“Entretanto,
não duvido apesar de tudo de que a minha morte hoje seja mais útil que do que a
prolongação de minha vida. Caro Liev Davidovitch, estamos ligados por dez anos
de trabalho comum e, ouso, esperá-lo de amizade pessoal, e isso me dá direito
de lhe dizer no momento do adeus, o que em você me parece ser uma fraqueza.
Nunca duvidei da justeza do caminho traçado por você, que sabe que durante mais
de 20 anos marchei com você, desde a “revolução permanente”. Mas sempre pensei
que faltavam a inflexibilidade, a intransigência de Lenin, sua resolução de
ficar, sendo preciso, sozinho no caminho que reconheceu como certo, na previsão
da maioria futura, no reconhecimento futuro, por parte de todos, da exatidão
desse caminho. Você sempre teve razão politicamente, a começar por 1905, e
muitas vezes lhe contei ter ouvido, com os meus próprios ouvidos, Lenin
reconhecer que em 1905 não fora ele mas você que tivera razão. Defronte da
morte não se mente e o repito, agora, de novo…”
Bilhete
suicida de Adolf Joffe a Trotsky
Reduzido
por uma polinevrite a uma invalidez quase completa, impossibilitando-o de tomar
parte ativa nas lutas políticas de então, Joffe não viu outro meio de ainda
servir à causa da revolução – do que se matar, dando a sua morte uma
significação precisa de protesto contra a exclusão de Trotsky do Partido e o
regime de perseguição pessoal, adotado pela direção, na sua campanha contra a
Oposição. A sua carta foi encontrada logo após sua morte sobre sua mesa. Não
chegou, porém, às mãos de seu destinatário. Os seus funerais em Moscou, no dia
19 de Novembro, tiveram um caráter comovedor. Apesar de realizados nas horas de
trabalho, compareceram milhares e milhares de operários, camaradas do Partido,
delegações do Exército Vermelho. Foi a última vez que a oposição de esquerda
saiu às ruas.
Procurei
inspiração nestas linhas de Adolf Joffe para Leon Trotsky antes de escrever
este texto. Trata-se de uma carta política dirigida a um amigo. Eles tinham
sido camaradas e amigos por décadas. A intimidade e o afeto atravessa toda a
carta. Diante da morte Joffe decide alertar Trotsky para aquilo que considera
serem os seus defeitos. Os russos sempre me emocionaram porque são intensos.
Entre
aqueles engajados na militância há muita confusão entre o que são as relações de
amizade e as relações de camaradagem. Esta confusão gera muitas desilusões
quando as diferenças políticas levam à perda das relações de amizade. Relações
de amizade são um vínculo emocional poderoso. Lidar com perdas é sempre uma
experiência dolorosa. Não é incomum que as decepções pessoais com camaradas se
transformem em desalento ideológico no futuro da luta pelo socialismo. E o
desânimo, a desesperança, o desengano são maus conselheiros, porque obscurecem
a mente e diminuem a lucidez.
Tentar
definir o que é a amizade foi sempre difícil. Em uma época em que confiar nos
outros é percebido como credulidade ingênua é importante lembrar que uma vida
sem amizade é muito triste. A solidão parece ser uma epidemia no mundo
contemporâneo. Ela é sempre mencionada como um dos fatores de depressão. A
desconfiança generalizada – contra tudo e todos – só pode alimentar,
evidentemente, vidas solitárias.
Não há
nenhuma dúvida de que somos seres sociais. Nossos ancestrais resistiram a todas
as adversidades porque foram capazes de se unir em bandos, relativamente,
numerosos, embora dificilmente maiores do que 150 membros, para garantir a
sobrevivência. Seres sociais quer dizer que dependemos uns dos outros, da ajuda
e solidariedade mútua, portanto, da cooperação. Somos aptos para viver em
sociedade, não porque não existam conflitos, mas porque a busca de auxílio,
socorro, ou assistência conviveram na história com a avidez, a rivalidade, a
cobiça, a inveja e a soberba, mas prevaleceram.
Precisamos
de amigos para ter uma vida mais plena e menos solitária. Amizade é uma relação
afetiva, em princípio, não erotizada, entre pessoas que se conhecem e
estabelecem laços de lealdade, portanto, de confiança. Todos podemos ter
dezenas, ou até mesmo centenas de conhecidos com quem mantemos relações polidas
ou cordiais: pessoas com quem nossas vidas se cruzaram, mas com as quais não
estabelecemos laços emocionais. Ninguém, contudo, alimenta amizades nessa
escala, porque não é possível. Porque a amizade exige dedicação e lealdade e
pressupõe altruísmo, ou seja, a disposição generosa de agir em benefício dos
outros, e não somente em função do próprio interesse.
Lealdade
entre amigos não pode repousar somente em acordos políticos. Ela se constrói
alicerçada na confiança pessoal, que vai além das ideias políticas. Existindo,
inevitavelmente, diferenças de opinião, cultivar amizades exige uma disposição
para a tolerância. Ninguém gosta de ser contrariado. Podemos ficar desgostosos
ou até aborrecidos quando discordam de nossas opiniões. Mas romper amizades por
diferenças de opinião é uma tolice infantil. Estar disposto a acolher ideias
diferentes das nossas revela maturidade para aceitar graus de dissenso com que
podemos conviver.
O que
são camaradas? Camaradas são aqueles que, na tradição socialista, pertencem a
uma mesma organização e ou compartilham uma visão do mundo comum, o
igualitarismo, ou luta pela igualdade social. Esta visão do mundo socialista se
fundamenta, em primeiro lugar, no reconhecimento de que todos os seres humanos
têm em comum necessidades, intensamente, sentidas que são iguais. Ser
socialista significa uma ruptura ideológica com o capitalismo, uma adesão ao
movimento dos trabalhadores e dos oprimidos, uma aposta no projeto de luta pela
revolução, e uma aspiração internacionalista por um mundo sem dominação
imperialista. Nas sociedades em que vivemos ser socialista exige, portanto, uma
escolha de classe. Não importa a classe social na qual nascemos. O que importa
é a qual classe unimos nosso destino.
Acontece
que nem todos os nossos amigos são camaradas, e nem todos os camaradas são
amigos. Porque amigos podem ter visões do mundo diferentes. Amizades não devem
ter como condição, necessariamente, uma mesma visão do mundo. Por outro lado e,
talvez, mais importante, podemos ser camaradas de militantes que não conhecemos
tão bem. Só em pequenas organizações, núcleos de pouco mais do que cem
militantes, é que é possível conhecer todos os membros. Se a amizade pessoal
for um critério de pertencimento, uma organização revolucionária estará
condenada à estagnação, ou a rupturas recorrentes.
Acontece
que as tarefas da revolução brasileira e mundial exigem que nos coloquemos o
desafio de querer construir grandes organizações. Seria irrealista exigir de
ativistas que compartilham a defesa do mesmo programa, mas não se conhecem o
bastante, um grau de confiança pessoal, um afeto intransferível semelhante ao
daqueles que convivem, regularmente, entre si. Portanto, confiança em um
projeto não é o mesmo que lealdade pessoal a todos os membros da mesma
organização. A confiança pessoal é diferente da confiança política. A primeira
se constrói como intimidade pessoal. A segunda como a defesa de um programa
comum. Quando além de camaradas somos amigos de alguém se estabelece um vínculo
muito forte. Mas é perigoso não saber distinguir que são dois laços diferentes.
Porque a perda da confiança política não deve, necessariamente, contaminar a
relação pessoal.
O que
são adversários? Adversários são aqueles contra os quais lutamos em uma
disputa. Não é possível viver sem ter adversários. Porque a vida é uma
sequência de lutas. Mas os conflitos têm diferentes naturezas e importância.
Saber ponderar, calibrar, medir, avaliar a maior ou menor gravidade das
diferenças, das polêmicas, dos debates, das rivalidades é indispensável. Porque
nem todos os adversários são inimigos. Depende de qual é a natureza do
conflito. Adversários podem ou não se tornar desafetos, ou seja, a disputa de
ideias pode degenerar em antagonismo pessoal. Mas nem todos os nossos adversários
são nossos inimigos.
O que
são inimigos? Inimigos são os adversários que enfrentamos em lutas que são
incontornáveis porque correspondem a interesses de classe irreconciliáveis. As
hostilidades com os inimigos são inevitáveis, porque eles são nocivos aos
interesses de classe que representamos.
Na
história da esquerda ocorrem rachas, separações, divisões, em função de
distintas percepções da situação política que, por sua vez, expressam
diferentes pressões sociais e políticas. Diferenças sérias de projeto
justificam rupturas políticas, mas não devem transformar, necessariamente,
aqueles que eram camaradas em inimigos.
A
violência verbal, seja na forma ou no conteúdo, é uma maneira desonesta,
intelectualmente, de tentar ganhar um debate a qualquer preço. Acusações ad
hominem são aquelas que são dirigidas às pessoas, e não às ideias que elas
defendem. Coloca-se o caráter do adversário em dúvida, através de ataques
pessoais, para desqualificar suas ideias. Trata-se de uma tática diversionista
porque tenta desviar o tema da polêmica. Aqueles que recorrem a este método
retórico confessam, involuntariamente, que não têm confiança nos seus
argumentos. Precisam destruir o outro porque não conseguem refutar suas ideias.
Violência verbal através de acusações ad hominem é um método inaceitável,
porque diminui a importância das ideias, e só serve para a desmoralização dos
adversários.
Na esquerda revolucionária para o século XXI que
queremos construir devemos saber preservar amizades, apesar das diferenças
políticas que nos separam em distintas organizações, e aprender a distinguir os
adversários dos inimigos. Isso parece simples e elementar. Mas não é.
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