabalho raras vezes tinha um sentido social. Tinha apenas um sentido prático: sobreviver, de medo. Não devemos acusar ninguém pelo que não dissemos: com raras exceções, devemos acusar nós mesmos. Esse número zero de Repórter poderia ter sido muito melhor. Muito mais verdadeiro. Mas não foi possível: tivemos medo. E só por isso compreendemos aqueles que se recusaram a colaborar. Ou até mesmo a falar. São nossos companheiros do medo que nos sufoca.
(Do editorial do numero zero de Repórter, novembro de 1977)


Quem disse que generais também não torturavam?
Prontuário: General Siseno Sarmento
      “Quando cheguei à sala, o palco já estava preparado. Cerca de 10 a 12 homens. O capitão Zamith sentado a uma mesa. No chão um cobertor ensopado de água. Em cima uma banqueta. Mandaram-me tirar a roupa e sentar. Eles me amarraram as pernas, em volta da banqueta, junto com os braços. Colocaram-me uma espécie de grampo nos dedos dos pés, no pênis e nas orelhas. Zamith disse:
      ‘Você pode poupar tudo isso se colaborar’.
     Respondi que começassem logo com aquilo e eles rodaram a maquininha. Fui jogado para trás, então os homens começaram a me espancar com pontapés, eu voava de um lado para outro, e só gritava ‘filhos da putas, não vou falar’, eles paravam, me colocavam sentado, o Zamith falava: ‘Diz onde esta o Marighella que tudo isso acaba’.
     Eu nada dizia e a maquininha rodava, e tudo se repetia. Foram 6 horas de tortura.
     Terceiro dia, terrível. À noite, depois de umas duas horas de porradas, Zamith dá uma parada. Entra o general Siseno Sarmento, comandante do I Exército [Rio de Janeiro]. Pensei: ‘Estou salvo, este homem veio para acabar com esta loucura’.
     O general entra, acende um charuto, olha para mim e pergunta a Zamith:
      ‘É este o comunista?’
     Pega o charuto e apaga na minha carne. Apagou o charuto umas 4 ou 5 vezes no meu corpo. Como podia um general, comandante de Exército, rebaixar-se tanto, meu Deus! Acreditei, neste momento, que seria mesmo morto por aqueles homens”.
Acimar Fernandes, militante da Ação Libertadora Nacional, ALN: trechos do livro póstumo, inédito, sem título, guardado por seu filho Karl Marcius.
Eterno golpista, em 1954 Sarmento assinou o Manifesto dos Coronéis contra Getúlio e Jango. Comandou o I Exército no governo Médici. Em 1971, foi nomeado para o Superior Tribunal militar, onde ficou até 1977.


Sinal dos tempos: não respeitavam nem batina
Jesuíta morreu ao defender mulheres torturadas. O povo destruiu a cadeia.
     Indefesos diante da truculência da ditadura, inúmeros brasileiros pobres contavam com uma única ajuda: os padres. Era o caso do jesuíta João Bosco Penido Burnier, mineiro de Juiz de Fora, missionário entre os bacairis e posseiros de São Félix do Araguaia, Mato Grosso.
     Um dia, o povoado de Ribeirão Bonito rezava a novena de Nossa Senhora Aparecida. Celebraram a cerimônia principal, especialmente vindos, dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix, e o padre Burnier. Um escritor local descreveu:
“Era tarde de 11 de outubro de 1976. Duas mulheres sertanejas, Margarida e Santana, estavam sendo torturadas na cadeia-delegacia. (...) os dois foram interceder pelas mulheres torturadas. Quatro policiais os esperavam no terreiro da delegacia e apenas foi possível um diálogo de minutos. Um soldado desfechou no rosto do padre João Bosco um soco, uma coronhada e o tiro fatal. (...) Foi morrer, gloriosamente mártir, no dia seguinte, festa da Mãe Aparecida, em Goiânia”.
     Casaldáliga acrescentaria detalhes: quando chegaram, os policiais seguravam um caititu bravo, que usariam para morder as mulheres. E a bala que matou o padre era do tipo dundum, que explode ao penetrar no corpo.
     Depois da missa de sétimo dia, o povo seguiu em procissão até a delegacia, libertou os presos e destruiu o prédio. No lugar ergueu um santuário.


As verdadeiras heranças malditas
     Vimos como o imperialismo americano, jogando bruto contra o bloco socialista e países do “terceiro mundo” em que os povos cobravam mudanças e governos soberanos, impôs mundo afora ditaduras servis a Washington. A nossa tratou primordialmente de impedir as reformas que ali vinham. Porém, não se tratou apenas de impor 21 anos de chumbo, mas também de preparar o ambiente que, na redemocratização, “possibilitaria ao neoliberalismo aportar com tudo no território brasileiro, estimulado pelas elites empresariais, saudado pelas classes médias e engolidos pelos trabalhadores sem maiores resistências”, como escreveu para Caros Amigos o jornalista Hamilton Octavio de Souza, professor da Pontifícia Universidade Católica/SP.
     Não à toa, os golpistas destruíram a experiência educacional transformadora pré-1964, aceleraram a privatização do ensino, criaram “fábricas de diplomas” para formar a intelectualidade neoliberal; em vez de reforma agrária, de produção de alimentos com proteção ambiental, concentraram mais terras em menos mãos e passamos a conviver com latifúndios improdutivos ou do agronegócio exportador e predador do meio ambiente.
     Endividaram o país com obras faraônicas; contribuíram para o saque à Amazônia; aceleraram a deterioração cultural do povo, em dobradinha com empresários antinacionais, promotores da “baixaria televisiva” e da alienação, num esquema que perdura. Acabada a ditadura, as elites avançaram sobre os direitos dos trabalhadores, puseram milhões na informalidade e aprofundaram o fosso entre a minoria rica e a extensa maioria pobre ou miserável. O último “general de plantão” nos legará um país cheio de problemas quando deixar o poder. Violência, desagregação, individualismo, consumismo, o levar vantagem a todo preço, mediocridade generalizada – muitos anos de democracia precisam ainda rolar até nos livrarmos dessas heranças malditas.


      “Quem for contra a abertura democrática, eu prendo e arrebento”.
(General Figueiredo, em resposta a pergunta sobre como ele enfrentaria os radicais contrários à abertura)


      “O jornal humorístico O Pasquim alcançou tiragens semanais imensas. Cada número uma capa, cada capa uma opinião:

SOMENTE A
TELEVISÃO
DESLIGADA
SALVARÁ
O BRASIL

      “O Pasquim não se responsabiliza pelas opiniões de seus colaboradores; aliás, nem pelas suas.”

      “O Pasquim – um jornal de oposição ao governo grego.”

      “Se alguém pensa que o Pasquim se atemoriza com ameaças e pressões, pode tomar nota de uma coisa: é verdade.”

      “O importante não é vencer, é sair vivo”.”


Escola elitizada sobre controle político
     O golpe de 1964 e a ditadura militar interromperam e reprimiram a experiência educacional transformadora que floresceu nos anos 50 e na primeira metade de 60. Os colégios vocacionais e os programas de alfabetização baseados no método Paulo Freire, que estimulavam a participação coletiva e a emancipação política, foram banidos do cenário nacional.
     Ao mesmo tempo os governos militares aceleraram o processo de privatização do sistema educacional. Foram criadas as “fundações sem fins lucrativos” e as empresas de educação, que rebaixariam o nível do ensino, aviltaram a profissão de professor e enriqueceram seus donos e “mantenedores”. As fábricas de diplomas ganharam status de faculdades e universidades.
     O sistema privado criado na ditadura permanece intacto, não apenas vigora até hoje – representa mais de 72% das vagas oferecidas anualmente no ensino superior – como é também um dos pilares de formação e sustentação intelectual e política do neoliberalismo. A escola brasileira, na sua maioria, não gera nem transforma conhecimento, apenas reproduz o pensamento dominante.
(Hamilton Octavio de Souza)


     “A tirania é o regime que tem menor duração, e de todos, é o que tem o pior final”.
(Nicolau Maquiavel, 1469-1527, historiador, poeta e músico italiano)

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