sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Trecho 3 de Anti-Dühring, de Friedrich Engels (Boitempo)

“No momento em que a sociedade se apossa dos meios de produção e os utiliza para a produção mediante socialização imediata, o trabalho de cada qual, não importando quão distinto seja seu caráter especificamente útil, é de antemão e diretamente trabalho social. Nesse caso, a quantidade de trabalho social contido num produto não precisa primeiro ser aferida por alguma via indireta: a experiência cotidiana indica diretamente a quantidade que, em média, se faz necessária. A sociedade pode simplesmente calcular quantas horas de trabalho estão contidas numa máquina a vapor, num hectolitro de trigo da última colheita, em cem metros quadrados de tecido de determinada qualidade. Nesse caso, portanto, nem pode lhe ocorrer a ideia de expressar as quantidades de trabalho depositadas nos produtos numa medida apenas relativa, oscilante, insuficiente, que antes era incontornável como quebra-galho – num terceiro produto, enfim –, e não em sua medida natural, adequada, absoluta, que ela já conhece de modo direto: o tempo. Da mesma forma, não ocorreria à química expressar os pesos atômicos de modo relativo, pela via indireta do átomo de hidrogênio, no momento em que tivesse condições de expressá-los de modo absoluto, em sua medida adequada, a saber, em peso real, em bilionésimos ou quadrilionésimos de grama. Portanto, sob os pressupostos colocados, a sociedade não atribui valores aos produtos. Ela não expressa de modo enviesado e sem sentido o fato simples de cem metros quadrados de tecido exigirem, digamos, mil horas de trabalho para ser produzidos dizendo que eles valeriam mil horas de trabalho. Todavia, também nesse caso a sociedade deverá saber quanto trabalho cada objeto de uso necessitará para sua confecção. Ela terá de organizar o plano de produção segundo os meios de produção, entre os quais figuram especialmente as forças de trabalho. A utilidade dos diversos objetos de uso, ponderados entre si e em relação às quantidades de trabalho necessárias para sua confecção, determinará em última análise o plano. As pessoas resolvem tudo de maneira bem simples, sem a interveniência do tão aclamado “valor”[h].
O conceito de valor é a expressão mais universal e, em consequência, mais abrangente das condições econômicas da produção de mercadorias. No conceito de valor, está contido o embrião não só do dinheiro, mas também de todas as formas mais desenvolvidas da produção e da troca de mercadorias.
No fato de o valor ser a expressão do trabalho social contido nos produtos privados já reside a possibilidade da diferenciação entre o trabalho social e o trabalho privado contido no mesmo produto. Assim, se um produtor privado continuar a produzir à maneira antiga enquanto o modo social de produção progride, ele terá uma sensação bem palpável dessa diferença. O mesmo acontece quando o conjunto dos confeccionadores privados de determinado gênero de mercadorias produz uma quantidade delas que excede a demanda social. No fato de o valor de uma mercadoria só poder ser expresso em outra mercadoria e só poder ser realizada na troca por ela reside a possibilidade de a troca nem mesmo acontecer ou não tornar efetivo o valor correto. Por fim, ingressa no mercado a mercadoria específica chamada força de trabalho, determinando-se seu valor, como o de qualquer outra mercadoria, segundo o tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção. Portanto, na forma-valor dos produtos está contida embrionariamente toda a forma de produção capitalista, o antagonismo entre capitalistas e trabalhadores assalariados, o exército industrial de reserva, as crises. Querer abolir a forma de produção capitalista mediante a instituição do “valor verdadeiro”[159] significa, por conseguinte, querer abolir o catolicismo mediante a instituição do “verdadeiro” papa[160] ou querer instituir uma sociedade em que os produtores finalmente dominariam seu produto mediante a execução consequente de uma categoria econômica, que é a expressão mais abrangente da escravização do produtor por seu próprio produto.
Tendo a sociedade produtora de mercadorias desenvolvido a forma do valor inerente às mercadorias como tais até a forma de dinheiro, logo aparecem à luz do dia diversos embriões ainda ocultos no valor. O efeito seguinte e mais essencial é a generalização da forma da mercadoria. O dinheiro impinge a forma de mercadoria também aos objetos até ali produzidos para o consumo próprio direto, arrastando-os para dentro da troca. Desse modo, a forma de mercadoria e o dinheiro penetram na economia doméstica do sistema comunitário socializado diretamente para a produção, rompe um vínculo comunitário após o outro e dissolve o sistema comunitário num aglomerado de produtores privados. O dinheiro substitui primeiramente, como se pode observar na Índia, o cultivo comum do solo pelo cultivo individualizado; mais tarde, pela repartição definitiva, ele dissolve a propriedade comum da terra de cultivo em sua forma de redistribuição periodicamente reiterada (por exemplo, nas propriedades rurais às margens do rio Mosela, de modo incipiente também na comunidade russa); por fim, ele pressiona pela distribuição da posse comum ainda restante da floresta e da pastagem. Independentemente de outras causas fundadas no desenvolvimento da produção que também colaboraram nesse ponto, o dinheiro permanece o meio mais poderoso em termos de incidência sobre o sistema comunitário. (...)
Anteriormente (no item VI da seção “Economia política”[161]), vimos que é uma contradição em si falar em valor do trabalho. Visto que, sob certas condições sociais, o trabalho não gera só produtos, mas também valor, e esse valor é medido pelo trabalho, este não pode ter um valor específico, assim como o peso em si não pode ter um peso específico nem o calor uma temperatura específica. Porém, a característica de toda a confusão social que matuta sobre o “verdadeiro valor” é imaginar que, na atual sociedade, o trabalhador não estaria recebendo o “valor” cheio do seu trabalho e que o socialismo teria sido vocacionado para resolver isso. Disso faria parte, então, em primeiro lugar, descobrir qual é o valor do trabalho, e este se descobre quando se tenta medir o trabalho não pela sua medida adequada (ou seja, pelo tempo), mas pelo seu produto. O trabalhador deve receber o “resultado cheio do trabalho”[162]. Não só o produto do trabalho, mas também o próprio trabalho deve ser diretamente permutável pelo produto, isto é, uma hora de trabalho pelo produto de outra hora de trabalho. Isso, porém, de imediato apresenta um senão bastante “duvidoso”. O produto inteiro é distribuído. A função progressiva mais importante da sociedade, a acumulação, é subtraída da sociedade e confiada às mãos e à arbitrariedade dos indivíduos. Os indivíduos podem fazer com seus “resultados” o que quiserem; na melhor das hipóteses, a sociedade permanecerá tão rica ou tão pobre como sempre foi. Portanto, os meios de produção acumulados no passado só foram centralizados nas mãos da sociedade para que todos os meios de produção que vierem a ser acumulados no futuro sejam de novo fragmentados nas mãos dos indivíduos. Afrontamos nossos próprios pressupostos; chegamos a uma pura absurdidade.
O que se quer é trocar o trabalho líquido, a força de trabalho ativa, pelo produto do trabalho. Nesse caso, ele é mercadoria, tal e qual o produto pelo qual se pretende trocá-lo. Nesse caso, o valor dessa força de trabalho de modo algum é determinado pelo seu produto, mas pelo trabalho social nele corporificado, ou seja, conforme a atual lei do salário. Mas é justamente isso que não deve acontecer. O que se quer é que o trabalho líquido, a força de trabalho, seja permutável pelo seu produto cheio – o que quer dizer que ele seja permutável não pelo seu valor, mas pelo seu valor de uso; o que se quer é que a lei do valor vigore para todas as demais mercadorias, mas seja revogada para a força de trabalho. Essa confusão que anula a si mesma é que se oculta atrás do “valor do trabalho”.
Portanto, a “troca de trabalho por trabalho segundo o princípio da estimativa igual” é, na medida em que ela faz sentido, a trocabilidade de produtos de trabalho social igual uns pelos outros, ou seja, a lei do valor é a lei fundamental exatamente da produção de mercadorias e, portanto, também da forma suprema dela, da produção capitalista. Ela se impõe na atual sociedade do mesmo modo singular como conseguem se impor as leis econômicas numa sociedade de produtores privados: como lei natural inerente às coisas e relações, que atua cega e independentemente da vontade e da iniciativa do produtor. Ao alçar essa lei à condição de lei fundamental de sua comuna econômica e exigir que esta a execute com plena consciência, o sr. Dühring faz da lei fundamental da sociedade vigente a lei fundamental de sua sociedade fantasiosa. Ele quer a sociedade vigente, só que sem suas mazelas. Ao fazer isso, ele se move exatamente no mesmo terreno que Proudhon. A exemplo deste, ele quer eliminar as mazelas que resultaram da evolução da produção de mercadorias para a produção capitalista fazendo valer para elas a lei fundamental da produção de mercadorias, cuja ação justamente ocasionou essas mazelas. A exemplo de Proudhon, ele quer abolir as consequências reais da lei do valor mediante consequências fantasiosas.
Mas, por mais altivo que seja o porte com que nosso moderno Dom Quixote monta seu majestoso Rocinante, o “princípio universal da justiça”[163], seguido do seu valoroso Sancho Pança, Abraham Enss[164], em sua expedição de cavaleiro andante na conquista do elmo de Mambrino, o “valor do trabalho”, receamos, mesmo, que ele nada trará para casa além da já tão familiar bacia de barbeiro[165].”
a Enunciei, já em 1844, que a referida ponderação de utilidade e dispêndio de trabalho na decisão a ser tomada quanto à produção é tudo o que resta do conceito de valor da economia política numa sociedade comunista (Deutsch-Französische Jahrbücher, p. 95 [Friedrich Engels, “Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie”, em Karl Marx e Friedrich Engels, Werke, v. 1, p. 499]). Porém, a fundamentação científica dessa tese, como se vê, só se tornou possível mediante O capital de Marx. (Nota de Engels.)
159 Eugen Dühring, Kritische Geschichte, cit., p. 78. Weitling, a quem Engels reiteradamente toma como ponto de comparação na crítica a Dühring, também utilizou o conceito de “valor verdadeiro” (Wilhelm Weitling, Garantien, cit., p. 51). (N. E. A.)
160 Karl Marx, Das Kapital, cit., p. 65 (MEGA-2 II/6, cit., p. 116) [ed. bras.: O capital, Livro I, cit., p. 162]. (N. E. A.)
161 Cf. p. 223-8. (N. E. B.)
162 Eugen Dühring, Cursus der Nationalund Socialökonomie, cit., p. 324. (N. E. A.)
163 Eugen Dühring, Cursus der Nationalund Socialökonomie, cit., p. 282. (N. E. A.)
164 Abraham Enss, Engels Attentat auf den gesunden Menschenverstand oder Der wissenschaftliche Bankerott im Marxistischen Sozialismus. Ein offener Brief an meine Freunde in Berlin (Grand-Saconnex/Suíça, 1877). (N. E. A.)
165 Alusão ao romance de Miguel de Cervantes Saavedra, El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha [ed. bras.: O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, trad. Sérgio Molina, São Paulo, Editora 34, 2011-2, 2 v.]. (N. E. A.)


ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring: a revolução da ciência segundo o senhor Eugen Dühring. São Paulo: Boitempo, 2015, pp. 343-346.

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