O processo de afirmação da democracia política e dos direitos civis vai expondo nos seus desdobramentos resistências aos seus avanços. Algumas destas resistências são bem conhecidas e crônicas e tocam, por exemplo, à ampliação da participação popular na tomada de decisões.
Outras conquistas, consolidadas pelos setores subalternos da sociedade, galgaram condições de consenso tais que estão consolidadas. É o caso das políticas afirmativas de inclusão racial e da criminalização do racismo. A última tentativa de por abaixo a política das quotas foi uma iniciativa do DEM no Supremo, derrotada por unanimidade.
Mas o Brasil é um país complexo. A maneira através da qual vem ocorrendo o seu desenvolvimento excludente permitiu que grupos ideologicamente incompatíveis com o ideário pleno do Estado de direito tenham galgado grande importância política assentada na miséria material e cultural de milhões de brasileiros.
A miséria é a base da expansão destes grupos, certamente não apenas por oportunismo ou manipulação, mas também pela construção capilarizada de uma rede de solidariedade e de disciplina moral que tem contribuído para tornar menos macabra a vida de brasileiros cronicamente situados à margem do processo de desenvolvimento.
Os movimentos neo-pentecostais se situam precisamente neste espectro: são ao mesmo tempo ideologicamente atrasados frente à afirmação do Estado de direito laico e democrático, mas acumularam, frente aos seus milhões de fiéis, a legitimidade decorrente de ter tornado o dia a dia menos sofrido, ainda que ao custo da liberdade de pensamento e de opinião, valores sofisticados demais quando é a sobrevivência que esta na ordem do dia. O movimento, portanto, subordina a liberdade individual na tomada de decisões e regride a padrões medievais de compreensão e de ação sobre um mundo entendido como satanizado, o que até aí é do direito deles.
A eleição atual marca entretanto o encontro entre duas tendências. A primeira e majoritária é aquela de natureza civilizatória, moderna e libertária de melhoria da qualidade de vida de milhões com base na expansão da cidadania e na afirmação do Estado de direito como ferramenta estratégica no processo de transformação social. O suporte ideológico desta vertente é a igualdade de direitos, cuja agenda é a de assegurar o acesso à educação, à ciência, aos direitos, à renda, à participação na tomada de decisões e às liberdades, dentre as quais a de credo. Esta tendência é a que modelou a sociedade em que vivemos, sobretudo posteriormente à derrota da ditadura.
A segunda tendência que se opõe à primeira é a que se caracteriza por uma cosmologia de cunho grupal, excludente e moralista e que, ao enxergar-se como modelo mais alto, coíbe as liberdades e os direitos individuais e coletivos, fundadores do Estado de direito. Se aproveita portanto do Estado de direito que oferece, felizmente, amplas liberdades de credo para arvorar-se numa superioridade e possuir um desprezo pelo restante da sociedade que não comunga dos seus valores, o que se exprime pelo desejo de coibir-lhes a identidade, a liberdade de expressão ou a igualdade. As duas tendências só são irreconciliáveis pelo desejo explícito e militante da segunda de converter-se, apesar de sabidamente minoritária, em modelo universal aplicável a todos os brasileiros.
Então os avanços democráticos, cujas raízes mergulham no combate à ditadura, encontraram outra importante concreção, outra resistência ao seu elan transformador.
Por estranho que pareça, a laicidade do Estado é consenso tão forte no campo exterior à influência do grupamento neo-pentecostal quanto o é a condenação ao racismo na sociedade como um todo, ao ponto que é difícil compreender como é que as maiorias se deixaram inibir e intimidar por segmento numericamente tão pequeno e ideologicamente tão isolado. Aliás, diversas igrejas evangélicas no Brasil e no mundo se alinham, obviamente, ao Estado de direito e à ideia do Estado laico e não seria justo confundir o Sr. Malafaia com todo o movimento evangélico.
A pergunta que temos que nos fazer no Brasil, em todos os segmentos que se identificam com a contemporaneidade, seja na direita ou na esquerda, é: como podemos ter sido tão covardes no enfrentamento político em nosso país de ideologias tão anacrônicas, perversas e invasivas dos direitos e prerrogativas individuais e coletivos?
Seja qual for o enfoque ou o desfecho das eleições, o êxito obtido pelo Sr. Malafaia em subordinar, com a sua cosmologia restritiva, uma candidata à Presidência da República de um país que se entende como laico, já o colocou como o principal perdedor do processo, pois deu a conhecer o seu projeto minoritário de sociedade ao Brasil e o seu desproporcional, através de Marina Silva, poder de fogo. É justo nos perguntarmos, queremos o Estado laico ou a República Malafaica?
Num encontro do Brasil consigo mesmo, neste acerto de contas inevitável que vamos travando com os nossos atrasos e mazelas, descobrimos que temos contas a acertar com os segmentos que acham que podem subordinar os direitos individuais e curvá-los às suas próprias convicções pelo desejo de transformar cidadãos de direito, no caso os LGBT, (mas também os brasileiros que professam crenças de matriz africana), em gente de segunda categoria.
Para eles o pecado é o direito igual, mas para a maioria da nação o pecado é o direito diferente.
É chegada, portanto, a hora do acerto de contas. O Brasil não pode mais intimidar-se com as ameaças de grupos minoritários que almejam tutelar ideologicamente o país.
O próximo governo terá que avançar na agenda da ampliação dos direitos civis. Ou será o palco de enfrentamentos entre um moralismo religioso que pretende ser universal e a sociedade civil organizada.
A criminalização da discriminação religiosa esta também na agenda, pois comumente os brasileiros herdeiros de tradições religiosas africanas são tratados como se fossem filhos de satanás. Ao crime de Injúria Racial o Brasil deverá acrescentar-se o de Injúria Religiosa.
O movimento neo-pentecostal tem todo o direito de existir, e é importante que exista, pois compõe a nação, mas as suas lideranças não podem mais querer esmagar, humilhar e apequenar os outros.
É hora de defraudar a bandeira da civilidade, da igualdade e dos direitos civis amplos e irrestritos e de enfrentar de rosto descoberto aqueles que pretendem, ao arrepio das maiorias, converter o Brasil numa república neo-pentecostal.
Um comentário:
"Para eles o pecado é o direito igual, mas para a maioria da nação o pecado é o direito diferente."
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