sábado, 20 de janeiro de 2018

A indústria cultural e a esquerda – por Gabriel Bichir (Meu Professor de História)

A esquerda não consegue disfarçar seu fascínio pela Indústria Cultural, fascínio este que nada mais é do que cumplicidade tácita – uma esperança de que, no fundo, nada mude, de que aquilo que é continue sendo. Está circulando por aí um texto sobre o novo clipe da Anitta que afirma categoricamente, eu cito, que "a bunda é sujeito". Chegou-se a um nível de estupidez que só resta ponderar como o pensamento foi capaz de se render a tal ponto de entregar todas as suas prerrogativas para o marketing mais canhestro.
Pensamento enlatado, bunda cartesiana! A frase é perfeita, porque o que se quer é justamente isso: representação. O clipe mostra a favela, seus integrantes, toda sua diversidade, mostra até mesmo uma bunda com celulite (!). Nada menos que revolucionário, aparentemente. A lógica é estritamente narcísica: eu preciso me ver representado na mercadoria, ela deve refletir todas as minhas qualidades, uma a uma; para conquistar a esquerda basta preencher uma lista de pré-requisitos, nada mais. A obra realmente fiel à favela seria aquela capaz de lembrar que ela não deveria existir.
Esqueceu-se de que crítica pressupõe distância do objeto. Toda crítica aos produtos da IC que desagrada a esquerda é chamada de elitista, reacionária, contra a diversidade etc. Repita-se: não existe crítica sem distância do objeto, afastamento necessário para que o pensar possa se colocar sem estar atado às determinações do dado, aquilo que constitui sua base material. O que é uma música revolucionária? Seria aquela que simplesmente reproduz o mundo tal como é, que ratifica as divisões existentes e as eleva ao patamar do imutável? Pois no clipe a diferença nunca fala de fato, ela nada mais é do que caricatura de si – as imagens estereotipadas das mulheres alinhadas apenas de biquíni falam por si próprias, são exatamente as mesmas reproduzidas nos clipes mais descaradamente machistas de cantores americanos. Junte-se isso a uma batida monotônica, idêntica a qualquer música pop americana e tem-se a fórmula do sucesso: cinismo.
O foco da crítica não deveria ser mostrar como na verdade o clipe objetifica a mulher em vez de "empoderá-la". Não basta dizer que a bunda é objeto, mais interessante seria questionar o que permite que seja chamada de sujeito. Não é curioso que se utilize uma palavra tão carregada de peso filosófico-histórico para designar uma parte do corpo, e não o corpo na totalidade? Nisso, o pensamento reificado toma consciência de si e faz questão de afirmar sua vitória, pois o corpo não é de fato corpo, apenas seus disjecta membra, que reivindicam para si o monopólio da sensualidade. Mas o problema do clipe é precisamente ser sexual de menos: trata-se de uma experiência manufaturada do que pode verdadeiramente um corpo (que, como sempre, serve apenas como brinquedo para manipulação do homem. Não existe uma única cena no clipe inteiro que não seja talhada do ponto de vista masculino).
Se Adorno estava certo ao reivindicar "Nenhuma emancipação sem a da sociedade", então deveríamos repetir: "Nenhum empoderamento sem o de toda a sociedade". Pois a noção de empoderamento como atributo individual não é só falsa, como conivente com o status quo e fruto de uma violência. Nossa esquerda reproduz, na verdade, a esperança de um iluminismo rastaquera: que uma mulher rica, nadando no dinheiro devido a sua imagem "progressista", possa inspirar (!) meninas para serem como ela, transmitindo, quase que por mágica, o flogisto do empoderamento. A razão que se reverte em mito. Se essa for de fato a função que restou à arte – a de imitação servil do real – então estamos perdidos.

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