quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Araguaia: país não cumpre sentença da OEA - por Lilian Milena (Brasilianas.org)

Um ano e Brasil não executa julgamento de crimes de violação dos direitos humanos
O Brasil teve um ano para cumprir a sentença que recebeu da Corte Interamericana de Direitos Humanos por crimes de tortura, morte e desaparecimento forçado de pessoas durante a Guerrilha do Araguaia (1972-1974), na ditadura militar.

Na avaliação de movimentos sociais, parte importante das ações sentenciadas ainda não foi atendida. Paira nas atividades governamentais “uma letargia muito grande envolvendo esse tema”, corrobora a procuradora do Ministério Público Federal, Eugênia Gonzaga.

No último dia 14, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República enviou seu relatório final, e obrigatório, à Corte justificando suas ações em resposta à sentença. Se o júri interamericano entender que o Estado brasileiro não cumpriu toda a sentença por má vontade, o país poderá ser excluído da Organização dos Estados Americanos (OEA). Além disso, uma possível desmoralização frente às demais nações diminuiria as chances do Brasil conseguir algum assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.


Exército no Araguaia (1972-1974)

Avaliações apontam que, ainda assim, o Estado terá mais tempo para executar todos os pontos da condenação que se resumem à investigação e punição dos responsáveis pelo desaparecimento de 62 pessoas na guerrilha do Araguaia, entre os anos de 1972 e 1974, assim como a abertura dos arquivos do período da repressão.

O pouco que foi feito

Para resolver a proposta de investigação, no último ano foram criados dois grupos de trabalho em Brasília: a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), e a Câmara Criminal, ambos sob tutela do Ministério Público Federal. Segundo Eugênia Gonzaga, essas duas instâncias estão contribuindo ao orientar os procuradores sobre a maneira como devem proceder quando encontram pela frente casos ligados a ditadura militar.

A procuradora destaca, porém, que os casos que envolvem a violação dos direitos humanos durante o período da repressão demandam investigações profundas para revelar fatos e que “talvez dependam bastante de uma Comissão da Verdade que realmente funcione”. Aí é que entra a responsabilidade do Governo Federal no atraso das investigações.

A instauração da Comissão Nacional da Verdade foi uma das principais exigências de ex-presos e familiares de desaparecidos. Mas o texto aprovado, tanto na Câmara quanto no Senado, entre setembro e outubro deste ano, não era exatamente o que queriam. Primeiro, por conta do período de cobertura para avaliar a documentação, com datas de 1946 a 1988, ao invés de cobrir apenas os anos da ditadura militar, prejudicando o foco das pesquisas.

Segundo, a comissão será subordinada à Casa Civil, não tendo autonomia de verbas para viagens e realizações de trabalhos mais complexos. E, terceiro, os membros da comissão deverão resguardar dados de documentos sob sigilo que tiverem acesso. Para terminar, a comissão será formada por apenas sete membros indicados pela presidente Dilma, o que ainda não foi feito, e terá somente dois anos para realizar seus trabalhos.

Apesar de tudo isso, os relatórios produzidos pelo grupo serão disponibilizados pelo Arquivo Nacional.

Ainda falta tudo

Para Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, o Estado poderia ter feito muita coisa no último ano. Para começar, a identificação das ossadas na região do Araguaia (Tocantins) está em marcha lenta. O Brasil também não acatou a Convenção de Desaparecimento Forçado de Pessoas, adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos. Faltaria apenas uma assinatura da presidente Dilma Rousseff e, em seguida, um protocolo do Ministério das Relações Exteriores junto a OEA para o país se tornar signatário.

Zelic destaca que não existe classificação de crime por desaparecimento forçado no regime jurídico interno do país. Ele ainda questiona o fato do governo não pedir a abertura dos arquivos do DOPS do Estado da Bahia, fechado desde o governo de Antônio Carlos Magalhães, muito menos exigir que os arquivos das Forças Armadas sejam totalmente disponibilizados para ajudar na informação do sepultamento de militantes da guerrilha do Araguaia.

Cumpra-se

Os familiares de desaparecidos e ex-presos políticos realizaram protestos, durante a semana do dia 14 de dezembro, nas capitais de São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Rio Grande do Sul.

Há cerca de um ano o grupo organiza a Campanha Cumpra-se na página da internet www.cumpra-se.org. O objetivo do site é cadastrar pessoas que queiram colaborar com a resolução dos crimes de violação dos direitos humanos. Atualmente, o movimento reúne mais de 35 entidades.

O cumprimento da sentença da OEA exige:

- Investigação e punição de torturadores em envolvidos em crimes da Guerrilha do Araguaia:
- Sistematização do acesso a documentos em poder do Estado que podem contribuir com a história;
- Criação do Dia do Desaparecido Político;
- Implementação de programas de educação em direitos humanos permanentes dentro das Forças Armadas.

Nenhuma das medidas acima foi estabelecida. Também porta-voz da campanha, Zelic aponta que a estratégia do governo brasileiro tem sido a de protelar ao máximo o cumprimento da sentença. A análise do relatório enviado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos à organização levará alguns meses. “Em meados do ano saberemos o posicionamento da Corte, assim o Estado ganhará algum tempo para se justificar. Não é um caminho sem volta no campo jurídico, para o Brasil”, conclui, esperando que o país não faça como o Peru, que por não cumprir a sentença da OEA em relação aos crimes ocorridos em sua ditadura militar, foi afastado da organização durante o governo de Alberto Fujimori (que durou de 1990 até 2000), e depois teve que cumprir todos os termos da corte para voltar a ser aceito.

A Lei que safa torturadores

Estima-se que 30 mil pessoas foram torturadas nos 21 anos da ditadura militar brasileira (1964-1985). A ordem do número de desaparecidos é de 150 pessoas, sendo metade na guerrilha do Araguaia (entre os anos de 1972 e 1974). E apesar de provas históricas e materiais de familiares e ex-presos políticos, até hoje, nenhuma pessoa foi responsabilizada criminalmente. Isso, por conta da “obstrução da justiça”, que ocorre a partir da leitura da Lei da Anistia (nº 6683/79), por parte do judiciário, explica Marcelo Zelic.

O mecanismo legal, criado em agosto de 1979 pelo presidente militar João Figueiredo, beneficiou pessoas que violaram os atos institucionais baixados desde 1964, ou seja, àqueles que sofreram perseguição política, presos ou exilados. Entretanto, a lei passou a ser aplicada a todos, inclusive torturadores e responsáveis pela morte de presos políticos.


Presidente militar João Figueiredo (1979-1985)

O caso Vladimir Herzog, jornalista encontrado morto em uma cela do DOI-Codi, em outubro de 1975, é um exemplo dessa interpretação. Nos aos 2000 o Ministério Público de São Paulo, a pedido da família de Herzog, entrou com inquérito para apurar os motivos de sua morte. O processo, porém, foi trancado no Tribunal de Justiça de São Paulo com base na Lei de Anistia.

Em 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) protocolou no Supremo Tribunal Federal uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 153), ferramenta jurídica utilizada para revisar e reparar erros cometidos pelo poder público, neste caso, contestando a validade da Lei da Anistia.

Em abril de 2009, o STF julgou válida a Lei da Anistia, contrariando o pedido da OAB, por seis votos a dois – apenas os ministros Ayres Britto e Ricardo Lewandowski concluíram que o dispositivo legal não poderia perdoar os crimes do período, por considerá-los hediondos. Ao contrário dos ministros Eros Grau, Cármem Lúcia, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marcos Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluzo.

Em sentença, a OEA também exigiu que o Brasil desobstrua a lei para responsabilizar criminalmente ex-torturadores, pedindo que o judiciário brasileiro voltasse a apreciar a ADPF 153, o que não ocorreu até o momento. Para ajudar existe, no projeto de lei que resultou na criação da Comissão da Verdade, um dispositivo para que seja respeitada a Lei da Anistia.

Decisão do STF fere tratado internacional

Ao aplicar a Lei da Anistia o estado brasileiro desrespeita diretamente a Convenção Americana de Direitos Humanos (também chamada de Pacto de São José), criada em 1969 e ratificada pelo país em 1992.

No programa Brasilianas.org, veiculado no canal da TV Brasil, em 10 de outubro, o procurador geral da república, Marlon Alberto Weichert, explicou que, a partir do dia seguinte que o país reconheceu a jurisprudência da Corte, a mesma passou a “dizer que Brasil está praticando uma violação de direitos humanos ao deixar impune crimes que foram cometidos antes de 1992”.

Isso porque, além de considerar que a execução sumária de pessoas é uma grave violação aos seus princípios, também entende que a não investigação e não punição de envolvidos em crimes relacionados aos direitos humanos, por si só, já é uma violação de direitos humanos.

“Existe [portanto] entendimento consolidado de que enquanto não forem localizados os restos mortais ou a pessoa, eventualmente, não aparecer com vida, se considera juridicamente que o crime está em andamento”, pontuou.

Eugênia Gonzaga completa que a Lei da Anistia teve um entendimento além do seu texto. “A medida diz que anistia crimes políticos e eleitorais praticados de 1971 a 1979. Daí você pega o caso Rio Centro, que foi uma bomba implantada pelos militares nos anos 1980, e seu inquérito foi arquivado com base na Lei da Anistia”, logo, continua, a interpretação dessa norma não tem sido jurídica, mas sim política.

Resquícios da ditadura nas ruas de hoje


“Os poderes legislativo, judiciário e executivo, ao não cumprirem a sentença [da OEA] põem em risco décadas de avanço dos direitos humanos no país”, pondera Zelic ao lembrar do desaparecimento de seis jovens, em maio de 2006, quando, em meio aos ataques do PCC, a polícia militar de São Paulo executou mais de 500 pessoas. Bem como a tortura de uma estudante de 25 anos, na ação da PM de reintegração de posse da reitoria da USP, no dia 8 de novembro deste ano.

“Um deles pegou na minha nuca, bateu minha cabeça no chão várias vezes, na parte do couro cabeludo, para não deixar hematoma. Eu tentei reagir e mordi a mão do PM que segurava minha boca. Quando fiz isso, eles me falaram: ‘Você conhece o porco?’. O porco é uma bolacha de plástico que enfiaram na minha boca e me impedia de falar e dificultava minha respiração, pois sou asmática. Eu fiquei com isso na boca enquanto eles falavam: ‘é melhor ficar quieta senão vai ser pior’.”, contou ao jornalista Alceu Luís Castilho, do blog Outro Brasil.

A procuradora Eugênia Gonzaga reitera que a posição do Estado brasileiro em relação aos crimes de ditadura põe em risco os direitos humanos na atualidade.

“Há pesquisas feitas em dezenas de países que fizeram essa transição de ditadura violenta para um governo democrático, e em nenhuma situação a transição se deu de maneira completa e eficaz com base na política do esquecimento. A transição que garante que esses fatos não mais se repitam, que eliminem essas práticas de tortura disseminadas nos quartéis e nos aparatos policiais, é a política da verdade, da memória e da justiça”, ressalta.

O Brasilianas.org entrou em contato com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, mas até o fechamento desta matéria não obteve respostas sobre pedido de entrevista.

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