Disputa pelo orçamento, cortes de gastos fundamentais, descuido com a competitividade interna, submissão ao jogo financeiro não são prerrogativas do Brasil. O livro "O sequestro da América", de Charles H. Ferguson traça um retrato da crise norte-americana em tudo similar à brasileira.
No livro, ele denuncia o sequestro das políticas públicas pelo setor financeiro. Mostra o esgotamento do duopólio político nos Estados Unidos, com ambos os partidos extremamente refratários a mudanças e subordinados ao financiamento eleitoral dos grandes grupos .
Fala da necessidade de mudar as prioridades, focar em educação, poupança e investimento, deixando de lado a confiança excessiva no poderio militar e na energia barata.
Mostra, finalmente, uma profunda decepção com a incapacidade do governo Barack Obama romper o círculo de ferro da política econômica.
Os megaescândalos e a desregulação
A desregulação financeira alterou completamente a própria psique do sistema bancário norte-americano. Virtudes como a moderação, o não exibicionismo, preponderantes até os anos 80, foram substituídas pela exaltação do consumismo mais superficial.
“Até os anos 1980 uma combinação de tradição, reputação e regulamentação rígida determinava a remuneração dos banqueiros e impedia grandes abusos sistêmicos”, diz ele. Agora, “em todos os níveis – de corretores isolados a CEOs e conselhos de administração, passando por transações entre empresas – pessoas e companhias são recompensadas de imediato (e normalmente em dinheiro) por produzir lucros a curto prazo, sem punições análogas por gerar perdas subsequentes”.
“Durante a bolha dos anos 2000 os lucros da área dispararam para se tornar quase 40% de todos os lucros empresariais nos Estados Unidos. A remuneração média das pessoas trabalhando em bancos de investimento americanos saltou de cerca de 225 mil dólares – um número já impressionantemente alto – para mais de 375 mil dólares, patamar no qual permaneceu, mesmo após a crise. E isso apenas em dinheiro; esses números não incluem opções de ações”.
Os gastos e a vida conspícua “desorientam as bússolas morais – assim como os elevadores privativos, os jatos particulares, as salas de jantar exclusivas e os chefs pessoais dos sócios, os helicópteros, a cocaína, as boates de strip-tease, as prostitutas, as esposas jovens e bonitas, as mansões, os empregados, os jantares oficiais na Casa Branca, os políticos e instituições de caridade bajulando e as festas multimilionárias".
O livro centra fogo no papel dos bancos americanos e europeus nos grandes escândalos financeiros do período, auxiliando a fraude empresarial da Enron, lavando dinheiro de cartéis da droga e das forças armadas iranianas, ajudando em evasão fiscal, escondendo ativos de ditadores corruptos, conspirando para definir preços e cometendo muitas formas de fraude financeira.
O custo foi alto.
Crise, recessão e gastos emergenciais para impedir a quebra do sistema financeiro provocaram aumento de 50% da dívida nacional. Com o déficit fora de controle, governos estaduais e municipais cortaram em serviços essenciais, incluindo educação e segurança pública.
Dois milhões de famílias perderam suas residências em 2011. Distritos escolares relataram o aumento de crianças sem-teto, devido às execuções de hipotecas. Adultos voltaram a morar com os pais, muitos deles dependendo das pensões dos pais para sobreviver. A taxa de pobreza saltou para 15% em 2011, incluindo mais de 16 milhões de crianças.
A concentração de renda
A extraordinária concentração de renda no período criou o que o autor denomina de “economia de dossel” - a parte da vegetação que fica na copa das árvores, em florestas muito cerradas, e que acabam não tendo ligações com o solo e as raízes.
A lógica da economia de dossel aumentou substancialmente os lucros das corporações e dos seus dirigentes, mas prejudicou fundamentalmente a economia interna e o americano médio, que não se beneficiou dos grandes avanços tecnológicos do período.
“O dossel é um mundo de cálculos: trabalhadores indianos e chineses têm padrões de vida muito inferiores aos americanos, portanto trabalham por salários menores”, diz ele.
Com essa visão, a economia norte-americana passou a perder competitividade cada vez mais, porque a lógica do CEO não é a lógica nacional. “Cada vez é maior o número de países com sistemas de banda larga e infraestrutura de logística (como portos, aeroportos e ferrovias) superiores aos dos Estados Unidos. Mas não faz sentido para os CEOs americanos, pessoal ou profissionalmente, pressionar por políticas governamentais que melhorem os sistemas de ensino ou a infraestrutura dos Estados Unidos, em especial se isso também implica um aumento de impostos”.
A queda no nível da educação acentuou a concentração de renda. Hoje em dia, nos EUA, a renda familiar tem peso de 50% para determinar as perspectivas econômicas de um filho durante toda sua vida. Na Alemanha, Suécia e França, mesmo com sua forte estrutura de classes, em média a renda familiar tem peso de apenas 30%. E nas sociedades mais igualitárias, como Canadá, Noruega, Dinamarca e Finlândia, não passam dos 20%.
Para ascender à classe média alta é necessário o diploma em uma instituição de elite ou em uma pós-graduação. E os estudantes dessas escolas saem maciçamente das famílias mais ricas.
Ao mesmo tempo, diz o autor, "a competitividade econômica fundamental americana diminuiu bastante, à medida que sua infraestrutura física, seus serviços de banda larga, sistema de ensino, preparo da força de trabalho, cuidados de saúde e políticas energéticas não acompanharam as necessidades de uma economia avançada".
Há um discurso permanente a respeito do déficit federal, com o mercado insistindo em cortes de impostos para manter a competitividade. E o mantra de que qualquer regulamentação adicional irá "estrangular" a inovação.
A produtividade do trabalho aumentou inéditos 5,4% em 2009. Mesmo assim as empresas não começaram a contratar e o salário médio caiu.
As consequências políticas
As consequências vão muito além do aumento da concentração da renda: estão levando à própria falência da política. O retrato que traça da desagregação política é em tudo similar ao brasileiro: "À medida que os Estados Unidos entram em decadência, extremistas religiosos e políticos começam a explorar a insegurança e o descontentamento crescentes da população. Até o momento isso assumiu a forma principalmente de ataques ao governo federal, a impostos e gastos sociais. Contudo, algumas vezes também assume formas mais radicais: cristianismo anticientífico e fundamentalista, ataques à educação, ao ensino da evolução, a vacinas e atividades científicas, e demonização de grupos, como imigrantes, muçulmanos e pobres".
Na base de tudo, os financiamentos políticos: "Ambos (partidos) recebem um enorme volume de dinheiro, sob muitas formas – doações de campanha, lobbies, contratações pelo setor privado, favores e acesso especial de diversos tipos. Políticos dos dois partidos enriquecem e traem os interesses do país, incluindo a maioria das pessoas que votaram neles. Mas os dois partidos ainda conseguem apoio porque exploram habilmente a polarização cultural dos Estados Unidos".
Montam jogos de retórica. "Os republicanos alertam os conservadores para os perigos de secularismo, impostos, aborto, bem-estar social, casamento gay, controle de armas e liberais. Os democratas alertam os social-liberais para os perigos de armas, poluição, aquecimento global, proibição do aborto e conservadores. Ambos os partidos fazem uma cena pública de como seus confrontos são ácidos e como seria perigoso que o outro partido chegasse ao poder, enquanto se prostituem com o setor financeiro, indústrias poderosas e os ricos. Assim, a própria intensidade das diferenças entre os dois partidos quanto a “valores” permite a eles cooperar no que diz respeito a dinheiro".
Qualquer semelhança com o quadro brasileiro não é, definitivamente, mera coincidência.
Um comentário:
Texto interessante.
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