A esquerda não consegue disfarçar seu fascínio pela
Indústria Cultural, fascínio este que nada mais é do que cumplicidade tácita –
uma esperança de que, no fundo, nada mude, de que aquilo que é continue sendo.
Está circulando por aí um texto sobre o novo clipe da Anitta que afirma
categoricamente, eu cito, que "a bunda é sujeito". Chegou-se a um
nível de estupidez que só resta ponderar como o pensamento foi capaz de se
render a tal ponto de entregar todas as suas prerrogativas para o marketing
mais canhestro.
Pensamento enlatado, bunda cartesiana! A frase é
perfeita, porque o que se quer é justamente isso: representação. O clipe mostra
a favela, seus integrantes, toda sua diversidade, mostra até mesmo uma bunda
com celulite (!). Nada menos que revolucionário, aparentemente. A lógica é
estritamente narcísica: eu preciso me ver representado na mercadoria, ela deve
refletir todas as minhas qualidades, uma a uma; para conquistar a esquerda
basta preencher uma lista de pré-requisitos, nada mais. A obra realmente fiel à
favela seria aquela capaz de lembrar que ela não deveria existir.
Esqueceu-se de que crítica pressupõe distância do
objeto. Toda crítica aos produtos da IC que desagrada a esquerda é chamada de
elitista, reacionária, contra a diversidade etc. Repita-se: não existe crítica
sem distância do objeto, afastamento necessário para que o pensar possa se
colocar sem estar atado às determinações do dado, aquilo que constitui sua base
material. O que é uma música revolucionária? Seria aquela que simplesmente
reproduz o mundo tal como é, que ratifica as divisões existentes e as eleva ao
patamar do imutável? Pois no clipe a diferença nunca fala de fato, ela nada
mais é do que caricatura de si – as imagens estereotipadas das mulheres
alinhadas apenas de biquíni falam por si próprias, são exatamente as mesmas
reproduzidas nos clipes mais descaradamente machistas de cantores americanos.
Junte-se isso a uma batida monotônica, idêntica a qualquer música pop americana
e tem-se a fórmula do sucesso: cinismo.
O foco da crítica não deveria ser mostrar como na
verdade o clipe objetifica a mulher em vez de "empoderá-la". Não
basta dizer que a bunda é objeto, mais interessante seria questionar o que
permite que seja chamada de sujeito. Não é curioso que se utilize uma palavra
tão carregada de peso filosófico-histórico para designar uma parte do corpo, e
não o corpo na totalidade? Nisso, o pensamento reificado toma consciência de si
e faz questão de afirmar sua vitória, pois o corpo não é de fato corpo, apenas
seus disjecta membra, que reivindicam para si o monopólio da sensualidade. Mas
o problema do clipe é precisamente ser sexual de menos: trata-se de uma
experiência manufaturada do que pode verdadeiramente um corpo (que, como
sempre, serve apenas como brinquedo para manipulação do homem. Não existe uma
única cena no clipe inteiro que não seja talhada do ponto de vista masculino).
Se Adorno estava certo ao reivindicar "Nenhuma
emancipação sem a da sociedade", então deveríamos repetir: "Nenhum
empoderamento sem o de toda a sociedade". Pois a noção de empoderamento
como atributo individual não é só falsa, como conivente com o status quo e
fruto de uma violência. Nossa esquerda reproduz, na verdade, a esperança de um
iluminismo rastaquera: que uma mulher rica, nadando no dinheiro devido a sua
imagem "progressista", possa inspirar (!) meninas para serem como
ela, transmitindo, quase que por mágica, o flogisto do empoderamento. A razão
que se reverte em mito. Se
essa for de fato a função que restou à arte – a de imitação servil do real –
então estamos perdidos.
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