No país da novilíngua, direito assegurado em lei é tratado como privilégio
Há muito tempo nós sabemos que o uso de palavras inadequadas é uma das formas menos inocentes e mais eficazes de manipulação política.
Permite esconder a realidade, confundir o cidadão comum e estimular reações que não têm apoio nos fatos.
Estudioso aplicado dos regimes stalinistas, a quem acusava de manipular uma ideologia igualitária criada pelo pensamento comunista para construir uma ditadura opressiva, George Orwell criou o termo novilíngua para explicar o fenômeno.
Com isso, explicava, era possível fazer uma coisa – e fingir que se praticava seu oposto.
Cinco décadas depois da morte de Josef Stalin, velhas técnicas stalinistas de propaganda foram despidas de sua origem primeira e servem a qualquer causa, a qualquer ideologia, mesmo a mais conservadora: esconder fatos desagradáveis, falhas humanas, gestos incoerentes, contradições e mesmo mentiras.
É tudo retórica. Seu método, no entanto, é o mesmo. Consiste em usar uma questão real para deformá-la ao sabor de propósitos e conveniências de momento.
No Brasil de 2013 a novilíngua está na primeira página dos jornais.
Empregar o termo “privilegiados” para se referir aos condenados na ação penal 470 e usar a expressão “privilégios” para se referir às condições no presídio da Papuda é prestar um favor desnecessário às autoridades comandadas por Joaquim Barbosa.
Um exame criterioso dos fatos mostra que, pelo contrário, desde o início o STF tomou um conjunto de medidas jurídicas que é adequado classificar como perseguição em vez de prestação de favor ou benefício indevido.
Já era absurdo falar em privilégio para cidadãos condenados num julgamento “exemplar” onde foram aceitas várias medidas excepcionais e nada exemplares. Para quem ainda fica surpreso quando lê isso, vamos recordar rapidamente. Quem já está cansado de ouvir os argumentos, pode pular para o final do item “F”.
A) Negou-se o direito a um duplo grau de jurisdição, garantia constitucional reservada a todo brasileiro que não tem foro privilegiado e assegurado aos mensaleiros PSDB-MG e também no DEM do Distrito Federal.
B) Na falta de provas capazes de demonstrar a culpa dos réus além de qualquer dúvida razoável, aceitou-se uma teoria exótica, do domínio do fato, que não tem a mais remota ligação com o caso em questão.
C) As penas foram agravadas artificialmente, em debates onde se disse, explicitamente, que a prioridade era garantir que os réus fossem encarcerados – e não que a justiça deveria ser feita.
D) Os réus foram acusados de desviar R$ 73,8 milhões do Banco do Brasil, mas a própria instituição nega, oito anos depois da denúncia, que qualquer centavo tenha sido extraído indevidamente de seus cofres.
E) Os petistas foram acusados de encobrir o esquema através de contratos fictícios com o Banco Rural, mas a Polícia Federal garante que foram verdadeiros e envolviam empréstimos reais.
F) investigações que poderiam ajudar na inocência de determinados réus até hoje se encontram sob segredo de justiça. O julgamento já acabou e o segredo continua.
Também é errado falar em privilégio na fase de execução das penas. Presos num feriado de 15 de novembro, até hoje réus com direito a cumprir pena em regime semiaberto são mantidos em regime fechado – a última novidade é avisar que mesmo quem tiver conseguido trabalho fora da prisão deverá, em nome da ”igualdade”, aguardar no fim da fila pelo exame de seus pedidos. Sabemos o que isso significa, certo? Também sabemos que o fatiamento dos mandatos de prisão foi anunciado como uma medida que iria beneficiar os réus. Na prática, o que se vê é uma forma de garantir que fiquem em regime fechado – de qualquer maneira.
Os presos foram deslocados para a Papuda em dia de feriado nacional, num esforço obvio para usar seu infortúnio – a perda de liberdade é sempre um infortúnio para cidadãos convencidos de seu valor, certo? – como ilustração para um evento de propaganda.
Um preso como José Genoíno está proibido de dar entrevistas, o que atenta contra a liberdade de expressão.
Que privilégios são estes?
Na realidade, o que se quer é negar o direito de uma pessoa pelo fato de que nem sempre ele se encontra ao alcance de todos.
Equivale a obrigar um cidadão a pagar, como indivíduo, pelas irresponsabilidades e omissões acumuladas por gerações e gerações que estiveram a frente do Estado.
Qualquer calouro de ciência política sabe que, num país onde a distribuição de renda e a desigualdade seguem uma tragédia, a luta pela igualdade é necessária e positiva.
Mas, na situação atual, basta que os meios de comunicação, que definem o que é a opinião publicada, que muitos confundem com a opinião pública, tenham disposição de dar crédito a novilíngua quando ela convém. Pela falta de um componente indispensável a seu trabalho, o espírito críticos, eles referendam a manipulação do “privilégio” e do “privilegiado.”
Na ficção de Orwell, a função do ministério da Verdade era divulgar mentiras, não é mesmo?
Só quem nunca abriu um gibi de sociologia acredita que a vida real é um simples decalque das planilhas de renda do IBGE.
A experiência demonstra que uma pessoa pode ser privilegiada, do ponto de vista econômico e social, mas perseguida – até com violência – do ponto de vista político.
Milionário, o empresário Rubens Paiva foi preso, torturado e massacrado num ritual animalesco sob o regime militar.
Mortos com um tiro na nunca, na guerrilha do Araguaia, quando estavam desarmados e dominados, dezenas de militantes do PC do B haviam saído de famílias de classe média, tinham diplomas universitários e seriam, em comparação aos demais brasileiros, cidadãos privilegiados.
E até hoje o Estado brasileiro não foi capaz de dar qualquer notícia sobre o paradeiro de Rubens Paiva nem desses estudantes do Araguaia, situação que transforma a dor de seus familiares num sofrimento idêntico ao dos parentes de Amarildo, o humilde pedreiro torturado e morto pela PM numa favela do Rio de Janeiro em 2013.
Nenhum torturador de Rubens Paiva foi preso, nem julgado nem condenado. Idem para os estudantes do PC do B. Idem, possivelmente, para os carrascos de Amarildo.
Centenas de milhares de brasileiros são vítimas, todos os dias, da incompetência da policia para prender e controlar a violência de criminosos comuns. Milhões de mandados de prisão destinados a prender ladrões de automóvel, assaltantes de resistência, quadrilhas de sequestradores, não são cumpridos.
Vítimas de assalto e de roubo muitas vezes sequer se animam a fazer qualquer denúncia porque tem certeza de que será inútil – ou mesmo arriscado, caso tenham de identificar suspeitos.
Estrutura de classe? Privilégio?
Do playboy Doca Street ao doutor Osmany Ramos, sem falar em vários casos de médicos-monstro de nossos consultórios, e até banqueiros especialmente inescrupulosos, o inferno de nosso sistema prisional possui exemplos de habitantes dos degraus superiores que foram colocados atrás das grades. Embora a impunidade seja grande, vez por outra até figurões do judiciário são apanhados e denunciados.
O discurso contra o privilégio dos prisioneiros da ação penal 470 também alimenta uma operação de marketing político. É uma arma eleitoral, na realidade.
Procura associar a condição de riqueza e privilégio econômico a lideranças de um governo que tem um histórico reconhecido de combate a desigualdade na renda e na ampliação das oportunidades para os mais pobres. A tentativa é mostrar que todos os governos são iguais e que nenhum político tem valor.
É aquilo que os estudiosos chamam de desconstrução.
E assim voltamos ao período em que nasceu a novilíngua. Foi o tempo dos Grandes Expurgos, quando, através da violência e da ditadura, Josef Stalin eliminou uma geração inteira de combatentes e lideranças da vida política da antiga União Soviética e consolidou um poder absoluto que manteve até a morte, quase vinte anos depois.
“Morte aos cães!” gritava o procurador geral, Andrey Vichinsky. Aos condenados, punidos com a pena de morte, exigia-se que aceitassem suas penas, admitissem suas falhas, confessassem erros e, em especial, traições. Sim, esta palavra, traição, era essencial. O importante, de qualquer modo, era que morressem depois de confessar. Não podia haver ilusão quanto a seu destino na história. Estavam condenados e precisavam admitir sua culpa, sua falha, sua fraqueza.
É assim que, 80 anos depois, em outro país, em outro contexto, sob outro regime, se fala em privilégios e privilegiados. É uma parte importante dos combatentes da ditadura, onde se encontram, e eu duvido que seja pura coincidência, os mais decididos, mais resolutos, mais corajosos, aqueles que mais estiveram comprometidos com mudanças reais e com a construção de uma democracia de conteúdo social, aliada dos mais pobres, dos excluídos, dos negros, que devem ser silenciados.
Um quarto de século depois da democratização do país, os brasileiros convivem, pela primeira vez, com um sistema político onde a polarização política reflete, menos remotamente do que gostariam nossos sociólogos da aristocracia, uma certa divisão de interesses de classe na sociedade. Não vamos criar fantasias nem caricaturas. Todos sabemos dos limites e falhas inesquecíveis do governo Lula-Dilma desde 2003.
Mas eu acho difícil negar que, apesar disso, os brasileiros vivem uma situação nova na sociedade, onde as camadas inferiores obtiveram direitos e conquistas.
Deixo para os historiadores e os eruditos verdadeiros e independentes, que não estão na folha de pagamentos da novilíngua industrial, nem usam uma bola de cristal de uma cigana sobrancelhuda que só faz profecias para anunciar desastres, a tarefa de encontrar outro governo, em nossa história, que tenha demonstrado um empenho tão profundo com a preservação do emprego, a melhoria do consumo e a distribuição de renda. Num período de capitalismo de abismo, este é o grande diferencial, a primeira fronteira, o ponto de partida, a luta inicial. É a resistência, num universo onde economistas do Estado mínimo dizem que comer bife todo dia é extravagância.
É por causa disso que palavras fora do lugar, como “privilégio” e “privilegiados” têm tanta importância. É ali que está o alvo a ser atingido pela novilíngua.
Não são os prisioneiros, alguns competentes, outros trapalhões, outros as duas coisas. Talvez até haja corruptos entre eles, vamos admitir, até porque sabemos que podemos encontrar essas pessoas em todos os cantos de nosso universo político, em casos até mais cínicos e escancarados. Mas nós sabemos que, sem provas, isso é igual a nada.
O que se quer, muito simplesmente, é impedir o debate sereno de fatos e provas que podem mostrar o que houve – e não aquilo que se quer fazer acreditar que aconteceu no julgamento da AP 470.
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