sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O conto do "país indispensável" – por Noam Chomsky (Tom Dispatch / Outras Palavras)


Em trecho inédito de seu livro mais recente, Noam Chomsky afirma: nada indica que declínio norte-americano prejudique a democracia

Entrevista de Noam Chomsky* a David Barsamian, no Tom Dispatch | Tradução: Gabriela Leite

Os Estados Unidos ainda têm o mesmo nível de controle sobre os recursos energéticos do Oriente Médio que já tiveram?
Os países que são maiores produtores de combustíveis ainda estão firmemente sob controle das ditaduras apoiadas pelo Ocidente. O progresso obtido pela Primavera Árabe é limitado, mas não insignificante. O sistema de ditaduras controladas pelo Ocidente está ruindo. Na verdade, vem ruindo há algum tempo. Diferente do que ocorria há cinquenta, os recursos energéticos — a maior preocupação dos planejadores norte-americanos — foram, em sua maioria, estatizados. Há tentativas constantes de reverter isso, mas não tiveram sucesso.

Vamos examinar a invasão do Iraque, por exemplo. Para todos, exceto os ideólogos ferrenhos, era muito óbvio que invadimos o Iraque não por causa do nosso amor à democracia, mas porque o país era provavelmente a segunda ou terceira maior fonte de petróleo no mundo, e fica bem no meio da região de maior produção de energia. Mas não se deve dizer isso. É considerado teoria da conspiração.

Os Estados Unidos foram seriamente derrotados pelo nacionalismo iraquiano — principalmente por resistência não-violenta. Podia-se matar os insurgentes, mas não se conseguia lidar com meio milhão de pessoas fazendo manifestações nas ruas. Passo a passo, o Iraque conseguiu desmantelar o controle estabelecido pelas forças ocupantes. Em novembro de 2007, já estava se tornando muito claro que Washington teria muita dificuldade para atingir suas metas. O interessante é que, naquele momento, elas estavam explicitamente estabelecidas.

Em novembro de 2007, o segundo governo de Bush emitiu declaração oficial sobre que arranjo futuro que o Iraque iria ter. Havia dois requisitos principais: primeiro, os Estados Unidos deveriam estar livres para desencadear operações de combate a partir de suas bases militares, as quais seriam preservadas. A segunda meta era “encorajar o fluxo de investimentos estrangeiros ao Iraque, especialmente os norte-americanos.” Em janeiro de 2008, Bush deixou isso claro em uma de suas notas oficiais. Dois meses depois, ao enfrentar a resistência iraquiana, os Estados Unidos tiveram que desistir destes objetivos. O controle sobre o Iraque estava desaparecendo diante de seus olhos.

O Iraque foi uma tentativa de reinstituir à força algo do velho sistema de controle, mas ela foi derrotada. Em geral, acredito, as políticas estadunidenses continuam tentando constantemente voltar à Segunda Guerra Mundial. Mas a capacidade de implementá-las está declinando.

Declinando devido à fraqueza econômica?
Em parte, porque o mundo está simplesmente tornando-se mais diverso. Ele tem centros de poder mais diversos. No fim da Segunda Guerra, os Estados Unidos estavam absolutamente no topo de seu poder. Tinham metade da riqueza mundial e todos os seus competidores haviam sido destruídos ou seriamente atingidos. Washington tinha uma posição de segurança inimaginável, e desenvolveu planos para, essencialmente comandar, o mundo. Não era algo irrealista, àquela época.

Isso era chamado de o planejamento da “Grande Área”?
Sim. Logo após a Segunda Guerra Mundial, George Kennan, chefe do pessoal de planejamento político do Departamento do Estado dos EUA, e outros, rascunharam os detalhes, que foram então implementados. O que está acontecendo agora no Oriente Médio, no norte da África e na América do Sul substancialmente retoma o que acontecia no fim dos anos 1940. A primeira grande resistência à hegemonia dos EUA deu-se em 1949. Foi quando se deu algo que é chamado curiosamente de “a perda da China.” É uma frase muito interessante, nunca renegada. Houve muita discussão sobre quem foi responsável pela perda da China, virou um grande assunto doméstico. Mas é uma expressão muito interessante. Você só pode perder alguma coisa se ela já lhe pertenceu. Toma-se por garantido que nós possuímos a China. Portanto, se eles alcançassem a independência, nós teríamos perdido a China. Mais tarde vieram as preocupações sobre “a perda da América Latina”, “a perda do Oriente Médio”, “a perda de” alguns países. Tudo baseado na premissa de que nós possuímos o mundo e qualquer coisa que enfraqueça nosso controle é uma perda para nós, que deve ser recuperada.

Hoje, se você ler, digamos, revistas de política externa, ou acompanhar os debates do Partido Republicano, verá que estão dizendo “Como vamos prevenir perdas futuras?”

Por outro lado, a capacidade de preservar o controle declinou nitidamente. Em 1970, o mundo já era o que é chamado de economicamente tripolar, com um centro industrial estadunidense; um europeu, com núcleo na Alemanha e aproximadamente comparável, em tamanho; e um do leste asiático, baseado no Japão, que era então a região de maior crescimento no mundo. Desde então, a ordem econômica global tornou-se muito mais diversa. Por isso, é difícil manter nossas políticas, mas os princípios subjacentes não mudaram muito.

Tome, por exemplo, a doutrina Clinton. Ela significava que os Estados Unidos têm o direito de recorrer à força unilateral para assegurar “livre-acesso aos mercados-chave, fontes de energia e recursos estratégicos.” A frase vai além de qualquer coisa que George W. Bush disse, mas o presidente não a alardeou, nem era arrogante e áspero. Por isso, não houve tumulto. A crença nesse direito continua até o presente. Também é parte da cultura intelectual.

Logo após o assassinato de Osama Bin Laden, entre todas as comemorações e aplausos, houve alguns comentários de crítica questionando a legalidade do ato. Séculos atrás, costumava haver uma coisa chamada presunção de inocência. Se você apreende um suspeito, ele é apenas suspeito, até que se prove culpado. Ele deve ser levado a julgamento. É uma parte essencial da lei norte-americana e tem origens na Carta Magna. Por isso, algumas vozes isoladas disseram que talvez não devêssemos jogar pela janela toda a base da justiça anglo-americana. Isso provocou muitas reações de desconforto ou furiosas, mas as mais interessantes partiram, como sempre, dos liberais de esquerda.

Matthew Yglesias, um comentarista conhecido e muito respeitado, escreveu um artigo no qual ridiculariza essas visões. Ele disse que são “surpreendentemente ingênuas”, tolas. É como se expressasse a razão. Disse que “uma das principais funções da ordem institucional internacional é precisamente legitimar o uso de força militar mortal por potências ocidentais.” Obviamente, não estava referindo-se à Noruega… mas aos Estados Unidos. Ou seja, o princípio no qual o sistema internacional está baseado é de que Washington tem o direito de usar a força à sua vontade. Falar sobre a violação da lei internacional, ou algo do tipo, pelos EUA, é “surpreendentemente ingênuo”, completamente bobo. Por acaso, eu fui o alvo dessas observações, e eu estou feliz por confessar minha culpa. Eu acredito, sim, que a Carta Magna e a lei internacional valem alguma atenção.

Menciono o fato apenas para ilustrar que o núcleo da cultura intelectual, mesmo entre a esquerda liberal, não mudou muito. Mas a capacidade de implementá-lo está nitidamente reduzida. É por isso que existe todo esse papo sobre o declínio dos Estados Unidos. Dê uma olhada na edição de fim de ano do Foreign Affairs, o principal jornal do establishment. Sua capa perguntava, em negrito: “É o fim da América?” É uma preocupação-padrão daqueles que acreditam que deveriam ter tudo. Se você acredita que precisa ter tudo, e que tudo que sai do seu controle é uma tragédia, então o mundo está entrando em colapso. É o fim dos Estados Unidos? Há um tempo, nós “perdemos” a China, perdemos o sudeste da Ásia, perdemos a América do Sul. Talvez, venhamos a perder também o Oriente Médio e os países do norte da África. É o fim da América? É um tipo de paranoia, mas é a paranoia dos super-ricos e dos superpoderosos. Para eles, não ter tudo é um desastre.

O New York Times descreve o “dilema definidor da política da Primavera Árabe: como enquadrar impulsos norte-americanos contraditórios, que incluem o apoio à mudança democrática, o desejo de estabilidade e a cautela diante dos islamitas, que se tornaram uma força política potente.” O Times identifica três objetivos dos EUA. O que fazer com eles?
Dois deles são precisos. Os Estados Unidos são a favor da estabilidade. Mas é preciso lembrar o que estabilidade significa. Estabilidade significa conformidade às ordens dos EUA. Então, por exemplo, uma das acusações ao Irã, a grande ameaça externa política, é que ele estava desestabilizando o Iraque e o Afeganistão. Como? Tentando expandir sua influência nos países vizinhos. Já nós, “estabilizamos” países quando os invadimos e destruímos.

Eu cito ocasionalmente uma das imagens que, para mim, ilustram muito bem isso. Foi construída por um analista liberal de política externa, muito conhecido: James Chace, um ex-editor do Foreign Affairs. Escrevendo sobre a derrota do regime de Salvador Allende e a imposição da ditadura de Augusto Pinochet, em 1973, ele afirmava que tínhamos que “desestabilizar” o Chile em nome da “estabilidade”. Isso não é visto como uma contradição — e não o é. Nós tivemos que destruir o regime democrático para obter estabilidade, no sentido de garantir que façam o que nós determinamos. Por isso, sim, nós somos a favor da estabilidade nesse sentido técnico.

Preocupações sobre a política islâmica são exatamente iguais às preocupações com qualquer evolução independente. É preciso preocupar-se com qualquer coisa que é independente, porque ela pode minar nosso poder. Na verdade, isso é um pouco irônico, porque tradicionalmente os Estados Unidos e a Grã-Bretanha têm, em geral, apoiado firmemente o fundamentalismo islâmico radical, não o Islã político, como uma força para bloquear o nacionalismo secular, sua real preocupação. Por exemplo, a Arábia Saudita é o Estado mais fundamentalista do mundo, um Estado islâmico radical. Ela tem um zelo missionário, está espalhando o Islã radical para o Paquistão, financiando o terror. Mas é o bastião da política dos EUA e da Grã-Bretanha — que a apoia constantemente, desde a “ameaça” do nacionalismo secular de Gamal Abdel Nasser (no Egito) e Abd al-Karim Qasim (no Iraque), entre muitos outros. Mas Washington e Londres não gostam do Islã político, porque ele pode tornar-se independente.

O primeiro dos três pontos, no suposto apoio à democracia, está mais ou menos no nível de Joseph Stalin falando sobre o compromisso russo com a liberdade e democracia do mundo. É o tipo de declaração do qual você ri quando ouve dos comissários do clero iraniano, mas acena com a cabeça, educadamente e talvez até com admiração, quando ouve das contrapartes ocidentais.

Um olhar sobre o passado mostra que o apoio à democracia é uma piada fraca. Até os acadêmicos mais famosos reconhecem isso, apesar de não o dizerem dessa maneira. Um dos maiores estudiosos da chamada “promoção da democracia” é Thomas Carothers, que é bem conservador e altamente considerado — um neo-reaganista, não um liberal flamejante. Ele trabalhou do Departamento do Estado de Reagan e tem alguns livros que revisam o histórico da “promoção da democracia”, algo que leva muito a sério. Diz que, sim, trata-se de um ideal norte-americano profundo, mas tem uma história divertida. Todo governo dos EUA é “esquizofrênico” a esse respeito. Eles apoiam a democracia apenas se esta se conforma a certas estratégias e interesses econômicos. Carothers descreve isso como uma estranha patologia, como se os Estados Unidos precisassem de um tratamento psiquiatra ou algo parecido. Obviamente, há uma outra interpretação, mas ela não vem à mente se você é um intelectual educado que se comporta apropriadamente.

Alguns meses após sua queda, o presidente Hosni Mubarak, do Egito, estava no banco dos réus, enfrentando acusações criminais. É inconcebível que os líderes dos EUA sejam responsabilizados por seus crimes no Iraque ou em outros países? Isso vai mudar em algum momento próximo?
Aqui entra o princípio de Yglesias: o fundamento da ordem internacional é que os Estados Unidos têm o direito de usar violência à sua vontade. Então como alguém pode ser acusado?

E ninguém mais tem esse direito.
É claro que não. Bem, talvez os nossos clientes tenham. Se Israel invadir o Líbano, matar mil pessoas e destruir metade do país, ok, isso é correto. É interessante. Barak Obama foi senador antes de se tornar presidente. Ele não fez muito como senador, mas fez uma coisa ou duas, incluindo algo de que tem orgulho particular. Se você olhasse seu website antes das primárias, ele sublinhava o fato de que, durante a invasão israelense do Líbano, em 2006, ele co-patrocinou uma resolução do Senado que exigia que os Estados Unidos não fizessem nada para impedir as ações militares de Tel Aviv, até que elas tivessem alcançado seus objetivos; e censurassem o Irã e a Síria, porque eles estavam apoiando a resistência à destruição do sul do Líbano, pela quinta vez em 25 anos. Israel ganhou esse direito. Outros clientes ganharam, também.

Mas os direitos realmente residem em Washington. Isso significa possuir o mundo. É como o ar que você respira. É algo inquestionável. O principal fundador da teoria das relações internacionais contemporâneas, Hans Morgenthau, foi realmente uma pessoa muito decente, um dos únicos cientistas políticos de relações internacionais especialista em criticar a Guerra do Vietnã por motivos morais, não táticos. Muito raro. Ele escreveu um livro chamado The Purpose of American Politics, segundo o qual outros países não têm propósitos. Já o propósito dos Estados Unidos é “transcendente”: trazer liberdade e justiça para o resto do mundo. Mas ele é um bom acadêmico, como Carothers.

Por isso, ele foi além. Disse que, quando você estuda os fatos passados, parece que os Estados Unidos não mantiveram até o fim seu propósito transcendente. Mas ele ressalva, criticar nosso propósito transcendente “é cair no erro do ateísmo, que nega a validade da religião por motivos semelhantes” — o que é uma boa comparação. É uma crença religiosa profundamente arraigada. É tão profunda que vai ser difícil livrar-se dela. E se qualquer um questionar isso, é levado a uma quase histeria e normalmente acusado de anti-americanismo ou “ódio à America” — conceitos interessantes que não existem em sociedades democráticas, apenas nas totalitárias e aqui, onde são tidos como naturais.

* Noam Chomsky é professor emérito do Departamento de Linguística e Filosofia do MIT — Instituto de Tecnologia de Massachussets. Colaborador regular do Tom Dispatch, é autor de diversas obras políticas de grande repercussão. Esta entrevista é um trecho adaptado do livro Power Systems: Conversations on Global Democratic Uprisings and the New Challenges to U.S. Empire [“Sistemas de Poder: Diálogos sobre os levantes democráticos globais e os novos desafios ao império norte-americano”]. Ainda sem tradução para o português, a obra é editada pela Metropolitan Books e pode ser comprada aqui.

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