segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Queimando os panos quentes

Lendo ou assistindo os jornais podemos imaginar que o Brasil vive seu pior momento na história: corrupção, bagunça, crime, etc. Parece que vivemos o inferno na terra. Bem, ainda teremos de combater o bom combate por muito tempo até chegarmos a ser uma nação justa, porém, é inegável que vivemos nosso melhor momento enquanto nação – ainda com muito a progredir, mas atravessamos, sim, nossa melhor fase (coisa que o mundo observa, diga-se de passagem).

O que deve nos incomodar sobremaneira, entretanto, é o fato de não resolvermos problemas de nosso passado, e por isso permitirmos que eles voltem a ocorrer. Refiro-me especificamente a longa e tenebrosa noite que cobriu o país por 21 anos (1964-1985).

Os mesmos eivados que praticaram toda a sorte de perversidades durante a ditadura não só permanecem impunes, como tentam adulterar a história, defendendo que aqueles eram os bons tempos, que o Brasil era um país sério e agora estamos vivendo o caos. É exatamente o inverso. Enquanto países completamente arrasados pela segunda guerra mundial foram reconstruídos do zero, nós patinávamos com a ditadura. Possuíamos um governo muito mais corrupto (posto que não fiscalizado), truculento, que oprimia, censurava e torturava. Possuíamos um povo analfabeto e muito mais pobre, além de sermos um país extremamente defasado tecnologicamente. O que a ditadura nos legou foi a inflação, uma dívida monstruosa, uma mídia oligopolizada e extremamente conservadora, uma bomba previdenciária (eles arrecadaram o dinheiro da previdência numa época em que praticamente não havia aposentados e gastaram todo o dinheiro – sabe-se lá com o que), as obras faraônicas, uma polícia assassina e pouco eficaz – que só sabia investigar através dos métodos dantescos da tortura e, quando perdeu esta autonomia, viu o crime crescer sobre suas barbas assustadoramente. As poucas coisas que a ditadura construiu de bom, ela deixou pra nós pagarmos hoje (com juros, é claro). Aí fica fácil: se eu posso gastar à vontade pra deixar outrem pagar, posso construir uma casa de dez milhões de reais. Não sou eu quem vai pagar, mesmo, quem se importa? Os militares, de fato, não se importaram. Muito ao contrário, ainda desprezam aqueles que têm de pagar a conta que eles deixaram.

Mas o pior de tudo, com certeza, é o fato de a tortura, o fastígio da crueldade humana, ter se tornado uma política institucional do regime – na verdade, durante a prática da tortura a ditadura se materializava enquanto política.

Não há argumentos lógicos, não há razão, não há justiça alguma em tolerar que aqueles que praticaram tamanha abominação permaneçam impunes. A tortura é um crime contra a humanidade, contra o ser humano em sua essência, contra todos os valores de qualquer religião, de qualquer ideologia minimamente séria, de qualquer filosofia. A tortura não é um meio para se conseguir confissões ou informações. A tortura é o fim. O fim da humanidade, fim do respeito, fim da decência. E a tortura é, com certeza, a quintessência do que a ditadura militar construiu no Brasil.


Surge uma foto inédita da presidente Dilma sendo interrogada em novembro de 1970. Na hora de tirarem a foto, os covardes dos seus interrogadores, muito machos na hora de torturarem, na hora de arrancarem os olhos dos presos indefesos, de tostarem suas carnes, de enfiarem ferros nas vaginas das mulheres, de pendurarem-nos feito roupa no varal em cima de um extremamente doloroso pau de arara, de simularem afogamentos, de lobotomizarem, de enfiarem agulhas fervendo embaixo das unhas, de torturarem companheiros na frente uns dos outros para que um não suportasse e traísse os que ainda não estavam encarcerados... aqueles, muito machos na hora de esmagarem os mamilos das mulheres com boticões, em aplicarem a palmatória até que a mão dos presos ficasse em carne viva, em aplicarem choques elétricos na “cadeira do dragão” até que os presos tivessem convulsões (às vezes arrancando a língua com os próprios dentes, devido aos espasmos ocasionados pelas descargas elétricas), em apagarem cigarros nos corpos dos presos, em agredi-los com “telefones” (tapas simultaneamente aplicados nos ouvidos, de maneira tão brutal, que às vezes os tímpanos rompiam e o torturado ficava surdo pra sempre)... aqueles, muito homens em prenderem os ditos subversivos na “geladeira” – celas onde eram submetidos a temperaturas gélidas, seguidas de calor insuportáveis, com sirenes alarmando num barulho altíssimo, por dias, enquanto não recebiam comida nem água, e tinham de fazer suas excrescências (que acumulavam) nesta cela fechada e pequena... aqueles, muito corajosos para praticarem toda sorte de espancamentos e humilhações contra os indefesos, toda a barbárie, toda a iniquidade que os mais atrozes dos seres humanos poderiam imaginar em fazer (e o faziam, dado que foram treinados pela própria CIA com as mais eficientes técnicas de tortura já existentes) para seviciar um ser humano, para isto eles eram suficientemente machos.

Agora, na hora de tirarem uma simples foto naquela farsa que denominavam tribunal, aí eles escondiam o rosto. Para isto não eram homens, para tanto não eram machos. Sabiam da vergonha, do opróbrio que os sobrepunha – desde o seu rosto até aquele uniforme maculado que eles chamam de farda. Este disfarce risível das mãos não era por medo de ataques da guerrilha, até porque seus nomes e rostos eram conhecidos. Este disfarce era, sim, o receio de fotografias com suas faces estampadas entrarem para o esgoto da história – calhou que todo o regime que defendiam esta imerso neste esgoto, e seus rostos cobertos são apenas as sombras dos indivíduos que perpetraram esta tragédia na história brasileira.


Sobre estes torturadores, empresto o texto de Jorge Amado para descrevê-los:

“Bando de torturadores, recrutados entre os criminosos mais eficientes. Dos chefes ao último tira. (...) Nomes que dá nojo dizer. Desonra da espécie humana, indignidade vivendo, bestas vestidas de homens, excrescência de podridões, hálito fétido de latrinas.
Lama, sujeira, lixo, miséria, chagas podres, carne leprosa, pus de feridas, vômito e escarro, podridão humana, excremento de prostíbulos! Mais vale, amiga, encher a boca de sujeira que pronunciar o nome desses vermes com corações de feras, soltos sobre o Brasil, presença envilecendo a Pátria. Os assassinos! Frios assassinos, covardes assassinos, bestiais e degenerados! Qualquer palavra suja, qualquer imundo substantivo, é doce palavra de poema lírico ao lado desses nomes podres. Leprosos por dentro, a lepra no coração infame.


A guerrilheira que não esconde o rosto passara 22 dias sendo torturada. Foi condenada e, aos “crimes” aos quais ela foi acusada, alguns – ou muito mal informados, ou também muito abjetos – querem igualar aos crimes que foram cometidos contra ela e outros tantos, com um argumento ridículo de que: “A anistia é para os dois lados”. Não é não, cara pálida. A tortura é um crime imprescritível, e só um estado que não se leva a sério enquanto nação pode permitir que os animais que perpetraram estas atrocidades permaneçam livres, vomitando suas pútridas verdades, e desfilando sua arrogância e impunidade em nossas faces.

Só um país que não se leva a sério, que não respeita a sua memória e os seus mortos pode se permitir passar a vergonha de ir defender na OEA que a lei da anistia é válida, e passar o vexame de ter de ser condenado por um tribunal internacional a rescindir esta lei negligente e esdrúxula – lei esta, claro, também feita pelos macacos fardados que praticaram a tortura.

Só um país que não se leva a sério pode deixar que não passemos nosso passado a limpo, como todas as outras nações dignas o fizeram, jogando na cadeia os putrefatos que praticaram esta ignomínia – condenando os que devem ser condenados, frise-se, com um julgamento justo e imparcial, em uma cadeia onde não sejam torturados, diferentemente do que eles mesmos praticaram enquanto estiveram no poder.


Há quem queira jogar panos quentes, argumentando que devemos olhar para frente e esquecer o passado, evitar “revanchismos”. Bem, de minha parte, jamais deixarei que isto ocorra. Porque, se não bastasse a ideologia e a militância política, se eles me pegassem apenas com um texto como este durante a ditadura militar, antes do meu fim eu ainda imploraria pela morte nas mãos destas bestas-feras.

Há de se honrar o sangue daqueles que pereceram lutando por um mundo melhor nas mãos destes desalmados. Não pode haver perdão ou anistia para estes bárbaros. Seria um insulto a nossa consciência e, especialmente, uma digressão na construção de um belo caminho para o nosso país.


Uma nova forma de censura nos acomete, utilizando meios mais sutis e modernos. Sobre esta imensa dívida aqui escrita não vemos palavra nos jornais e revistas da velha mídia, que pintam o país como o inferno na terra. Tais fatos não são debatidos, pelo contrário, são omitidos dos lares brasileiros.

Pois bem, utilizando as armas de hoje, dou aqui o meu tiro contra esta injustiça execrável. Se vai servir pra alguma coisa ou não, importa menos. Há de se estar em paz com a sua consciência – coisa com a qual os torturadores e os seus burlescos defensores jamais se importarão, já que não a possuem.

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