No texto, jornalista Natália Viana alerta: internet, que viabilizou Wikileaks, pode ser usada para vigiar sociedades; tudo dependerá de nossas lutas
“Uma guerra furiosa pelo futuro da sociedade está em andamento. Para a maioria, essa guerra é invisível”, alerta Julian Assange, fundador do WikiLeaks, na apresentação do seu programa de entrevistas World Tomorrow, realizado em parceria com a rede de TV russa WT – e que serviu de base para este livro. “De um lado, uma rede de governos e corporações que espionam tudo o que fazemos. Do outro, os cypherpunks, ativistas e geeks virtuosos que desenvolvem códigos e influenciam políticas públicas. Foi esse movimento que gerou o WikiLeaks”.
É com essa descrição em mente que o leitor deve percorrer cada página deste livro, que traz uma das mais instigantes conversas públicas entre importantes partícipes desta batalha: a batalha pela liberdade na rede.
Na obra, Assange, ao lado dos companheiros de armas – e eficientes desenvolvedores de códigos digitais – Jérémie Zimmermann, Jacob Appelbaum e Andy Müller Maguhn, disseca temas essenciais que estão definindo, hoje, os principais embates sobre como deve ser o futuro da internet.
A rede mundial de computadores apresenta, como muitas tecnologias, uma variedade de usos possíveis. É, como a energia elétrica, a semente de uma gama infinita de possibilidades, e semente poderosa: seu potencial ainda está sendo descoberto ao mesmo tempo que seu rumo vai sendo definido pelo caminhar tecnológico e pelo caminhar político.
Fica cada vez mais claro, assim, que a rede é espaço de disputa política. Um exemplo: em 2012, nos EUA, após diversos protestos, a opinião pública conseguiu forçar a suspensão de duas legislações que estavam sendo discutidas no Congresso norte americano, a Sopa (Stop Online Piracy Act [Lei de Combate à Pirataria On line]) e a Pipa (Protect IP Act [Lei de Prevenção a Ameaças On line à Criatividade Econômica e ao Roubo de Propriedade Intelectual]). Ambas previam a possibilidade de bloqueio de sites, inclusive estrangeiros, por infração de direitos autorais.
O leitor brasileiro conhece bem esse embate. Nos últimos anos, a discussão sobre a fronteira digital por aqui também tem se centrado na propriedade intelectual. Durante os dois mandatos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 2011), o Ministério da Cultura tornou se apoiador da cultura digital livre, baseada no compartilhamento do conhecimento e no incentivo ao uso de ferramentas como o software livre (ou não proprietário) e as licenças creative commons, que permitem a reutilização de qualquer produção, de acordo com os interesses do autor. O debate ressurgiu com toda força quando, durante o governo posterior, de Dilma Rousseff, o Ministério tentou reverter essa política.
Em Cypherpunks – liberdade e o futuro da internet, Assange e seus coautores enfocam uma dimensão dessa batalha ainda pouco conhecida no Brasil – mas que se faz urgente. Trata se do que o australiano chama de “militarização do ciberespaço”, a vigilância das comunicações em rede por serviços de segurança e inteligência de diversos países.
Ele detalha: “Quando nos comunicamos por internet ou telefonia celular, que agora está imbuída na internet, nossas comunicações são interceptadas por organizações militares de inteligência. É como ter um tanque de guerra dentro do quarto. [...] Nesse sentido, a internet, que deveria ser um espaço civil, se transformou em um espaço militarizado. Mas ela é um espaço nosso, porque todos nós a utilizamos para nos comunicar uns com os outros, com nossa família, com o núcleo mais íntimo de nossa vida privada. Então, na prática, nossa vida privada entrou em uma zona militarizada. É como ter um soldado embaixo da cama”.
Ao longo deste livro, são muitos, e instigantes, os apontamentos como esse, feitos pelos quatro “geek filósofos”, pensadores originais das estruturas culturais, econômicas e políticas do ciberespaço.
Antes de prosseguir, porém, devemos voltar à outra trincheira de Assange na rede digital, aquela que lhe trouxe reconhecimento no mundo todo: o WikiLeaks.
Como o próprio autor pontua, o WikiLeaks, organização que se dedica a publicar documentos secretos revelando a má conduta de governos, empresas e instituições, é fruto da cultura cypherpunk. Seu modo revolucionário de fazer jornalismo é indissociável dos temas abordados neste livro e indissociável da filosofia do próprio Julian Assange.
Fundado em 2007, o WikiLeaks ficou famoso em 2010, quando publicou milhares de documentos secretos norte americanos supostamente vazados pelo soldado Bradley Manning, que servia no Iraque. O primeiro vazamento, em abril, consistia em um único vídeo de dezessete minutos. Seu conteúdo era chocante: de dentro de um helicóptero Apache, soldados norte americanos atacavam doze civis desarmados – entre eles, dois jornalistas da agência de notícias Reuters. Antes da publicação, a agência tentara, sem sucesso, obter o vídeo mediante a Foia (Freedom of Information Act, a Lei norte americana de acesso à informação).
Meses depois, em julho, o WikiLeaks publicou 75 mil diários militares sobre a guerra do Afeganistão, que comprovaram centenas de assassinatos indiscriminados de civis pelas forças dos EUA. Em outubro, a organização publicou 400 mil relatos secretos sobre a ocupação no Iraque, provando a constante tortura contra prisioneiros.
O maior vazamento, no entanto, viria no final de novembro. Uma verdadeira enxurrada. O projeto, chamado “Cablegate”, não era apenas o mais extenso material restrito a ser vazado na história do jornalismo. Os 251.287 comunicados diplomáticos provenientes de 274 embaixadas dos EUA no mundo todo compunham o mais abrangente relato de como funcionam as relações internacionais – e também de como líderes de cada um desses países, além dos EUA, se comportam a portas fechadas.
A publicação, realizada em parceria com alguns dos principais veículos da imprensa global – e Guardian, e New York Times, Le Monde, El País e Der Spiegel, teve um profundo impacto na opinião pública. Estava ali um relato inédito da nossa história recente, preciso, datado. E delicioso. Através dele, aprenderíamos como se dão na prática as negociações políticas, em milhares de reuniões discretas, comentários maliciosos, negociações por trás das cortinas. Um comentarista chegou a afirmar que o material constitui um novo tipo de literatura.
As revelações desnudaram aspectos sinistros da política externa dos Estados Unidos, como os pedidos da Secretária de Estado Hillary Clinton a 33 embaixadas e consulados para que diplomatas espionassem representantes de diversos países na ONU, reunindo números de cartões de crédito, senhas, dados de DNA. Outros documentos expunham mais claramente os crimes de guerra no Iraque – como um relatório que descrevia a execução sumária de dezessete civis, incluindo quatro mulheres e cinco crianças, e as tentativas de refrear processos criminais contra soldados norte americanos. Os relatos da embaixada norte americana na Tunísia, que descreviam em detalhe a extrema corrupção do governo do ditador Ben Ali, foram um enorme incentivo para a revolta tunisiana que acabou por derrubá lo em meados de janeiro de 2011 – e outros países seguiram o exemplo, no que ficou conhecido como a Primavera Árabe.
Foi assim que grande parte da imprensa mundial travou contato com a filosofia do WikiLeaks. Tratava se da aplicação radical da máxima cypherpunk “privacidade para os fracos, transparência para os poderosos” e do princípio fundamental da filosofia hacker: “A informação quer ser livre”.
Para isso, Assange uniu a expertise de desenvolvedor de códigos digitais aos fundamentos mais básicos do jornalismo, prática que tanto se diz em crise; em essência, trazer à tona histórias de interesse público.
Foi ele quem desenvolveu o código original, o primeiro “dropbox” do WikiLeaks, através do qual os documentos poderiam ser enviados à organização, valendo se da mesma proficiência que já mostrara quando criou o sistema de criptografia rubberhose, desenvolvido para que defensores de direitos humanos consigam manter em segredo parte dos dados criptografados mesmo se pressionados sob tortura por regimes autoritários.
No WikiLeaks, a ideia era manter um canal totalmente seguro para o envio de documentos, com uma criptografia poderosa, que fosse não apenas inviolável a ataques, mas que erradicasse qualquer informação sobre a sua origem. A tecnologia, acreditava Assange, seria libertadora: permitiria que whistleblowers – fontes internas de organizações – denunciassem violações por parte de governos e empresas sem medo. Nada mais de encontros em garagens subterrâneas, como fizera o famoso “Garganta Profunda”, codinome do informante dos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, do Washington Post, no escândalo Watergate, que levou à queda do presidente norte americano Richard Nixon em 1974.
Agora, whistleblowers como ele, que sempre foram fontes essenciais do fazer jornalístico, teriam a possibilidade do completo anonimato. O próprio Julian Assange garante que desconhece a identidade daqueles que vazaram material ao WikiLeaks. Mais do que isso: qualquer pessoa poderia se tornar um whistleblower, ou informante, em potencial, vazando de maneira segura documentos do governo, organização ou empresa em que trabalha. O desenho da web também permitia, pela primeira vez, a transferência e publicação de milhões de documentos, o que antes era impossível: há algumas décadas, para reunir a documentação do Cablegate seriam necessários centenas de caminhões carregados de papéis.
O WikiLeaks significava a libertação da verdade por meio da criptografia. Poderosa a princípio, essa ideia tem sido forçadamente neutralizada após o tratamento cruel destinado ao soldado Bradley Manning, que permaneceu durante mais de 880 dias preso sem julgamento, boa parte desse tempo sob tratamento “cruel e desumano”, segundo o relator da ONU para tortura. É importante lembrar que Bradley Manning não foi conectado ao vazamento por alguma quebra na segurança criptográfica do código do WikiLeaks, mas por supostamente ter confessado em um chat ser a fonte dos documentos.
Outras reações alvejam a organização, como o próprio Assange explica ao longo do livro. Basta dizer que, em julho de 2012, o porta voz do Departamento de Justiça dos EUA Dean Boyd admitiu que a investigação sobre o WikiLeaks continuava ativa. Desde dezembro de 2010, uma semana depois da publicação do Cablegate, Assange ficou em prisão domiciliar no Reino Unido – no momento de publicação deste livro, ele estava isolado havia mais de duzentos dias na embaixada equatoriana, onde recebera asilo diplomático.
Isso não refreou o trabalho do WikiLeaks, o que demonstra que a capacidade técnica da sua equipe se sobrepõe a esses achaques. Nesse meio tempo, a organização publicou setecentos arquivos sobre prisioneiros de Guantánamo, revelando inclusive detalhes dos interrogatórios; 2 milhões de e mails do governo da Síria; centenas de propagandas de empresas de vigilância e espionagem digital; e centenas de documentos secretos do Departamento de Defesa dos EUA sobre suas políticas de detenção militar.
A batalha travada pelo WikiLeaks é tanto política quanto tecnológica. Voltando ao aspecto jornalístico, a organização representa ainda um marco importante ao disponibilizar, por princípio, toda a base documental de suas publicações – vale lembrar que, além de divulgar documentos, o WikiLeaks produziu dezenas de matérias, vídeos e artigos de opinião. Por outro lado, no jornalismo tradicional são poucos os veículos que disponibilizam todo o material base de suas reportagens para que seja escrutinado e reutilizado pelo público.
A tendência, é claro, já existia: na era da internet qualquer um pode ser produtor de notícia. Porém, o WikiLeaks avança mais um passo, trazendo essa lógica para o lugar do jornalismo em essência, ao valer se dos segredos de Estado, documentos que comprovam violações de direitos humanos por empresas, o rastro documental dos crimes dos poderosos – que sempre foram a base para o jornalismo investigativo.
Permite, assim, que dezenas de veículos independentes, jornalistas, ativistas – e usuários – se apropriem dessa documentação e se tornem também provedores de jornalismo de qualidade.
Há aí uma noção hacker intrínseca na maneira de o WikiLeaks praticar jornalismo: se por um lado a organização se alia a veículos tradicionais de mídia – assim como a veículos não tradicionais – por outro ela incentiva a disseminação de conteúdos livres, fora dessa indústria.
E a indústria da notícia é hoje uma das principais trincheiras na disputa sobre o vasto mundo da internet.
O Cablegate no Brasil
Muitos criticaram, na época do lançamento do Cablegate, a parceria estabelecida com grupos de mídia que concentram a produção e a disseminação da informação, agindo às vezes como barreira para “a informação que quer ser livre”. Diziam que o WikiLeaks fortalecia a indústria tradicional da notícia. Sei disso porque fiz parte da equipe selecionada por Julian Assange para pensar uma estratégia de divulgação para os documentos, tendo coordenado a divulgação dos 3 mil documentos de embaixadas e consulados norte americanos no Brasil.
Foram seis meses de trabalho, que renderam uma das experiências mais ricas e completas de disseminação dos relatos diplomáticos. No percurso, aprendi que o modo de produção do WikiLeaks, em si, questiona e abala a indústria de notícias.
Não se trata de um conceito teórico apenas; na semente do WikiLeaks – que, como organização fundamentalmente da era digital, não “é”, não termina de “ser” jamais, passa por constantes transmutações – está o questionamento profundo do controle da informação noticiosa.
A ideia, desde o começo, era que as histórias se espalhassem o máximo possível, de modo a chegar aos cidadãos dos países aos quais se referiam. Do ponto de vista logístico, disseminar esses documentos de maneira profissional e orquestrada para tantos países parecia uma tarefa impossível. Mas, graças à estratégia de Assange, em um ano eles haviam chegado a mais de setenta parceiros de todo o mundo – jornais, revistas, sites independentes, jornalistas freelancers, ONGs. É um feito notável, e sem dúvida um marco na história do jornalismo.
A ideia de Assange sempre foi expandir a quantidade de veículos que receberiam o material – a contragosto dos parceiros iniciais e Guardian, e New York Times, Le Monde, El País e Der Spiegel. E espalhar o material também para os países periféricos, longe dos centros de poder da Europa e dos EUA.
Acompanhei de perto esse embate colossal, que marcava já o início das rusgas da indústria de notícias com o WikiLeaks, porque Assange considerava o Brasil um país estratégico, que precisava ser contemplado logo na primeira leva.
Sob protestos dos jornais do hemisfério Norte, divisamos uma maneira de seguir em frente. Além de compartilhar documentos específicos com um grande veículo brasileiro, eu escreveria reportagens para o site do WikiLeaks, sob a licença creative commons, com disseminação livre, para o site da organização.
Uma dezena de jornalistas independentes de outros países, voluntários como eu, fizeram o mesmo, e o resultado foi uma profusão de matérias sobre documentos que não tinham recebido atenção daquele grupo de veículos da imprensa tradicional.
Um exemplo foi o documento que ficou conhecido como “A lista de compras do Império”, ignorado pelos grandes jornais. Ele dissecava os interesses estratégicos norte americanos em todo o mundo – de gasodutos na Rússia até minério de ferro e nióbio no Brasil. Nele, o Departamento de Estado de Hillary Clinton pedia que suas embaixadas pesquisassem a segurança dessas instalações em segredo: “Não estamos pedindo que as embaixadas consultem os governos a respeito dessa solicitação”, dizia o documento.
O processo de publicação dos documentos da missão norte americana no Brasil acabou sendo um dos mais criativos e extensos, e teve também uma boa dose de experimentação. Começou com uma dura decisão, já que só existem três jornais de circulação nacional – Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo – todos eles parte de conglomerados com interesses que muitas vezes interferem na cobertura de temas nacionais. Isso reflete a concentração histórica da mídia no Brasil, onde cinco empresas, pertencentes a seis famílias, controlam 70% de toda a mídia. Existem, claro, excelentes repórteres que poderiam fazer um bom trabalho, mesmo que soubéssemos desde o começo que algumas histórias seriam parciais e outras jamais seriam publicadas. Assim, decidi entrar em contato com a Folha de S.Paulo, por meio do jornalista Fernando Rodrigues, diretor da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Na véspera do vazamento, escrevi a primeira história que seria publicada no site do WikiLeaks, e enviei a ao jornal, junto com trechos dos documentos. Relatava que a polícia federal prendera suspeitos de terrorismo sob acusações de outros crimes para não atrair a atenção.
A história foi publicada pela Folha e depois reproduzida por toda a imprensa. O governo Lula negou a informação, e o assunto morreu por aí. Mas a publicação chamou a atenção de toda a mídia para as futuras revelações, de modo que todos pediam mais: jornais, rádio, TVs. Decidimos, então, trabalhar também com O Globo, no Rio de Janeiro, para dinamizar a cobertura e garantir que um jornal serviria de contrapeso ao outro. A direção da Folha não ficou muito contente com isso, mas concordou. Assim começou uma colaboração inédita entre dois dos maiores jornais brasileiros e uma organização internacional sem fins lucrativos.
Todos os temas eram decididos conjuntamente, e a Folha, o Estado e o WikiLeaks publicavam simultaneamente reportagens sobre o mesmo lote de documentos. A parceria funcionou muito bem, e produziu uma centena de boas reportagens.
Embora os dois jornais adotassem ângulos similares em algumas histórias, outras foram cobertas de maneira bem diferente. O Globo, por exemplo, criticou duramente um ex embaixador norte americano que afirmara que a presidenta Dilma Rousseff teria realizado um roubo armado durante a ditadura militar. A Folha foi mais leniente. Ambos os jornais publicaram que os EUA estavam preocupados com a segurança em relação às Olimpíadas de 2016 no Brasil; eu escrevi um artigo para o site do WikiLeaks descrevendo que os EUA estavam fazendo lobby para prover treinamento e segurança, assim como aumentando sua presença no país.
Ter três veículos analisando ao mesmo tempo os mesmos documentos permitiu vislumbrar de maneira única como funciona o jornalismo – e como o mesmo material pode ser tratado de maneiras diferentes.
Um exemplo é o texto “Meu amigo Jobim”, publicado no site do WikiLeaks, onde descrevi, com base nos documentos, como o ex ministro da Defesa Nelson Jobim manteve diversas reuniões com o embaixador norte americano em que compartilhava abertamente sua antipatia em relação ao “antiamericanismo” do Itamaraty, passando a ele informações sobre uma compra de caças, de interesse comercial dos EUA, e sobre parcerias militares com outros países no combate ao narcotráfico.
Os documentos revelavam como a administração George W. Bush usava a estratégia de manter contatos estreitos com Jobim para contrabalançar a postura independente do Brasil, chamando o de “incomumente ativista” em defesa dos interesses norte americanos. A Folha de S.Paulo recebeu os mesmos documentos, mas enfatizou o fato de que o Itamaraty é visto pelos EUA como “inimigo”.
O artigo publicado no site do WikiLeaks foi reproduzido nas redes sociais e levou muitos websites de esquerda a chamar Jobim de traidor, gerando um escândalo político que o enfraqueceu no momento em que ele assumia seu segundo mandato à frente do Ministério da Defesa no governo de Dilma Rousseff. Jobim saiu oito meses depois, e no seu lugar assumiu o ex chanceler Celso Amorim, tão criticado por ele por trás das portas da embaixada norte americana em Brasília.
Em meados de janeiro de 2011, estava claro que os jornais não iriam exaurir todos os documentos, por causa de suas limitações de diários impressos e comerciais. Ao mesmo tempo, eu havia começado um blog que tinha uma ótima interação com leitores interessados nas histórias ainda não contadas. Foi assim que concebemos uma segunda etapa da divulgação.
Dessa vez, seria o público, em vez dos editores, a decidir os temas de interesse. Através do blog, eu pedi aos leitores que sugerissem tópicos, e selecionei os duzentos mais pedidos. Para publicar as histórias, criamos uma força tarefa de blogueiros, para quem enviei os documentos antes da publicação no site.
Foi assim, apostando em uma parceria com veículos não tradicionais, que vieram à tona furos referentes às reuniões do ex presidente Fernando Henrique Cardoso e do ex governador de São Paulo José Serra com diplomatas norte americanos, bem como as declarações do então subprefeito da Sé, Andrea Matarazzo, de que o governador de São Paulo Geraldo Alckmin seria membro da Opus Dei.
Nenhum dos dois jornais, parceiros de primeira hora, haviam publicado essas informações.
As publicações dos blogueiros, porém, também arrefeceram após um tempo. Faltava lhes estrutura, pessoal e expertise para um trabalho exaustivo como o de pesquisar centenas de documentos – trabalho natural de um tipo específico de jornalista, aquele que se dedica a reportagens investigativas.
Foi assim que, em meados de março, juntei me a um grupo de mulheres jornalistas para fundar a Agência Pública, primeira agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Brasil.
Inspirada em organizações similares de outros países, usamos como filosofia a disseminação livre de conteúdo, em creative commons, e a divulgação das bases de todas as nossas reportagens – todos os documentos.
A Pública realizou então a última fase de publicação dos documentos do Cablegate relativos ao Brasil.
Isso foi feito por crowdsourcing: uma redação temporária formada por quinze jornalistas se reuniu na sede da Agência Pública. Surpreendentemente, conseguimos publicar mais cinquenta matérias baseadas nos documentos diplomáticos. Novas revelações incluíam reuniões entre diplomatas norte americanos e representantes da imprensa e a transferência secreta para o Brasil de trinta agentes da DEA (Drug Enfrorcement Agency) norte americana, que haviam sido expulsos da Bolívia em 2008, acusados de espionagem.
Essas histórias criaram mais um furor na mídia, que reproduziu o conteúdo em creative commons. E provaram que, na nova fronteira digital, é possível para um grupo de jornalistas independentes produzir e disseminar conteúdo de qualidade – e até prosseguir nas histórias ignoradas pela mídia tradicional.
É como uma caixa de Pandora: será impossível agora conter o fluxo de jornalismo independente inspirado pelo trabalho do WikiLeaks.
Passados dois anos dessa experiência, na conversa com seus colegas cypherpunks que você lerá a seguir, Julian Assange disseca as limitações com as quais teve contato na produção de jornalismo no Ocidente – que, segundo ele, vive um tipo de censura sofisticada:
Podemos pensar na censura como uma pirâmide. É só a ponta dela que aparece na areia, e isso é proposital. A ponta é pública – calúnias, assassinatos de jornalistas, câmeras sendo apreendidas pelos militares e assim por diante –, é uma censura publicamente declarada. Mas esse é o menor componente. Abaixo da ponta, na camada seguinte, estão todas as pessoas que não querem estar na ponta, que se envolvem na autocensura para não acabar lá. Na camada subsequente estão todas as formas de aliciamento econômico ou clientelista que são direcionadas às pessoas para que elas escrevam sobre isso ou aquilo. A próxima camada é a da economia pura – sobre o que vale economicamente a pena escrever.
O conceito do WikiLeaks é um marco no jornalismo porque permite a sub versão das camadas mais profundas dessa “censura”. Não é à toa que, após a lua-de-¬mel inicial do vazamento do Cablegate, grande parte do mainstream da imprensa tenha se tornado hostil à organização. É apenas mais um front nas batalhas digitais de Assange.
*Natalia Viana é jornalista, codiretora da Agência Pública e autora e coautora de três livros: Plantados no chão: assassinatos políticos no Brasil hoje, Habeas corpus: que se apresente o corpo – a busca dos desaparecidos políticos no Brasil.
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