Há muitos anos assisti ao filme Buonanotte… avvocato! (em português, também com este nome). Nele, o saudoso Alberto Sordi interpreta o papel de um advogado de boa dialética, mas incapaz, em processos criminais com acusações e provas frágeis, de absolver os seus clientes.
Numa sustentação oral, o protagonista expõe aos julgadores uma tese defensiva: “Excelentíssimos juízes, atentem para a cara do réu. O meu cliente, vejam, tem a cara de um ladrão. Ninguém com essa cara de ladrão teria condições de roubar. Para roubar é necessária uma cara honesta, insuspeita. Por isso, peço a absolvição porque ter cara de ladrão não é crime”.
Nos inquéritos policiais decorrentes das operações Vegas e Monte Carlo, nenhum dos suspeitos de ilicitudes tem cara de ladrão, tomado o termo, frise-se, na acepção popular de quem aufere indevidas vantagens econômico-financeiras em prejuízo da sociedade.
Os inculpados exalam, porém, odores de ilicitudes e temos até três governadores envolvidos: Marconi Perillo (PSDB-Goiás), Agnelo Queiroz (PT-DF) e Sérgio Cabral (PMDB-Rio). Perillo chegou a dizer que recebeu Cachoeira apenas uma vez e em audiência formal. Depois dessa afirmação e de dispensar a secretária particular ligada a Cachoeira, apareceu uma ligação telefônica do governador a cumprimentá-lo pelo natalício e a protestar por não haver sido convidado para a festa. Queiroz está embananado com escutas telefônicas clandestinas e Cabral é suspeito de privilegiar a Delta Construções, inclusive com dispensa de licitações.
O senador Demóstenes Torres, pivô do escândalo, possuía cara de honesto e se apresentava, no Parlamento e em entrevistas, em panos de Varão de Plutarco. Na realidade e conforme revelado nas interceptações telefônicas judicialmente autorizadas, atuava como partícipe de uma potente e parasitária organização criminosa.
A primeira desconfiança contra Torres surgiu quando ele afirmou ter sido Gilmar Mendes grampeado e confirmou a interlocução mantida com ele, cujo teor fora antes publicado pela revista Veja. Como se sabe, não houve grampo, mas, segundo indicativos com lastro de suficiência, armação para derrubar o delegado Paulo Lacerda, que apoiou as apurações contra o banqueiro Daniel Dantas.
Outra desconfiança derivou da Operação Vegas, em que o senador é revelado como auxiliar de Cachoeira. Esse inquérito, apesar da gravidade, foi para o “frezzer” do gabinete do procurador Roberto Gurgel, que também não tem cara de ladrão e deveria dar-se por impedido para atuar nos autos.
Torres atacou o tratamento privilegiado dado por Gurgel no escândalo a envolver o então ministro Antonio Palocci, que foi um dos promotores da recondução de Gurgel ao segundo mandato de procurador-geral da República e, como decorrência, titular exclusivo de ações criminais contra detentores dessa excrescência brasileira denominada foro privilegiado. O senador, segundo conversa com Cachoeira, atacava o processo de recondução de Gurgel para que este, pressionado, mantivesse no frezzer o apurado pela Vegas. Num certo momento, e para surpresa geral, o senador passou a ser favorável à recondução de Gurgel e o inquérito permaneceu no congelador. Aliás, só saiu de lá por pressão de parlamentares.
Gurgel, para justificar a geladeira, fez o papel desempenhado por Sordi, ou seja, sustentou o insustentável: declarou aguardar a conclusão da Operação Monte Carlo, que começou em 2010. Só esqueceu o fato de a Operação Vegas, iniciada em 2007, haver findado em 2009, bem antes do início da Monte Carlo. Assim, Gurgel deveria dar-se por impedido, a usar a justificativa do motivo de foro íntimo.
Além de não declarar impedimento, o procurador aproveita da circunstância de estar à frente da ação penal para não comparecer à CPI. Sua alegação é de não poder ser ao mesmo tempo testemunha e responsável pela ação penal no Supremo Tribunal Federal.
Quanto a Cachoeira, está patente que não faz o tipo ultrapassado de comandante da velha Máfia, a disparar e matar para mostrar força e difundir o medo. Ele é adepto do método moderno, que consiste em misturar dinheiro de origem ilícita com capitais de empresários ávidos por obras e concessões de serviços públicos. E de destruir reputações via mídia.
Sobre as correlações com Cachoeira, a defesa do presidente da Delta fez colocação que caberia no filme estrelado por Sordi. Para Cavendish, o diretor de sua empresa Cláudio Abreu atuou por conta própria ao estabelecer vínculos com o contraventor. Cavendish se esqueceu de dizer que a atuação de Abreu resultou em vultosos lucros para a Delta. Não consta que esses resultados monetários tenham sido estornados da contabilidade da empresa e devolvidos ao funcionário. De diretor de prestígio, Abreu assumiu o papel de costas largas.
Não se sabe como terminará a CPI. Sua conclusão não vincula o Ministério Público, mais especificamente Gurgel, que, por dever explicações, tornou-se inconfiável.
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