sábado, 6 de julho de 2013

O auge do capitalismo de Estado – por Eduardo Crespo (Carta maior)

Se a América do Sul ainda aspira alcançar o desenvolvimento industrial, a inclusão social e a integração regional como processos duradouros e sustentáveis, a região não terá mais alternativa que subir à nova onda desenvolvimentista e abandonar as premissas privatizadoras do passado.


Há alguns meses, na revista ‘The Economist’, está sendo debatida uma tendência internacional que a publicação nomeia com manchetes do tipo: “A ascensão do capitalismo de Estado”; “A volta da mão visível”; “A era do livre mercado chegou ao fim”; “O Leviatã está de volta”. E a melhor de todas: “O retorno da história”. Outras publicações como ‘Business Week’, ‘Financial Times’ e ‘Foreign Affairs’ fizeram eco do intercâmbio. Além disso, vários livros dedicados a esse tema já são best-sellers. Como acontece atualmente com tantos outros assuntos, o que motiva este debate é a ascensão econômica chinesa e as sérias interrogações que esse processo apresenta ao discurso econômico dominante das últimas décadas.

Fica complicado ao pensamento liberal interpretar um mundo cada dia mais permeado pela economia chinesa e pelas asiáticas em geral. Trata-se de organizações híbridas que combinam formas de propriedade incompatíveis com o paradigma dominante. Destas formas, a mais subversiva e irritante é a empresa pública. No período 2003-2010, um terço de todo o investimento estrangeiro direto registrado nas economias emergentes foi executado por empresas estatais e a porcentagem continua crescendo. Estas companhias ganham licitações para obras de infraestrutura em todos os continentes e simultaneamente adquirem, muitas vezes com a ajuda de fundos soberanos do Estado, empresas privadas estrangeiras.

No ranking das 2000 maiores empresas do mundo que a revista ‘Forbes’ publica se incorporaram 120 empresas estatais de 2004 até 2009. São estatais as 13 maiores companhias de petróleo e gás do mundo, avaliadas por suas reservas.

A China

Ao contrário do que proclama o pensamento econômico dominante, as elevadas taxas de investimento chinesas não encontram sua explicação na idílica frugalidade da “ética confucionista”, mas nas decisões de seus organismos estatais e empresas públicas que são responsáveis por aproximadamente 50% do total. As empresas públicas e mistas, por outra parte, representam cerca da metade do Produto Bruto não agrícola do país. A companhia estatal chinesa típica atua em escala global sem desatender critérios de rentabilidade privados, cotiza em Bolsa e é administrada por uma gestão profissionalizada. Os melhores graduados das universidades chinesas são majoritariamente monopolizados por estas corporações.

Excetuando o caso dos recursos naturais, onde está em jogo a apropriação de rendas, a ascensão deste capitalismo de Estado não coincide nesta ocasião com um assalto ao sector privado. O avanço destas companhias, ao contrário do que pregoa o discurso dominante, impulsiona o investimento e sustenta a inovação privada. Neste “novo capitalismo”, as empresas de particulares se integram nas redes que têm por centro instituições estatais como universidades, centros de investigação pública, forças armadas. O capitalismo chinês é uma formação social pragmática que ainda preserva várias ferramentas das economias “socialistas”, como a capacidade de planejamento com base em planos quinquenais. O pai do “modelo”, Deng Xiaoping, resumiu com maestria em sua célebre frase: “Não importa se o gato é branco ou preto, desde que possa caçar ratos”.

Ainda que os rasgos desse “modelo” sejam mais acentuados na China que em outros países, suas características fundamentais vão ganhando terreno em várias outras regiões do planeta, esboçando uma tendência mundial.

Estamos diante de uma mudança de época. Esta polêmica sobre o “modelo” chinês, ou asiático, não é equiparável às pequenas discórdias sobre questões fiscais ou cambiais que entretiveram a maioria dos economistas ocidentais nas últimas décadas. Tampouco se refere a uma mera questão distributiva. Este debate diz respeito a conceitos fundamentais como o Estado e o Mercado. Também põem em tela de juízo, depois de muito tempo na imprensa dominante mundial, os pilares que sustentam a riqueza das nações e a ascensão destas na escala do poder geopolítico mundial.

As críticas que alguns editores opõem a estas formas de capitalismo nas publicações referidas são verdadeiros monumentos à tenacidade ideológica. Em termos empíricos, é pouco o que podem objetar ao dinamismo chinês. As velhas alusões à corrupção e ao clientelismo estatais soam pouco críveis em vista dos escândalos associados com a última crise internacional e do insolente aumento da desigualdade que acompanhou as políticas neoliberais em todo o planeta. Não se pode reivindicar a transparência de um regime social que só favorece uma minoria.

Em termos teóricos, também não se sustenta a tese de que as empresas públicas absorvem recursos que seriam mais bem utilizados pelo setor privado. Como no idílico mundo da ortodoxia prevalece o pleno emprego, todo recurso utilizado em uma determinada atividade necessariamente é retirado das outras. No mundo real, pelo contrário, todo novo recurso que se emprega em uma atividade contribui para empregar outros recursos em outras atividades.

Os Estados Unidos

As peculiaridades da experiência asiática obrigam a repensar a relação Estado-mercado em todas as latitudes. Nos debates sobre modelos de desenvolvimento é comum que se aponte os Estados Unidos como um próspero contraexemplo de laissez faire e de intervenção estatal mínima. Entretanto, quando se realiza um escrutínio mais exigente, surgem evidências suficientes para afirmar que o Estado norte-americano pratica a política industrial mais ambiciosa e exaustiva do mundo.

O complexo militar-industrial-científico-acadêmico deste país domina a fronteira científica internacional desde a criação da Big Science (“ciência maior” ou “ciência em grande escala”), a complexa rede institucional que vincula a defesa nacional com a investigação básica e com as companhias industriais. Entre suas principais conquistas estão adaptar os resultados da investigação fundamental para transformá-los em tecnologia civil com destino comercial. Esta densa rede de universidades, laboratórios e centros de investigação, que operam junto a entidades civis e militares, é uma herança da Segunda Guerra Mundial e seus empreendimentos tecnológicos colossais, como o célebre Projeto Manhattan, do qual surgiram as primeiras bombas atômicas. Suas atividades depois se estenderam sobre o conjunto da economia (e da política) norte-americana mediante o financiamento decreto ou indireto de toda a atividade científica considerada estratégica.

Desde o pós-guerra fica difícil – se não impossível – identificar algum setor competitivo da economia estadunidense que não tenha surgido desta malha institucional. Convidamos o leitor a perguntar-se: quais são as inovações básicas desenvolvidas em exclusividade pelo setor privado? Neste caso, a particularidade dos Estados Unidos não é que a ingerência do Estado ali seja maior ou menor que em outros países, mas que invariavelmente são empresas privadas as que acabam colhendo os frutos comerciais do impulso público à inovação. Os analistas que falam de um estado mínimo nos Estados Unidos parecem não advertir que o aparato militar norte-americano está presente em quase todos os cantos do planeta.

O Leviatã nos Estados Unidos não volta. Ele nunca foi embora.

A América do Sul

Durante o auge neoliberal, ao contrário, as elites da América do Sul, em diferentes graus, aceitaram desmantelar as instituições desenvolvimentistas. Inclusive no país aonde o desenvolvimentismo chegou mais longe, no Brasil, Fernando Henrique Cardoso, em um discurso de 1994 às vésperas de assumir como presidente declarou que chegava para terminar com a “Era Vargas”. Esta etapa se estendeu dos anos 30 até a crise da dívida externa dos anos 80 e se distinguiu por uma generalizada “intromissão” estatal na economia e pela criação de grandes empresas e organismos públicos. Vinte anos depois é forçoso perguntar-se: o que seria da economia brasileira sem a Petrobras, a Vale, a Embraer, a Embrapa e o BNDES, todas elas criações dessa era de desenvolvimentismo estatal que devia ser sepultada?

E, no caso argentino, as perguntas não são diferentes. Além de tudo aquilo que temos como um presente da natureza, que novas atividades devemos à iniciativa privada desde que começaram a soprar os ventos privatizadores? Inclusive o mesmíssimo pacote tecnológico do boom exportador argentino, a soja transgênica e o herbicida todo terreno, não foram gestado por nossos irritados agricultores, mas por um provedor do exército estadunidense, beneficiário do programa nacional ianque.

É relevante enfatizar que a importância da ingerência pública nunca se refere a um dilema entre empresários maus contra Estado bom. Trata-se de uma questão de velocidades. Os grandes saltos que o desenvolvimento capitalista impõe, como a inovação fundamental, ou a superação do subdesenvolvimento por um país ou uma região, requerem tarefas hercúleas, que se são deixadas ao arbítrio da iniciativa privada, ou demandam séculos para serem executadas ou jamais são concluídas.

Haveriam florescido a comunicação por satélite, a energia nuclear, os computadores ou a Internet em um mundo organizado por sinceros admiradores de Vargas Llosa?

Cabe interrogar-se pelas tarefas pendentes na América do Sul. Se ainda aspira alcançar o desenvolvimento industrial, a inclusão social e a integração regional como processos duradouros e sustentáveis, a região não terá mais alternativa que subir à nova onda desenvolvimentista e abandonar as premissas privatizadoras do passado que ainda continuam pesando nas interpretações e nas políticas que são executadas (ou que se deixam de executar) no presente.

Ao contrário, se optarmos por continuar na direção (mais cômoda) que impõe o “mercado”, o mais provável é que sigamos avançando, mas a passo de tartaruga, como provedores de matérias-primas para o capitalismo de Estado que nos arrasta da Ásia.


* Graduado em ciência política e em economia na Universidade de Buenos Aires (UBA) e professor da Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro.

Tradução: Liborio Júnior

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