Quando deixei Washington, para escapar de um país em grave crise econômica e desesperança política e me animar um pouco no Brasil, a gasolina na bomba estava custando, em média, três dólares por galão. Estou sem paciência para fazer a relação com o preço no Brasil. É relativamente mais barato, se considerarmos o salário mínimo deles e o nosso. Nem é esse o ponto. Estou falando de uma barreira psicológica que foi rompida. Quando encher o tanque passa a custar 100 dólares os americanos notam, mesmo aqueles que não pretendem votar nas eleições de 2008 ou que ainda acreditam no Bush e na CNN.
A economia americana só estará "tecnicamente" em recessão depois de dois trimestres de retração. A realidade é outra: os Estados Unidos exportaram empregos em seus acordos comerciais e, com isso, sobrou mais mão-de-obra para disputar vagas no setor de serviços, empregos que pagam pouco. Ou seja, houve um empobrecimento generalizado da classe média. Pais disputam com filhos o "cargo" de vendedor do Wal Mart. A maior empresa de varejo do mundo está para a economia americana hoje como as minas de carvão estavam para a Inglaterra durante a revolução industrial.
O Wal Mart paga pouco, combate vigorosamente os sindicatos e "terceiriza" os benefícios. Como? Quem está abaixo da linha de pobreza tem direito de participar de alguns programas sociais- como o Medicaid - e de receber os foodstamps. O Medicaid oferece ajuda para comprar remédios. Os cupons de comprar comida são aceitos como dinheiro nos supermercados. O modelo Wal Mart de fazer negócio é esse: mantém os empregados no limite da pobreza, de maneira a permitir que eles tenham ajuda governamental. Estatizaram os benefícios.
Diante desse quadro você conclui: ah, o Bush está ferrado. Não tem chance de fazer o sucessor. Não subestime o poderio da propaganda americana, que é o que a gente já chamou, um dia, de telejornalismo. Com raríssimas exceções - o 60 Minutos, da CBS, é uma delas - a mídia americana não estabelece uma relação entre gastos militares e decadência econômica, entre acordos comerciais e decadência econômica, entre restrições religiosas à Ciência e decadência econômica ou entre a política externa desastrosa de Bush e o preço da gasolina.
Ninguém pergunta: estamos mais seguros hoje do que antes da declaração da guerra contra o terror, que não tem data para terminar? Resposta: não. O mundo está mais instável e, portanto, os preços do petróleo também. Temos um governo dominado por xiitas no Iraque, o Irã fortalecido, o Paquistão caindo pelas tabelas, a Turquia movendo guerra contra os curdos e a Rússia em ascensão. Os parceiros da dupla Bush-Cheney nunca viram tanto dinheiro, vide o lucro de 40 bilhões de dólares da Exxon Mobil em 2007.
E os acordos comerciais, a quem beneficiaram? Às empresas americanas e às elites locais, como a mexicana. Se o NAFTA tivesse sido a salvação do México, como costumam dizer nossos comentaristas econômicos, não teria reduzido a imigração ilegal? Quem ganhou mais com o NAFTA? O empresário Carlos Slim, homem mais rico do mundo. Quem perdeu? Os mexicanos mais pobres. As maquilladoras, montadoras de bugigangas com peças fabricadas no Exterior, primeiro se instalaram no México. Depois, descobriram mão-de-obra ainda mais barata na China. E se mandaram. O que faz o mexicano pobre? Tenta entrar nos Estados Unidos, se associa ao narcotráfico ou ao tráfico de gente e, se é politizado, entra num dos grupos que estão pregando a luta armada contra o governo. Não apenas pregando, mas atacando oleodutos e explodindo bombas na Cidade do México.
Por outro lado, a economia americana é hoje refém dos grandes conglomerados de fabricação de armas, da indústria da guerra e do medo. Esta última cria dificuldades para vender facilidades. Qual a solução para as imensas filas no setor de segurança dos aeroportos? Agora criaram a chamada Z line. Você submete informações confidenciais a uma empresa, que emite um cartão magnético em seu nome. Com ele, você entra em uma fila especial, que anda mais rápido do que as outras. Ou seja, todo mundo é suspeito até prova em contrário. Mas quem tem cartão para a Z line é menos suspeito, óbviamente depois de desembolsar um bom dinheiro. Agora, nos aeroportos americanos, temos os suspeitos de primeira e os de segunda classe.
É óbvio que ninguém faz esse tipo de crítica na TV americana. Pelo contrário, eles "vendem" isso como um "serviço" para facilitar a vida de quem viaja muito.
Por fim, enquanto os japoneses, os sul-coreanos e os dinamarqueses usam dinheiro público para instalar redes nacionais de fibra ótica, facilitando e acelerando o acesso da população à internet, nos Estados Unidos as grandes empresas passaram a limitar a velocidade de acesso dos usuários, mesmo daqueles que compram os pacotes mais caros. Se você usa muito a internet em um determinado dia sua conexão automaticamente perde velocidade. Hoje essas empresas são impedidas, por lei, de discriminar entre usuários. O que querem? Estão criando dificuldade para vender facilidade. Querem criar "pistas especiais" na internet, exclusivas para quem pagar mais. Bom para as empresas, sem dúvida, mas ruim para o país como um todo.
E as pesquisas com células embrionárias? Foram impedidas pelo governo Bush por motivos religiosos, o mesmo risco que correm no Brasil por conta do ativismo religioso do ex-procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, que entrou com ação no STF com o objetivo de declarar inconstitucional a pesquisa com células-tronco embrionárias. Nesse caso específico, enquanto o Japão, a Coréia do Sul e a Alemanha disparam nas pesquisas, americanos e brasileiros se tornam reféns do obscurantismo.
E o que tudo isso tem a ver com o fato de que Bush ainda tem chance de fazer o sucessor? O discurso dele ainda é aceito quase sem críticas na mídia americana, especialmente na TV. Estamos em guerra contra o capeta, diz Bush, estamos sob ataque do belzebu e da mula-sem-cabeça, somos nós e os fetos contra a escuridão da aliança islamofascista, dos esquerdistas, dos cucarachas e de cientistas que querem matar embriões. É um discurso que apela à Paixão, que tem vencido quase todas contra a Razão nos últimos tempos.
PS: O "embaralhamento" de informação com opinião ajuda aos embusteiros. Por exemplo, quando dizem que pesquisas com células-tronco=aborto. Não necessariamente. Existem milhões de embriões congelados que serão jogados no lixo. Mas se discutir isso serve ao Jornalismo, não serve à Propaganda. Propaganda trabalha com idéias simplórias, bombardeadas continuamente, presumindo que quem está do outro lado é incapaz de discernir entre uma coisa e outra.
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