Obama quer a Europa como sócia da hegemonia mundial. Falta combinar com os russos. E não só.
Embora a Guerra Fria e a ameaça do socialismo soviético que inspiraram a criação Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) tenham desaparecido de vez em 1991 e suas finalidades tenham se tornado cada vez mais vagas, as cúpulas de chefes de Estado, antes relativamente raras, tornaram-se praticamente anuais desde 2001. As despesas militares de seus integrantes, mesmo sem uma superpotência para enfrentar ou outro objetivo claro a atingir, cresceram para patamares inéditos. No caso dos EUA, superaram os piores anos da Guerra do Vietnã (desde 2003), da escalada militar da era Reagan (desde 2005) e da Guerra da Coreia (desde 2006).
A Otan nunca esteve tão bem armada, mas seus fins nunca foram tão imprecisos. Todas as nações do Ocidente enfrentam problemas financeiros, ansiedade pela escassez de matérias-primas e mal-estar pela perda de peso econômico no mundo em relação às novas potências emergentes, principalmente os BRIC, mas não há mais um desafio ideológico ou uma ameaça explícita que as force a cerrar fileiras em torno dos EUA.
Respondendo a essa crise de identidade, a cúpula de 19 e 20 de novembro de 2010 em Lisboa, mais pomposa que o usual e com medidas de segurança excepcionais (Portugal suspendeu o Tratado de Schengen para bloquear a entrada de ativistas europeus), teve na pauta a redefinição de seu “Conceito Estratégico”. Costuma ser feita a cada década, mas desta vez foi mais ampla.
A organização, cujos integrantes nunca sofreram dificuldades econômicas tão agudas e generalizadas, também nunca se atribuiu metas tão ambiciosas. Pretende criar um escudo antimísseis para proteger toda a Europa até 2018. Além disso, enfatiza a necessidade de agir fora das fronteiras dos integrantes para garantir seu fornecimento e distribuição de energia. Para isso, além de continuar a atuar em regiões que considera vitais para esse objetivo, como na Ásia Central, a organização pretende conquistar parceiros de fora do Atlântico Norte, inclusive a arqui-inimiga de outrora: Dmitri Medvedev tornou-se o primeiro líder do Kremlin a participar de uma cúpula da Otan e foi convidado a “compatibilizar” seu sistema antimíssil com o futuro sistema europeu.
Embora faça uma educada reverência ao sonho do desarmamento nuclear pelo qual Obama foi presenteado com um Nobel da Paz antecipado, o texto aprovado repete Hillary Clinton, segundo a qual “a Otan permanecerá como aliança nuclear enquanto existirem armas nucleares” e o secretário-geral da organização, o dinamarquês Anders Fogh Rasmussen, para quem “o sistema antimíssil é complemento da dissuasão nuclear, não substituto” – declaração exigida pela França, que não admite abrir mão de suas bombas atômicas. Ao menos um setor industrial, o bélico, será poupado de cortes significativos em meio à pior crise desde 1929, mesmo se gastos sociais são cortados sem piedade e a existência dessas armas nunca pareceu tão irracional.
Em tese, Otan e Rússia reúnem mais de 95% das armas nucleares do mundo. Se a Rússia não é vista como inimiga, qual o sentido do escudo antimíssil e das 700 a 900 armas nucleares ofensivas do Reino Unido, França e bombas dos EUA na Bélgica, Holanda, Alemanha, Itália e Turquia? Defender-se das precárias bombas atômicas da Coreia do Norte? Ou dos inexistentes mísseis nucleares iranianos, que Teerã diz não desejar e que as potências ocidentais se dizem determinadas a impedir que se tornem realidade?
Não faz sentido. É preciso ver que a aliança deixou de ser defensiva para ser francamente imperialista. Se não se trata mais do projeto do “século- americano” que Bush júnior levou ao poder em 2001 e Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz e Robert Zoellick tentaram pôr em prática, pretende-se garantir ao menos um “século ocidental”.
Desde o fim da União Soviética, os objetivos geopolíticos entre os integrantes da Otan divergiram em parte. Ex-satélites soviéticos, os novos sócios na Europa Oriental temem o retorno da hegemonia russa, enquanto os países da Europa Ocidental – principalmente a Alemanha reunificada – precisam de Moscou como fornecedora de matérias-primas e combustíveis e mercado para seus produtos e querem a distensão. Ao mesmo tempo, isso os dispensa de concentrar suas forças no front oriental e as libera para intervenções no Sul.
O governo Bush júnior tentou jogar a “nova Europa” (Oriental mais Reino Unido) contra a “velha” a partir da invasão do Iraque, parte de um projeto para impor regimes filo-americanos a outros países do “eixo do mal”, controlar o Oriente Médio, evitar o crescimento de rivais e garantir a hegemonia estadunidense. Para isolar a Rússia, tentou instalar sistemas antimísseis na Polônia e República Tcheca e apoiar movimentos antirrussos na Ucrânia, Geórgia e Ásia Central, enquanto mantinha relações cordiais com a China.
A estratégia fracassou, enfraqueceu a aliança ocidental e aumentou o prestígio dos fundamentalistas no Oriente Médio, às expensas dos EUA e da credibilidade de suas ameaças. Forçado pela realidade a uma postura menos arrogante e mais multilateral, Bush reaproximou-se da França e Alemanha com uma estratégia conjunta de pressão sobre o Irã e recuou ante Moscou ao deixar de apoiar a Geórgia quando esta desafiou a Rússia.
O governo Obama foi mais longe nesse realinhamento. Suspendeu os antimísseis na Europa Oriental, negociou a limitação de armas nucleares com Moscou, não se opôs à ascensão de governos pró-russos na Ucrânia e Quirguistão e ofereceu a Medvedev uma parceria militar. Em troca, pediu a colaboração da Rússia com a guerra da Otan no Afeganistão, fornecendo armas e permitindo a passagem de suprimentos (hoje problemática no Paquistão, onde cresce a oposição militar e popular às ações dos EUA).
Ao que tudo indica, a Casa Branca encara a China como maior desafio. A prioridade é isolá-la: para isso convergem os acordos com Moscou, a cooperação nuclear com a Índia e o apoio formal às aspirações desta e do Japão a assentos permanentes no Conselho de Segurança. Uma convergência militar e geopolítica entre China e Rússia, formalizada na Organização para Cooperação de Xangai (que inclui também repúblicas da Ásia Central), mas ainda limitada, é a maior ameaça à hegemonia dos EUA e da Otan.
Em um mundo de energia e matérias-primas escassas, o apetite crescente de 1,3 bilhão de chineses, mais do que o Taleban, é a real ameaça ao abastecimento dos mais de 800 milhões de norte-americanos e europeus aliados na Otan (ou também 1,3 bilhão, se contados “parceiros” como Rússia, Ucrânia, Suécia, Japão, Coreia do Sul e Austrália).
Não só a África e a Ásia estão na mira: os EUA quiseram estender a jurisdição da Otan para o Atlântico Sul. Rejeitada pelo Brasil (que recusa tratar do assunto enquanto Washington não ratificar a Convenção da ONU sobre direito marítimo que garante a soberania sobre a plataforma continental e o pré-sal), a proposta foi para a gaveta, mas Portugal insistiu em apresentá-la.
Se tudo isso é viável, isso é outra questão. Falta combinar com os russos, como diria Garrincha – e não só com eles. O pacto nuclear negociado por Obama é apoiado por Henry Kissinger e Condoleezza Rice como fundamental para a segurança dos EUA, mas o vice-líder republicano no Senado, Jon Kyl, anunciou que vai bloqueá-lo e o líder Mitch McConnell concorda que a meta mais importante é evitar o segundo mandato de Obama. A Turquia não está satisfeita com um “escudo europeu” que a faz de boi de piranha em um eventual conflito com o Irã, do qual quer se aproximar. A Rússia, que nunca foi uma amadora em geopolítica, não vai pôr todos os seus ovos na mesma cesta e desconsiderar China, Irã, Turquia e o potencial dos BRIC só pelas promessas duvidosas de norte-americanos e europeus, com os quais disputa os recursos do Oceano Ártico. Por enquanto, o novo “Conceito Estratégico” da Otan é mais uma lista de pedidos a Papai Noel do que uma realidade.
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