O máquina de moer reputações acionada dentro da Polícia Federal para punir o delegado Protógenes Queiroz tem funções seletivas. Desde a prisão do banqueiro Daniel Dantas, em julho de 2008, a cúpula da PF dedica-se integralmente a tentar indiciar criminalmente Queiroz, acusado de vazamentos e práticas ilegais durante a Operação Satiagraha. Mas nem todo mundo recebe o mesmo tratamento. A Corregedoria-Geral da PF, órgão responsável por investigar os crimes cometidos por policiais federais, arquivou, sem publicidade nem vazamentos, em 29 de janeiro, um processo de tortura supostamente praticada por ninguém menos que o delegado Luiz Fernando Corrêa, diretor-geral da instituição.
Corrêa foi acusado de deter ilegalmente e torturar, à base de chutes, pauladas, socos e eletrochoques, a empregada doméstica Ivone da Cruz, em 21 de março de 2001, nas dependências da Superintendência da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Ivone, então com 39 anos, trabalhava na casa de uma mulher identificada apenas como Ocacilda, também conhecida pelo apelido de “Vó Chininha”, avó da mulher do delegado, Rejane Bergonsi. Presente durante um assalto à casa da patroa, Ivone acabou apontada como suspeita de cumplicidade com os criminosos, embora nenhuma prova ou evidência tenha sido levantada contra ela até hoje. Corrêa era, então, chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) da PF em terras gaúchas.
Embora o combate ao tipo de crime cometido na casa de Vó Chininha, então com 90 anos, seja de competência exclusiva das polícias estaduais, Corrêa achou por bem tomar as dores da família, logo depois de avisado do assalto pela mulher, por telefone, na manhã do dia 20 de março de 2001. Sem autorização ou mandado judicial, o delegado atropelou a autoridade da Polícia Civil do Rio Grande do Sul e colocou uma equipe da DRE no encalço de Ivone da Cruz, na manhã do dia seguinte. A empregada foi encontrada em casa, um barraco no fundo da residência de uma amiga, num bairro de Alvorada, município pobre e violento da Grande Porto Alegre. Estava em companhia dos quatro filhos, todos menores de idade.
Os dois policiais, lembra Ivone, chegaram em uma caminhonete de luxo branca, a qual ela iria reconhecer, depois, como uma Blazer. Ambos se identificaram como policiais civis, mas não apresentaram carteiras nem distintivos. Para Ivone, afirmaram estar ali para levá-la à 8ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre, onde, na madrugada do dia 20 de março, ela tinha comparecido para falar, como testemunha, do assalto à casa de Vó Chininha. Naquela oportunidade, ela contou ao delegado civil Fernando Rosa Pontes que dormia no chão de uma sala, ao lado do quarto da idosa, quando foi acordada por dois homens armados. Eles roubaram dinheiro e objetos da casa. Depois, foram à cozinha comer e beber, antes de fugirem.
O delegado Pontes registrou a ocorrência e avisou Ivone da possibilidade de ela ser chamada à delegacia novamente para, no caso de haver prisões de suspeitos, fazer reconhecimentos. Quando foi abordada pelos dois policiais da Blazer branca, Ivone pensou nisso. Foi essa, aliás, a justificativa apresentada pela dupla. Apreensiva, ela deixou as crianças com a amiga e seguiu no carro. Quando o automóvel parou, ela percebeu, de cara, duas coisas. O lugar não era a 8ª DP. Nem havia suspeito nenhum para ser reconhecido.
A doméstica foi levada a uma sala, nos fundos de um pátio, na Superintendência da PF, em Porto Alegre, onde um relógio na parede marcava meio-dia. Um círculo formado por quatro homens a aguardava. “A primeira coisa que fizeram foi me puxar pelos cabelos e me jogar de cara no chão”, conta. “Eu quis olhar para quem me bateu e levei um tapa forte na cabeça.” Em seguida, diz a empregada, foi algemada e colocada de joelhos. Seguiram-se, então, por aproximadamente seis horas, sessões de pancadas na cabeça, chutes, socos e violentos choques elétricos. “Eles tinham uma maquininha que encostavam nas minhas costas”, lembra Ivone. “A dor era tanta que desmaiei duas vezes”, afirma. Assim mesmo, não confessou crime algum.
O relógio da parede marcava 18 horas quando, moída de pancada e apavorada, segundo conta, foi colocada em uma cadeira e a fizeram assinar um termo de declarações que começa pelas linhas seguintes: “Aos 21 (vinte e um) dias do mês de março do ano de 2001, na Sede da Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal, no Estado do Rio Grande do Sul, onde presente se encontrava o Delegado de Polícia Federal Luiz Fernando Corrêa”. O documento tem uma página e meia. Trata-se de um arrazoado de informações isentas de novidades prestadas por Ivone da Cruz, na condição de testemunha, em termos semelhantes aos do depoimento prestado por ela na Polícia Civil.
Estranhamente, o termo, além de assinado por Corrêa e pela escrivã Aline Guerra Menchaca, tem também a assinatura de duas testemunhas. Três vizinhas de Vó Chininha, ouvidas como testemunhas pelo delegado Corrêa na Superintendência da PF, uma no mesmo dia, e outra, dois dias depois, não contaram com essa cautela. Uma delas, identificada apenas pelo nome de José Pessoa (RG 1016484378/SSP-RS), segundo Ivone, tinha a aparência de um mendigo. “Pegaram ele na rua, para falar que eu não tinha apanhado”, afirma. A outra testemunha foi o agente federal Gilberto Antônio Fritsch Feijó. Em seguida, Ivone foi deixada em um ponto de ônibus, com o dinheiro da passagem e um aviso: se denunciasse a tortura, os filhos pequenos sofreriam as consequências.
Ouvido agora por CartaCapital, Corrêa declarou, em entrevista gravada no gabinete dele, ter interrogado todas as testemunhas no mesmo dia. Trata-se de uma contradição com o conteúdo do processo, e não é a única. A Polícia Federal, embora tenha sido reiteradamente solicitada, negou-se a disponibilizar a sindicância sobre a acusação de tortura contra Corrêa. De acordo com a assessoria de imprensa da corporação, a Corregedoria-Geral não podia “abrir uma exceção”, embora o processo estivesse arquivado. CartaCapital, contudo, teve acesso a todos os documentos graças ao advogado de Ivone da Cruz, Volnei Oliveira, que a atende gratuitamente em Alvorada.
Corrêa ouviu, além de Ivone, apenas uma testemunha no dia 21 de março, Elisabete da Rosa Abruzzi. Ela disse ter visto a empregada ir ao encontro de um carro parado, em atitude suspeita, em frente à casa de Vó Chininha. Outras duas vizinhas, as irmãs Nara e Julia Formanski Casagrande, foram ouvidas no dia 23 de março. “Foram todas no mesmo dia, no mesmo ambiente, separadas apenas por uma divisória fininha”, insiste o diretor-geral, apesar dos registros oficiais das datas no processo. Todas, segundo ele, também contaram com as chamadas “testemunhas de leitura”, como no caso de Ivone da Cruz. Não é, porém, o que consta nos documentos enviados à Justiça Federal.
Nos autos do Ofício 230/01, de 27 de março de 2001, Corrêa assinou o documento de remessa dos depoimentos ao delegado Fernando Pontes, da 8ª DP, no qual ele trata de produzir uma informação estratégica, haja vista a denúncia de tortura feita por Ivone, na mesma delegacia, uma semana antes. Temia, ainda, a possibilidade de ser processado por invadir a competência da Polícia Civil para atender a uma demanda familiar. Assim escreveu Corrêa: “Conforme contato telefônico mantido, no qual, diante do acúmulo de serviço dessa Delegacia, V.Sa. solicitou que procedêssemos na oitiva (interrogatório) das pessoas envolvidas”.
Justamente naquele ano de 2001, antes de ir trabalhar na casa de Vó Chininha, Ivone havia chegado de Espumoso, no interior do Rio Grande do Sul, onde nasceu. Recém-separada, viajou à capital em busca de um emprego para sustentar os filhos. Logo depois de chegar a Porto Alegre, foi a um posto de saúde para se tratar de uma forte dor de cabeça, diagnosticada como sintoma de glaucoma, doença caracterizada pelo aumento da pressão ocular, capaz de cegar, no caso de não haver tratamento. Medicada, a empregada passou a usar um colírio para controlar a pressão nos olhos e foi aconselhada a evitar estresse. Dois anos depois de passar pelo interrogatório da PF, Ivone ficou completamente cega. Começou a perder a visão, afirma, no dia seguinte às torturas.
“Quando ela chegou em casa, estava toda roxa e em pânico”, conta Elisiane da Cruz, 24 anos, filha mais velha de Ivone. Na época, com 17 anos, Elisiane carregou a mãe para dentro de casa e percebeu que ela havia levado uma surra. Além disso, a empregada reclamava de uma dor insuportável na cabeça e de dificuldade de enxergar. Naquele momento, a menina tomou uma atitude rara e corajosa, contrária à vontade a mãe, e decidiu denunciar a tortura. No dia 22 de março, a filha levou a empregada outra vez à 8ª DP. Lá, Ivone da Cruz acusou Corrêa de tê-la torturado para forçar sua confissão.
O diretor-geral da PF alega só ter entrado no caso porque, ao tomar conhecimento do assalto, soube, também, da impossibilidade de a Polícia Civil agir porque, naquela madrugada do assalto, tinha outras prioridades. “Existia praticamente um clamor no prédio, porque Vó Chininha era como uma avó para todos os moradores”, afirma. “Então, liguei para o delegado e solicitei fazer as oitivas, com a autorização dele”, conta. Apesar de ser uma atitude estranha deslocar agentes federais para buscar e interrogar uma empregada doméstica já interrogada pela Polícia Civil, a justificativa de Corrêa poderia até ser plausível, não fosse um detalhe.
Da 8ª DP, Ivone foi encaminhada ao Departamento Médico Legal (DML) do Rio Grande do Sul. Um laudo, assinado, em 23 de março, pelos médicos Jorge Modjen da Silveira e Jorge Lazlo, constatou diversas escoriações na região lombar da empregada, segundo eles, provocados por “instrumentos contundentes”. O documento do DML forçou a Polícia Civil a abrir um procedimento de investigação interna, apesar de as supostas torturas terem sido realizadas nas dependências da Polícia Federal.
Por quase quatro anos, o processo de apuração da denúncia contra Corrêa tramitou lentamente pela burocracia policial do Rio Grande do Sul. Em 4 de fevereiro de 2005, o delegado D’Artagnan Tubino, da Corregedoria-Geral da Polícia Civil, decidiu ouvir, finalmente, o colega Fernando Pontes, da 8ª DP, responsável pela abertura do inquérito relativo ao assalto na casa de Vó Chininha. Pontes, então, desmontou o argumento primordial de defesa do delegado federal. Declarou “nunca ter solicitado” a Corrêa ouvir os envolvidos no crime, muito menos na sede da Superintendência da PF. Disse, apenas, ter uma “vaga lembrança” de ter sido solicitado um encaminhamento qualquer à PF, por razões que ele também disse não se recordar.
O relatório final do delegado D’Artagnan Tubino, com novos depoimentos tomados com as testemunhas ouvidas pela PF, foi encaminhado à Justiça Federal do Rio Grande do Sul, em 13 de maio de 2005, quando Corrêa ocupava o cargo de secretário nacional de Segurança Pública, em Brasília. No texto, Tubino explicita a denúncia de tortura. Segundo ele, Ivone “foi algemada, espancada na cabeça e levou choques no estômago e nas costas”. Mas, inexplicavelmente, retirou do documento a parte do depoimento do delegado Fernando Pontes, da 8ª DP, onde ele dizia jamais ter combinado coisa alguma com Corrêa sobre levar os depoentes para a Superintendência da PF.
Foi a vez, então, da Corregedoria Interna da PF, no Rio Grande do Sul, começar a investigar a denúncia contra Corrêa, por requisição do Ministério Público Estadual. Em 6 de julho de 2005, a promotora Dirce Soler encaminhou um pedido de investigação à Justiça Federal, tanto por conta da tortura como por causa da intromissão de Corrêa no caso. Ficou particularmente irritada ao saber que Corrêa entrou na história por ser marido da neta da vítima. “Ora, essa revelação, por si só, demonstra a necessidade de que as investigações sejam procedidas no âmbito da Polícia Federal!” – escreveu, assim mesmo, exclamativa, a promotora.
No dia 20 de dezembro de 2005, após pouco mais de dois meses de trabalho, o delegado federal encarregado pela investigação, Sandro Caron de Moraes, produziu um relatório minguado, de duas páginas. Nele, faz um resumo acrítico e favorável à tese de Corrêa, de intromissão na investigação para “garantir a integridade das provas”. Por determinação do Ministério Público Federal, Ivone da Cruz foi reinquirida em 17 de agosto de 2006 para fazer o reconhecimento visual dos diversos agentes federais lotados na DRE da Superintendência da PF, quando da denúncia de tortura. Inútil, porque a empregada, àquela altura, estava completamente cega. “Meu Deus, como é que eu, sem enxergar, poderia reconhecer alguém?”, pergunta Ivone, os olhos opacos virados para o teto, ao se lembrar do episódio.
Incapaz de reconhecer os agressores, a doméstica passou seis anos à espera de ter a causa reconhecida na Justiça. Em vão. Em 11 de junho de 2007, o procurador da República Ipojucan Corvello Borba requereu o arquivamento do caso, por falta de provas. Borba reconheceu “a gravidade dos fatos”, mas nada pôde fazer com uma investigação feita pela PF, justamente a corporação acusada de patrocinar a tortura.
O caso foi enviado ao então corregedor-geral da PF, em Brasília, delegado Ivan Lobato, em setembro de 2007, ainda na gestão do delegado Paulo Lacerda, mas poucos dias antes da posse de Corrêa como diretor-geral. “Ele (Lobato) deveria ter arquivado imediatamente o processo, mas deixou, deliberadamente, o assunto em aberto”, acusa Corrêa. De fato, o arquivamento só ocorreu depois de Lobato deixar o cargo, ao fim do mandato de três anos, inerente à função. Para o lugar dele, o diretor-geral indicou um amigo dileto, o delegado Valdinho Caetano. E o assunto foi encerrado.
Caetano tomou posse como corregedor-geral da PF em 5 de dezembro de 2008. Encontrou, segundo ele, 685 sindicâncias a serem analisadas, além de outros 200 procedimentos administrativos, para aplicação ou não de processos disciplinares, como era o caso de Corrêa. Para limpar a pauta, o corregedor organizou um mutirão e, no meio do trabalho, garante ter se surpreendido com a tal sindicância relativa à denúncia de tortura. “Nunca tinha ouvido falar no caso”, afirma Caetano, amigo de longa data de Corrêa, com quem se formou delegado na mesma turma de 1995 da Academia de Polícia de Brasília.
Informado por Caetano da sindicância, inusitadamente, segundo o corregedor, encontrada entre a papelada da repartição, Corrêa conta ter avisado, posteriormente, ao ministro da Justiça, Tarso Genro, do arquivamento do processo. A decisão, sem novo pedido de investigação, segundo o corregedor-geral, foi baseada no arquivamento do caso pela Justiça Federal. Procurado por CartaCapital, Genro desmentiu essa versão. De acordo com a assessoria de imprensa do ministro, ele só tomou conhecimento do fato ao ser avisado por CartaCapital. Assim, foi se informar sobre o processo com o diretor-geral na quinta-feira 19. Depois, declarou, via assessoria: “Confio nas decisões do Ministério Público e do Poder Judiciário”.
Em um bairro poeirento de Alvorada, onde vive há oito anos, entrevada em um quarto, sob efeito de calmantes, Ivone da Cruz se mantém alheia às contradições das autoridades. Sobrevive com um salário mínimo da aposentadoria do INSS. Segundo ela, depois de ser torturada, nunca mais conseguiu trabalhar, por causa das dores de cabeça, da depressão e, finalmente, da perda de visão. Para tentar uma indenização, o advogado Volnei Oliveira teria de provar a relação entre a perda da visão e a tortura, tese prejudicada pelo arquivamento do processo. “A injustiça é pior do que a cegueira”, reclama Ivone, baixinho, com os punhos fechados sobre os olhos, numa tentativa inútil de esconder as lágrimas e a dor.
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