terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O legado de 1989 nos dois hemisférios - por Noam Chomsky (The New York Times)

O mês de novembro marcou o aniversário de eventos definitivos que ocorreram em 1989: "O ano mais importante para a história desde 1945", descreveu o historiador britânico Timothy Garton Ash.
O ano que "mudou tudo", ele escreveu. As reformas de Mikhail Gorbachev na Rússia e sua "renúncia animadora ao uso da violência" levaram à queda do muro de Berlim no dia 9 de novembro - e à libertação do Leste Europeu da tirania russa.
O mérito é merecido e os eventos são memoráveis. Mas outras perspectivas podem dar nova luz aos eventos.
A chanceler alemã Angela Merkel ofereceu uma dessas perspectivas - involuntariamente - quando nos incitou a "usar esse exemplo de liberdade para superar os muros do nosso tempo".
Uma das formas de seguir o ótimo conselho da líder alemã é derrubar o muro monstruoso, maior ainda o que o de Berlim, erguido em território palestino, violando as leis internacionais.
A existência do Muro da Cisjordânia é justificada por questões de "segurança" - o argumento mais utilizado para justificar ações de governos ultimamente. Se a preocupação fosse realmente a segurança, o muro seria construído ao redor da fronteira e seria indestrutível.
O objetivo dessa monstruosidade, construída com o apoio dos EUA e a cumplicidade da Europa, é permitir que Israel tome posse de uma porção valiosa de terras palestinas e os principais recursos naturais da região, negando à população natural da ex-palestina uma existência nacional viável.
Outra perspectiva dos acontecimentos de 1989 foi sugerida por Thomas Carothers, acadêmico que trabalhou em programas de "melhorias democráticas" na administração do ex-presidente Ronald Reagan.
Depois de consultar seus relatórios, Carothers concluiu que todos os líderes norte-americanos até então foram "esquizofrênicos" em seu apoio à democracia, limitando-se apenas àquelas que estivessem de acordo com a estratégia dos EUA e seus objetivos econômicos, como aconteceu com os satélites soviéticos, mas não com os estados clientes dos EUA.
Essa perspectiva é dramaticamente confirmada pela recente comemoração dos eventos de novembro de 1989. A queda do muro de Berlin foi amplamente celebrada, mas poucos souberam do que aconteceria na semana seguinte: No dia 16 de novembro em El Salvador, seis intelectuais latino-americanos respeitados, padres jesuítas, foram assassinados, além da cozinheira e sua filha, pelo batalhão Atlacatl, com armas fornecidas pelos Estados Unidos e treinado no renomado centro de treinamento especial do exército americano, o JFK Special Warfare School.
O batalhão já possuía um currículo sangrento, que começou em 1980 com o assassinato do Arcebispo Oscar Romero, conhecido como "a voz de quem não tem voz".
Durante a década de 1980, a administração Reagan declarou a "guerra contra o terror", mas um terror parecido se estabelecia na América Central. Um reinado de tortura, assassinatos e destruição na região deixou centenas de milhares de mortos.
O contraste entre a libertação dos satélites soviéticos e a destruição completa da esperança dos países clientes dos EUA é chocante e irremediável - especialmente quando alargamos nossa perspectiva dos fatos.
O assassinato dos intelectuais jesuítas trouxe um fim derradeiro para a "teologia da libertação", a volta do cristianismo que teve suas raízes modernas nas iniciativas do Papa João XXIII e o II Concílio do Vaticano, que ele inaugurou em 1962.
O Concílio "inaugurava uma nova era na história da Igreja Católica", escreveu o teólogo Hans Kung. Os bispos latino-americanos adotaram a "opção preferencial pelos pobres".
Portanto, os bispos renovaram o pacifismo radical dos Evangelhos, que haviam sido postos de lado quando o Imperador Constantino estabeleceu o cristianismo como a religião do Império Romano - "uma revolução" que em menos de um século converteu "a igreja perseguida" em uma "igreja perseguidora", de acordo com Kung.
Os padres latino-americanos, após a retomada do Vaticano, levaram adiante a mensagem dos evangelhos, juntamente com freiras e voluntários, aos pobres e perseguidos, incentivando valores comunitários e encorajando-os a tomar o destino nas próprias mãos.
A reação a essa heresia foi a repressão pela violência. Em meio ao terror e à morte, os praticantes da teologia da libertação eram os alvos principais.
Entre eles, há seis mártires da igreja cuja execução há 20 anos é hoje comemorada com um silêncio arrebatador e tristeza indiscutível.
No mês passado em Berlim, os três presidentes mais envolvidos com a queda do muro, George H. W. Bush, Gorbachev e Helmut Kohl, discutiram de quem é o crédito.
"Eu sei que Deus nos ajudou", disse Kohl. George H.W. Bush elogiou os esforços do povo da Alemanha Oriental, que "por muito tempo foram privados de seus direitos divinos". Já Gorbachev sugeriu que os Estados Unidos precisam ter sua própria Perestroica.
Não há dúvidas sobre a responsabilidade pela demolição da tentativa de recuperar o ensinamento do Evangelho na América Latina na década de 1980.
A Escola das Américas (rebatizada depois de Instituto para a Cooperação de Segurança do Ocidente) em Fort Benning, no estado americano da Geórgia, que treina oficiais latino-americanos, anuncia orgulhosamente que o Exército Americano ajudou a "derrotar a teologia da libertação" - com a ajuda, não esqueçamos, do Vaticano com suas expulsões e excomunhões.
A cruel campanha para reverter a heresia colocada em prática pelo Vaticano recebeu uma expressão literária incomparável na parábola de Dostoievsky do Grande Inquisidor em "Os Irmãos Karamazov".
No conto, que se passa em Sevilha na "mais terrível época da Inquisição", Jesus Cristo aparece repentinamente na rua, "suave, inabalável e, ainda assim, por mais estranho que possa parecer, todos o reconheciam" e eram "atraídos a ele de forma irresistível".
O Grande Inquisidor "clama aos guardas que o levem" para prisão. Lá ele acusa Cristo de chegar para "nos impedir" de continuar a tarefa de destruir as ideias subversivas de liberdade e comunidade. Nós não o seguiremos, diz o Inquisidor a Jesus, apenas Roma e a "espada de César". Queremos comandar a terra sozinhos para que possamos ensinar aos "fracos e vis" que "eles só serão livres quando renunciarem sua liberdade a nós e se entregarem". Então eles se tornarão temerosos e assustados e felizes. E amanhã, diz o Inquisidor, "eu vou queimá-lo".
No final, no entanto, o Inquisidor resolve ceder e "soltá-lo aos becos escuros da cidade". O prisioneiro vai embora.
Os alunos da Escola das Américas não foram capazes da mesma piedade.

P.S: fonte - terra magazine

Um comentário:

MarcFlav disse...

Chomsky, junto com Hannah Arendt, são as criaturas mais lúcidas dos últimos tempos, em minha opinião.