Desde 2002, há um movimento de alta de preços no mundo, produzido basicamente por seis fatores: 1. Expansão da economia mundial, que passou de um crescimento de 3,2% entre 1998 e 2002 para 4,6% de 2003 a 2007. 2. Fantástico déficit em conta corrente dos Estados Unidos, que subiu de 213,5 bilhões de dólares (ou 2,44% do PIB), em 1998, para 738,6 bilhões de dólares (ou 5,3% do PIB) em 2007. 3. Desvalorização do dólar no mercado internacional (sem ser acompanhada por uma inflação interna nos EUA) da ordem de 40% entre 2002 e 2008. 4. Como o dólar é a unidade de conta do mercado internacional, a desvalorização estimulou importante aumento dos preços (nominais em dólares) das commodities. 5. Déficit comercial e política estratégica dos EUA para conter a União Soviética no período da Guerra Fria, que foram absolutamente instrumentais para a expansão econômica da China, da Índia e, delas, para os seus parceiros asiáticos. A expansão da renda e da urbanização desses países aumentou a demanda de bens agrícolas e minerais, principalmente aqueles controlados por cartéis ou cuja oferta é pouco elástica a curto e médio prazo. 6. “Descoberta” dos hedge funds de que podiam especular no mercado de commodities, cujos preços, conseqüentemente, se descolaram dos fundamentos.
O mundo vive um fenômeno muito conhecido, que é a vantagem dos devedores quando a receita cresce por efeito da inflação e as dívidas não têm correção monetária. O mundo emergente estava endividado em dólares com taxas de juro flutuantes basicamente controladas pelo mercado americano. O aumento da demanda física de suas exportações, acompanhado do aumento dos preços em dólares nominais (inflação externa não internalizada nos EUA), produziu um enorme aumento do valor das exportações dos emergentes. Como nem a amortização nem a taxa de juros (que corrige o valor do serviço da dívida) cresceram, eles receberam um bônus que aliviou a sua situação externa. O Brasil é testemunha desse fato.
O quadro sugere que em algum momento os EUA terão de ajustar o seu déficit em conta corrente e, provavelmente, internalizar parte da desvalorização externa do dólar. Este desandou de uma vez a partir do início de 2002. Sua alternativa é perdê-lo como unidade de conta do comércio internacional e principal moeda-reserva. A crise atual iniciada pelo subprime não é esse ajuste. É apenas a ponta do iceberg que se esconde embaixo do fato de que os EUA durante muitos anos (praticamente desde 1997) vêm consumindo e investindo acima de sua capacidade produtiva.
Não tenhamos ilusões. Os EUA não são o que são por acaso. Vão, como no passado, fazer o que deve ser feito, depois que resolverem a atual crise interbancária que poderia causar uma recessão fora de controle. E vão fazê-lo quando ficar visível a internalização da inflação externa do dólar: vão aumentar o juro, diminuir o crescimento (e o emprego) e reduzir o déficit em conta corrente. Isso valorizará externamente sua moeda e reduzirá (ou eliminará) o crescimento dos preços das commodities. Quando vemos Paul Volcker se aproximar de Barack Obama e sugerir que o “Federal Reserve andou perto da ilegalidade”, com o seu suporte descuidado ao sistema financeiro, devemos tremer na base. Como tremeu, aliás, o grande ministro Mário Henrique Simonsen, quando soube, em agosto de 1979, que Jimmy Carter convidara Volcker para a presidência do Fed.
Mas esse não é, hoje, o nosso problema, nem o dos EUA. Hoje temos um cabo-de-guerra entre o Banco Central e o Ministério da Fazenda a respeito de saber se estamos ou não na iminência de uma superinflação que precisa ser prevenida com um superaumento da taxa Selic, que passou de 11,25% (já a maior do mundo) para 11,75%, e deve atingir qualquer coisa entre 12,50% e 13,25% em dezembro, de acordo com a “ciência” de que dispõe cada analista. O problema é que não há sinais claros de excesso de demanda. O grosso do aumento dos preços vem de um número limitado de produtos (estimulados externamente e por condições climáticas passageiras), que para ser alcançados por uma redução da demanda exigirão um aumento do desemprego e uma queda da renda real. O pior é que daqui a nove ou dez meses, quando a inflação voltar à meta (como voltaria naturalmente), algum econometrista vai provar que isso foi o efeito do aumento preventivo da taxa de juro.
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