"Um homem não pode se casar com uma cabra. Pode até manter uma relação estável com ela, mas não pode se casar”.
Foi esse tipo de argumento que o jornalista José Roberto Guzzo utilizou para se contrapor ao casamento civil igualitário, no artigo que fez da revista Veja um dos trending topics folclóricos da semana.
Consistente como declarações do deputado Jair Bolsonaro ou espalhafatosa como piadas de Rafinha Bastos, o texto prosseguiu adiante com uma suposta pretensão de defender os homossexuais dos danos praticados por seu próprio ativismo.
A tendência de olharem para si mesmo como classe à parte, aponta Guzzo, vai na direção oposta à aspiração de serem cidadãos idênticos aos demais.
A lógica é mais ou menos a mesma do vereador Carlos Apolinário, quando propôs a criação do dia do “orgulho hetero”, na Câmara Municipal de São Paulo, em reação à parada gay.
E não se distancia, na essência, daqueles que bradam pelo “orgulho branco”, em contraposição à proclamação da consciência negra.
A comparação, todavia, só reafirma a discriminação, ao desprezar a diferença fundamental que reside na situação de poder ou de vulnerabilidade.
Os movimentos negros e gays (tal como o feminista, por exemplo) se organizam pela igualdade e procuram se afirmar para combater a discriminação – já o "poder branco" busca, ao reverso, reavivá-la.
Orgulho hetero, ou qualquer outra xenofobia parecida, nunca quer igualdade, mas supremacia.
O que esta em jogo é um paralelismo que não existe concretamente. Um olhar formal e abstrato que finge desconhecer a enorme discriminação que mutila quem se encontra à margem.
Só isso justificaria, por exemplo, o sarcasmo no texto de Guzzo com a crescente agressão homofóbica, sob o singelo pretexto de que no cotidiano da violência urbana, afinal de contas, morrem muito mais heterossexuais.
Tal qual o "orgulho hetero" se impunha como resgate da moral e dos bons costumes e a deputada Myriam Rios equiparava homossexualidade e pedofilia, a comparação do casamento gay com a zoofilia é aberrante.
Em todos esses argumentos perpassa, no fundo, a indisfarçável ideia do “homossexualismo” como anormalidade ou desvio – o que pode ser mais anormal no matrimônio, enfim, do que casar com uma cabra?
E é essa consideração do anormal que vitamina enormemente o preconceito na sociedade.
Atribuir aos homossexuais a culpa por sua própria discriminação é redobrar a violência contra quem tem sido vítima. É o mesmo que assinalar às cotas a responsabilidade pela sobrevivência do racismo.
Um cinismo típico que clama pela isonomia apenas quando ela serve de álibi para perpetuar desigualdades.
É preciso, então, aprender com Boaventura de Souza Santos a destrinchar o aparente paradoxo da emancipação: “temos o direito de ser iguais sempre que a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza”.
Em outros termos, defender o casamento aos homossexuais é afirmar a igualdade; construir uma política de combater a homofobia é respeitar a diferença.
Se o próprio jornalista anteviu que a comparação entre casamento igualitário e relação com uma cabra podia ser mesmo ofensiva, defendeu-se antecipadamente com uma emenda tão ruim quanto o soneto:
“A lei não obriga nenhum cidadão a gostar de homossexuais ou de espinafre”.
Que mais se pode dizer?
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