No final da década de 1950, Wright Mills, um dos mais brilhantes cientistas sociais norte-americanos da segunda metade do século XX, chamava à atenção, em uma obra intitulada A imaginação sociológica, para o fato de que as pessoas tendem a reclamar dos seus problemas cotidianos buscando causas explicativas no seu entorno imediato. Para ele, a maioria das não consegue estabelecer relações causais entre os sofrimentos vivenciados individualmente e as estruturas sociais mais amplas, expressas em tendências econômicas, dinâmicas demográficas e relações de classes, dentre outras. Ao contrário do que pensava o grande sociólogo não são apenas as "pessoas comuns" que agem assim. Ultimamente tem sido essa também essa a reação de muitos dos que se pretendem analistas do mundo social no Brasil. Em especial quando o objeto de análise diz respeito, direta ou indiretamente, ao governo do agora ex-presidente Lula.
Na última semana, marcada pela despedida de um presidente com inéditos 87% de avaliação positiva por parte da população, assistimos ou lemos os nossos "bem pensantes", especialmente aqueles auto-identificados como "cientistas políticos", produzindo lugares-comuns e vendendo-os como análises científicas. Nestas, via de regra, a popularidade do ex-presidente resultaria de sua "capacidade de comunicação", dos ventos favoráveis da economia internacional e do Programa Bolsa-Família. Platitudes e lugares-comuns substituem, assim, a necessidade de perscrutar com mais rigor a realidade.
Poucos analistas se preocuparam em produzir alguma explicação para o espantoso fato de que a popularidade do ex-presidente tenha ocorrido concomitante a uma das mais agressivas reações dos principais órgãos da imprensa nativa a um Presidente da República. Para usar surrado bordão, nunca antes na história deste país um mandatário foi tão hostilizado, quando não ridicularizado, como o Lula durante os últimos oito anos.
Como o bolsa-família, o Prouni e as políticas de micro-créditos, dentre outros instrumentos de transferência de renda, não atingem, nem de longe, aquele contingente populacional que, a cada nova pesquisa, identificava o Governo Lula como "ótimo" e "bom", restou aos "bem-pensantes" apelar para o velho preconceito de classe: os "de baixo" não teriam muito apreço pela ética. Ou pelas instituições democráticas.
Houve quem chamasse a atenção para o "carisma" do ex-presidente. Mas este foi definido como uma característica pessoal. Mesmo gente que citava Max Weber, autor de célebre elaboração sobre a "dominação carismática", esquecia que, para o pensador alemão do início do século, carisma, na vida política, é um fenômeno relacional, não uma particularidade desse ou daquele indivíduo. Analisar os motivos e reações dos "seguidores" do líder supostamente "carismático" é sempre o exercício mais importante. Exatamente o que era apenas superficialmente tocado.
Os "bem-pensantes" esqueceram as pessoas. E estas, ao contrário do supõem os que se alimentam dos próprios preconceitos que secretam, são reflexivas. Fazem comparações e escolhas. Entre um lado que fazia discursos "em defesa da ética", mas ainda ontem praticara uma selvagem "privataria", e o lado que apresentava políticas sociais que tiraram 15 milhões da pobreza, incluíram milhares de jovens no ensino superior e provocaram um positivo curto-circuito em economias locais de recantos esquecidos desde sempre, as pessoas escolheram o segundo.
Novos atores entraram em cena. Tornaram-se visíveis. Mais do que isso, cidadãos. E, em conseqüência, também consumidores. Abarrotaram as ruas de comércio popular, mas também os shoppings e os aeroportos. Não poucos ficaram incomodados com essas novas companhias nos seus espaços. Afinal, "praias" durante tanto tempo exclusivas foram "invadidas".
O incômodo de alguns setores tradicionais ante a emergência desses novos cidadãos alimentou a narrativa preconceituosa dominante na imprensa. Os bem-pensantes contribuíam com suas "análises" a respeito do "populismo". Os menos sofisticados falavam em "bolsa-esmola"...
Passado o vendaval das fortes emoções provocadas pela presença de Lula no centro do palco, é tempo de se produzir uma rigorosa e crítica sociologia da "Era Lula". Quem desejar assumir essa tarefa deve se lembrar de um alerta, formulada há décadas por outro grande cientista social, este brasileiro, que apontava a necessidade de superarmos análises que apenas "arranham a superfície" dos fenômenos. Refiro-me a Florestan Fernandes, alguém que desdenhava, com ironia corrosiva, o mundo pintado pelos bem-pensantes.
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