Em entrevista à Pública, o sociólogo Gabriel Feltran, do Centro de Estudos da Metrópole, comenta a pesquisa que apontou a emergência de valores conservadores entre os moradores das periferias na cidade de São Paulo
Professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), coordenador de Pesquisa do
Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador
do Núcleo de Etnografias Urbanas do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
(Cebrap), o sociólogo Gabriel Feltran pesquisa a periferia de São Paulo desde
2001. É ele quem comenta a pesquisa qualitativa da
Fundação Perseu Abramo, recentemente lançada, sobre o imaginário
social dos moradores da periferia de São Paulo. Uma pesquisa importante,
segundo o professor, mas que não levou em conta a diversidade entre os
moradores da periferia.
De
modo geral, qual a impressão que a pesquisa da Fundação Perseu Abramo causou
para um sociólogo que estuda a periferia de São Paulo como você? Trouxe
surpresas? Ou os resultados já eram esperados?
Um
senhor negro com história operária, um jovem católico e usuário de crack, uma
universitária da USP que participa do movimento hip hop e um pastor evangélico
não pensam a política da mesma forma.
E
todos eles moram numa mesma rua, de um bairro periférico de São Paulo. Mas há
ainda muito mais diversidade ali: um rapaz acabou de sair da cadeia e tenta
retomar a vida, mas é difícil. Uma mãe não tem creche para seus filhos, e todos
dormem em um mesmo cômodo. Um pensa como o patrão, outro não.
Ao
ler a pesquisa, assim, minha primeira vontade foi a de conversar com os
pesquisadores. E eles receberam muito bem essa conversa; são jovens e têm
futuro pela frente. Sendo consequente, não é possível ainda analisar seus
resultados, porque eles ainda não deram conta dessa diversidade e acabaram
homogeneizando demais a interpretação. Por outro lado, a pesquisa é insumo para
um debate importante sobre as mudanças nas periferias da cidade, nas formas de
entender os governos e a política, os valores e o futuro. Ou seja, acho que não
podemos ver as periferias como homogêneas, quando na realidade a
heterogeneidade é crescente. E é, ainda mais nesse período, bem perigoso pensar
que há homogeneidade.
Para Feltran, é perigoso pensar que
as periferias são homogêneas, principalmente em relação ao voto (Foto: Léu
Britto/DiCampana Foto Coletivo)
Professor,
na nossa entrevista anterior, há quase 2 anos (leia aqui), o senhor já
havia deixado claro, por sua experiência como pesquisador, que essa polarização
política – então traduzida por coxinhas X mortadelas – não fazia sentido para o
jovem de periferia. A pesquisa da Perseu Abramo – que se refere a um universo maior,
já que não é restrita à juventude – fez a mesma constatação agora. Por que a
academia e a esquerda institucional, como o PT, ao qual a fundação está ligada,
demoram tanto para compreender esse universo? Como a esquerda se distanciou
tanto dos trabalhadores?
Nas eleições municipais as periferias de São Paulo elegeram a Erundina, o Maluf, o Pitta, a Marta, o Kassab, o Haddad e o Doria. Mas, veja, elas votaram no Lula, majoritariamente, desde 1989.
É evidente, então, que não é um voto ideológico, partidário, no sentido clássico direita X esquerda, que muita gente quis e quer ver. É um voto que concebe o mundo a partir da proximidade, da relação pessoal, da confiança na ética do candidato, um voto próximo e moral. Que por isso sempre esteve muito próximo das igrejas, espaços altamente politizados. E sabemos que a expansão pentecostal é muito mais conservadora que progressista, ao contrário das comunidades de base católicas. Há interesses imediatos que também influenciam o voto, como um emprego público, uma rede de benefícios sociais, uma associação de bairro ligada a um vereador que prometeu melhorias. Há aposta em mudanças, e em serviços que tragam mais bem estar. Há respostas à mídia, à televisão, sobretudo. Mas que também tem um núcleo duro de identificação com o trabalhador, com um líder trabalhador, que não é desprezível. São muitos elementos diferentes, portanto, compondo um voto que, muitas vezes, se analisa no geral porque, ainda hoje, se pensa que as periferias são homogêneas.
As
esquerdas foram perdendo o voto nas periferias, nos últimos anos, quando
deixaram de ser esquerdas. Ou seja, quando perderam proximidade com o que
acontecia no mundo popular. E quando consideraram que essa proximidade, que as
comunidades de base tinham, que as pastorais tinham, que os sindicatos tiveram,
era menos importante eleitoralmente do que televisão e políticas populares, de
melhora do bem estar, como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida etc. E ainda
pior, quando perderam a imagem de mudança, de renovação. Quando se tornaram
moralmente iguais aos demais políticos tradicionais.
Não
há espaço vazio em política. Outros grupos, como as polícias militares (que têm
horas de programa diário na TV aberta, dentro das casas das periferias, com
figuras carismáticas como apresentadores), os evangélicos (com suas ações
midiáticas e de base), bem como o empreendedorismo do mercado de trabalho, têm
estado bem mais perto. E estando perto, ganham eleição ali.
É
adequado dizer que a periferia tem a meritocracia como valor? Qual a relação
entre esforço pessoal e necessidade de reconhecimento individual com ter a
meritocracia como ideal? Esse ideal é necessariamente conservador?
A
ideologia do mérito pressupõe que todos podem chegar ao topo, saindo de
diferentes patamares. Que só depende deles. Os programas de TV falam isso o
tempo todo – se insistir, tiver garra, acreditar no seu sonho, você consegue.
Isso é muito dominante hoje no Brasil e, eu diria, menos presente nas
periferias do que nas classes médias e elites. A meritocracia é muito mais geral
como ideologia, atravessa as classes. É uma característica do tipo de
liberalismo que vivemos na América Latina, radicalizado hoje. Pessoalmente,
claro que devemos sempre tentar avançar e conquistar coisas com mérito. Mas daí
a organizar uma sociedade pelo mérito vai uma distância enorme. Porque mesmo se
todos avançarem, ainda assim a desigualdade se mantém a mesma. E sabemos que
quem pode pagar por escola e saúde avança muito mais e muito mais rápido. Ou
seja, mérito como valor político, público, numa sociedade desigual como a
nossa, é motor de desigualdade. Se pessoalmente é um valor digno, politicamente
é sempre um valor conservador.
A
pesquisa coloca como contradição ideológica a convivência entre valores
liberais como empreendedorismo, eficiência de mercado e “consumismo” e uma
prática que valoriza políticas e serviços públicos de qualidade. Isso é um
paradoxo, uma confusão de valores ou uma dificuldade de interpretação dos
pesquisadores sobre a realidade abordada?
É
um paradoxo da vida moderna, sobretudo a liberal. Todos nós queremos direitos
iguais, garantias para uma vida digna, e queremos ser diferentes de todo mundo,
usar um brinco, uma tattoo ou um corte de cabelo original. Queremos amar como
todos, mas que nosso amor seja único. As propagandas de TV são massificadas,
dizendo “você é especial”. Não creio que seja algo das periferias, apenas. Mas
é presente nas periferias mais recentemente, porque a modernização dos modos de
vida nas periferias é mais recente do que nas classes médias brancas.
“As igrejas evangélicas são também
elas muito heterogêneas, não dá para generalizar”, diz Feltran (Foto: Gessé
Silva/DiCampana Foto Coletivo)
De
que forma esses valores supostamente liberais da periferia se combinam com a
rede de solidariedade real que existe nas comunidades periféricas? Até que
ponto a afirmação de valores liberais poderia estar ligada à reprodução do
discurso da mídia ou instituições (escola, igrejas)?
A
combinação desses valores encontrou, no pentecostalismo, um solo muito fértil
de desenvolvimento. Como, em certa medida, também nos valores internos ao
“mundo do crime”, que é uma irmandade e que pensa muito em progresso material.
Não é à toa que ambos cresceram tanto nos últimos 30 anos, nas periferias e
para além delas. Mercados evangélicos e criminais, com seus sujeitos, não
constituem um submundo frente aos valores dominantes, portanto. Eles estão tão
conectados ao que a Globo prega que representam, hoje, uma tendência de se
tornarem dominantes. Ainda que a Globo não saiba disso.
Uma
provocação: quem está mais próximo dos moradores da periferia com quem a
relação é mais horizontal? Partidos, movimentos sociais ou pastores? As igrejas
neopentecostais têm uma relação alienadora com os fiéis, como imagina a
esquerda?
Pastores,
sem dúvida. Os mercados que mais crescem nas periferias, nas últimas décadas,
são os ilegais e os evangélicos, além de serviços e atendimentos. As igrejas
evangélicas são também elas muito heterogêneas, não dá para generalizar. Seu
liberalismo de base, a teologia meritocrática da prosperidade, é muito
conservador; mas elas estão próximas e isso se reconhece. Se as esquerdas não
as disputarem, ao mesmo tempo em que disputarem os espaços políticos
estratégicos hoje com elas, vão perder ainda mais presença nas periferias.
Crédito
da imagem destacada: José Cícero da Silva/DiCampana Foto Coletivo
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