A verdadeira identidade das pessoas são as lembranças
(Tomas Eloy Martinez, escritor argentino)
A família tinha uma pequena fábrica. Produzia pães, massas e matzá, o pão ázimo que os judeus comem na época do Pessach, a (mal) chamada Páscoa judaica. Tanto na cidadezinha onde moravam, como na capital Varsóvia, a freguesia requisitava aquela bolacha crocante o ano todo (quem nunca experimentou, não sabe o que está perdendo), e a vida seguia sem muitos sobressaltos. De vez em quando um mergulho no rio, uma fugidinha para Varsóvia. Sonhos numa Polônia que acolhia e repelia, relação complexa em época turbulenta.
David aprendeu a gostar de música. Chopin era uma hipnose. Muitos anos depois, tentei fazer uma pegadinha. Sem dizer o compositor, mostrei a ele uma peça de Ernesto Nazareth, bem chorosa. “E aí, seu David, belo Chopin, hem ?”, provoquei. Ele ouviu, gostou, mas não caiu. “Parece, mas não é”. Consigo imaginá-lo numa sala de concertos em Varsóvia, feliz com alguma Polonaise, um Noturno ou a Grande Valsa Brilhante. Penso que a música o ajudou a atravessar a borrasca que não tardaria.
Quando a Alemanha nazista invadiu a Polônia, em 1º de setembro de 1939, começando a Segunda Guerra Mundial, David estava em Vilna, a chamada Jerusalém da Lituânia, centro espiritual e intelectual do judaísmo no leste europeu. Num cenário de grande efervescência, ele cursava a Faculdade de Humanidades. Com as primeiras notícias do front polonês, pressente a tragédia que vinha montada em Panzers e Messerschmitts e abandona tudo. Inicia uma jornada quase inacreditável, que passa por Vladivostok (URSS), Kobe (Japão) e Shanghai (China). Ele e uns poucos milhares são ajudados pelos cônsules da Holanda e do Japão em Kovno, que concedem vistos salvadores.
Passa boa parte da guerra em Shanghai, no início uma cidade aberta, dividida em três setores. Os refugiados se organizam e criam atividades culturais. No dia 17 de novembro de 1941, é levada ao ar a primeira transmissão radiofônica do único programa voltado para a comunidade judaica local. O jovem David, com apenas 25 anos, produz e dirige o programa. Cria sketches, pequenas peças teatrais. Sempre em ídish, a língua que mais amou. Envolve-se também com a organização de palestras e conferências e consolida o envolvimento com aquela que seria sua profissão depois da guerra: o jornalismo.
É extraordinário como, em situações extremas, o Homem não abandona a cultura. No gueto de Varsóvia, submetidos a condições desumanas, cativos se reuniam em bancos toscos, liam, discutiam filosofia, política, literatura. Podiam estar mortos no dia seguinte, mas a necessidade imperiosa de falar sobre a beleza e as grandes questões humanas abafava o medo e driblava a Morte. Na Ilha Grande, logo após a insurreição de 1935, presos políticos transformaram o terrível cativeiro numa escola. Cada um socializava o que conhecia melhor. Graciliano Ramos descreve a expectativa com que as aparições do Barão de Itararé eram aguardadas. A imagem do dirigente comunista argentino Rodolfo Ghioldi, de cueca, dando aulas sobre política e filosofia, não casa com esse mundinho narcisista em que vivemos.
Terminada a guerra, David tenta localizar a família que ficara na Polônia. Como tantos outros, soube que não sobrara ninguém. Como é que se resiste a uma notícia dessas ? Como preservar a integridade psíquica ? Por caminhos surpreendentes, acaba indo para Montevidéu, onde se dedica ao jornalismo. Lá, recebe um convite para assumir um jornal em São Paulo, onde fica pouco tempo. Em 1951, chega ao Rio e passa a dirigir o jornal Imprensa Israelita, onde permanece até 1988, quando deixou de circular. Também dirigiu, entre 1955 e 1983, um programa diário de rádio. Raramente falava sobre o período da guerra. Era seu jeito de lidar com o sofrimento: melhor deixá-lo, quietinho, armazenado numa prateleira da memória. Cortante, sem dúvida, mas sem transformar-se em entulho que sufocasse a vida. Soube que apenas uma vez desarquivou as dores e chorou. Foi durante a visita que fez a Auschwitz, lugar onde seus pais foram assassinados. Faleceu em 2000.
Uma das estratégias de desumanização que os nazistas usaram nos campos de concentração e extermínio era a tatuagem de números nos prisioneiros. Todos eram obrigados a memorizá-los. Quem não o fizesse, podia ser fuzilado sumariamente. Perdiam-se os nomes, enfraqueciam-se as identidades. Primo Lévi, prisioneiro em Auschwitz, comentou que fazer a barba num ambiente em que era praticamente impossível conseguir lâminas ou navalhas era, mais do que um gesto de resistência, um ato de afirmação, de humanização. Guerra transforma gente em estatística. Se eu disser, por exemplo, que cerca de 5.300 povoados da Bielorrússia foram totalmente destruídos pelos nazistas ficarei, certamente, horrorizado. No entanto, não saberei nada sobre nenhum dos chacinados. Cada lugar devastado é um monumento à pessoa desconhecida. São mortos invisíveis, anônimos, pontos nas curvas dos pesquisadores.
Semana passada, completaram-se 68 anos da capitulação alemã, que pôs fim à guerra na Europa. Estamos habituados à espetacularização da violência popularizada pelo cinema. Não há, entretanto, efeito especial que consiga descrever uma fração sequer de uma única vida ceifada pela barbárie nazi-fascista. Ao lembrar a trajetória de David Markus, humanizo as vítimas e as retiro dos gráficos. Homenageando sua memória, presto tributo aos que caíram, vítimas da intolerância, do racismo, da guerra.
(*) Jacques Gruman é engenheiro químico e militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário