Olá, sou médico e gostaria de opinar sobre a
gritaria em relação à vinda dos médicos cubanos ao Brasil
Bom, como opinião inteligente se constrói com o
contraditório, vou tentar levantar aqui algumas informações sobre a vinda de
médicos cubanos para regiões pobres do Brasil que ainda não vi serem abordadas.
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O principal motivo de reclamação dos médicos, da imprensa e do CFM seria uma
suposta validação automática dos diplomas destes médicos cubanos, coisa que em
momento algum foi afirmado por qualquer membro do governo. Pelo contrário, o
próprio ministro da saúde, Antônio Padilha, já disse que concorda que a
contratação de médicos estrangeiros deve seguir critérios de qualidade e
responsabilidade profissional. Portanto, o governo não anunciou que trará
médicos cubanos indiscriminadamente para o país. Isto é uma interpretação
desonesta.
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Acho estranho o governo ter falado em atrair médicos cubanos, portugueses e
espanhóis, e a gritaria ser somente em relação aos médicos cubanos. Será que
somente os médicos cubanos precisam revalidar diploma? Sou médico e vivo em
Portugal, posso garantir que nos últimos anos conheci médicos portugueses e
espanhóis que tinham nível técnico de sofrível para terrível. E olha que
segundo a OMS, Espanha e Portugal têm, respectivamente, o 6º e o 11º melhores
sistemas de saúde do mundo (não tarda a Troika dar um jeito nesse excesso de
qualidade). Profissional ruim há em todos os lugares e profissões. Do jeito que
o discurso está focado nos médicos de Cuba, parece que o problema real não é
bem a revalidação do diploma, mas sim puro preconceito.
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Portugal já importa médicos cubanos desde 2009. Aqui também há dificuldade de
convencer os médicos a ir trabalhar em regiões mais longínquos, afastadas dos
grandes centros. Os cubanos vieram estimulados pelo governo, fizeram prova e
foram aprovados em grande maioria (mais à frente vou dar maiores detalhes deste
fato). A população aprovou a vinda dos cubanos, e em 2012, sob pressão popular,
o governo português renovou a parceria, com amplo apoio dos pacientes. Portanto,
um dos países com melhores resultados na área de saúde do mundo importa médicos
cubanos e a população aprova o seu trabalho.
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Acho que é ponto pacífico para todos que médicos estrangeiros tenham que ser
submetidos a provas aí no Brasil. Não faz sentido importar profissionais de
baixa qualidade. Como já disse, o próprio ministro da saúde diz concordar com
isso. Eu mesmo fui submetido a 5 provas aqui em Portugal para poder validar meu
título de especialista. As minhas provas foram voltadas a testar meus
conhecimentos na área em que iria atuar, que no caso é Nefrologia. Os cubanos
que vieram trabalhar em Medicina de família também foram submetidos a provas,
para que o governo tivesse o mínimo de controle sobre a sua qualidade.
Pois bem, na última leva, 60 médicos cubanos
prestaram exame e 44 foram aprovados (73,3%). Fui procurar dados sobre o
Revalida, exame brasileiro para médicos estrangeiros e descobri que no ano de
2012, de 182 médicos cubanos inscritos, apenas 20 foram aprovados (10,9%). Há
algo de estranho em tamanha dissociação. Será que estamos avaliando
corretamente os médicos estrangeiros?
Seria bem interessante que nossos médicos se
submetessem a este exame ao final do curso de medicina. Não seria justo que os
médicos brasileiros também só fossem autorizados a exercer medicina se
passassem no Valida? Se a preocupação é com a qualidade do profissional que vai
ser lançado no mercado de trabalho, o que importa se ele foi formado no Brasil,
em Cuba ou China? O CFM se diz tão preocupado com a qualidade do médico cubano,
mas não faz nada contra o grande negócio que se tornaram as faculdades
caça-níqueis de Medicina. No Brasil existe um exército de médicos de qualidade
pavorosa. Gente que não sabe a diferença entre esôfago e traqueia, como eu já pude
bem atestar. Porque tanto temor em relação à qualidade dos estrangeiros e tanta
complacência com os brasileiros?
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Em relação este exame de validação do diploma para estrangeiros abro um
parêntesis para contar uma situação que presenciei quando ainda era acadêmico
de medicina, lá no Hospital do Fundão da UFRJ.
Um rapaz, se não me engano brasileiro, tinha feito
seu curso de medicina na Bolívia e havia retornado ao país para exercer sua
profissão. Como era de se esperar, o rapaz foi submetido a um exame, que eu
acredito ser o Revalida (na época realmente não procurei me informar). O fato é
que a prova prática foi na enfermaria que eu estava estagiando e por isso pude
acompanhar parte da avaliação. Dois fatos me chamaram a atenção, o primeiro é a
grande má vontade dos componentes da banca com o candidato. Não tenho dúvidas
que ele já havia sido prejulgado antes da prova ter sido iniciada. Outro fato
foi o tipo de perguntas que fizeram. Lembro bem que as perguntas feitas para o
rapaz eram bem mais difíceis que aquelas que nos faziam nas nossas provam.
Lembro deles terem pedidos informações sobre detalhes anatômicos do pescoço que
só interessam a cirurgiões de cabeça e pescoço. O sujeito que vai ser médico de
família, não tem que saber todos os nervos e vasos que passam ao lado da
laringe e da tireoide. O cara tem que saber tratar diarreia, verminose,
hipertensão, diabetes e colesterol alto. Soube dias depois que o rapaz tinha
sido reprovado.
Não sei se todas as provas do Revalida são assim,
pois só assisti a uma, e mesmo assim parcialmente. Mas é muito estranho os
médicos cubanos terem alta taxa de aprovação em Portugal e pouquíssimos
passarem no Brasil. Outro número que chama a atenção é o fato de mais de 10%
dos médicos em atividade em Portugal serem estrangeiros. Na Inglaterra são 40%.
No Brasil esse número é menor que 1%. E vou logo avisando, meu salário aqui não
é maior do que dos meus colegas que ficaram no Brasil.
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Até agora não vi nem o CFM nem a imprensa irem lá nas áreas mais carentes do
Brasil perguntar o que a população sem acesso à saúde acha de virem 6000
médicos cubanos para atendê-los. Será que é melhor ficar sem médico do que ter
médicos cubanos? É o óbvio ululante que o ideal seria criar condições para que
médicos brasileiros se sentissem estimulados a ir trabalhar no interior. Mas em
um país das dimensões do Brasil e com a responsabilidade de tocar a medicina
básica pulverizada nas mãos de centenas de prefeitos, isso não vai ocorrer de
uma hora para outra. Na verdade, o governo até lançou nos últimos anos o
Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica (Provab), que oferece
salários mensais de R$ 8 mil e pontos na progressão de carreira para os médicos
que vão para as periferias. O problema é que até hoje só 4 mil médicos aceitaram
participar do programa. Não é só salário, faltam condições de trabalho. O que
fazemos então? vamos pedir para os mais pobres aguentar mais alguns anos até
alguém conseguir transformar o SUS naquilo que todos desejam? Vira lá para a
criança com diarreia ou para a mãe grávida sem pré-natal e diz para ela segurar
as pontas sem médico, porque os médicos do sul e sudeste do Brasil, que não
querem ir para o interior, acham que essa história de trazer médico cubano vai
desvalorizar a medicina do Brasil.
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É bom lembrar que Cuba exporta médicos para mais de 70 países. Os cubanos estão
acostumados e aceitam trabalhar em condições muito inferiores. Aliás, é nisso
que eles são bons. Eles fazem medicina preventiva em massa, que é muito mais
barata, e com grandes resultados. Durante o terremoto do Haiti, quem evitou uma
catástrofe ainda maior foram os médicos cubanos. Em poucas semanas os médicos
dos países ricos deram no pé e deixaram centenas de milhares de pessoas sem
auxílio médico. Se não fosse Cuba e seus médicos, haveria uma tragédia
humanitária de proporções dantescas. Até o New England Journal of Medicine, a
revista mais respeitada de medicina do mundo, fez há poucos meses um artigo
sobre a medicina em Cuba. O destaque vai exatamente para a capacidade do país
em fazer medicina de qualidade com recursos baixíssimos
(http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp1215226).
- Com muito menos recursos, a medicina de Cuba dá
um banho em resultados na medicina brasileira. É no mínimo uma grande
arrogância achar que os médicos cubanos não estão preparados para praticar
medicina básica aqui no Brasil. O CFM diz que a medicina de Cuba é de má
qualidade, mas não explica por que a saúde dos cubanos, como muito menos
recursos tecnológicos e com uma suposta inferioridade qualitativa, tem índices
de saúde infinitamente melhores que a do Brasil e semelhantes à avançada
medicina americana (dados da OMS).
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Agora, ninguém tem que ir cobrar do médico cubano que ele saiba fazer cirurgia
de válvula cardíaca ou que seja mestre em dar laudos de ressonância magnética.
Eles não vêm para cá para trabalhar em medicina nuclear ou para fazer
hemodiálises nos pacientes. Medicina altamente tecnológica e ultra
especializada não diminui mortalidade infantil, não diminui mortalidade materna,
não previne verminose, não conscientiza a população em relação a cuidados de
saúde, não trata diarreia de criança, não aumenta cobertura vacinal, nem atua
na área de prevenção. É isso que parece não entrar na cabeça de médicos que são
formados para serem superespecialistas, de forma a suprir a necessidade uma
medicina privada e altamente tecnológica. Atenção! O governo que trazer médicos
para tratar diarreia e desidratação! Não é preciso grande estrutura para fazer
o mínimo. Essa população mais pobre não tem o mínimo!
Que venham os médicos cubanos, que eles façam o
Revalida, mas que eles sejam avaliados em relação àquilo que se espera deles.
Se os médicos ricos do sul maravilha não querem ir para o interior, que
continuem lutando por melhores condições de trabalho, que cobrem dos governos
em todas as esferas, não só da Federal, melhores condições de carreia, mas que
ao menos se sensibilizem com aqueles que não podem esperar anos pela mudança do
sistema, e aceitem de bom grado os colegas estrangeiros que se dispõe a vir
aqui salvar vidas.
Infelizmente até a classe médica aderiu ao ativismo
de Facebook. O cara lê a Veja ou O Globo, se revolta com o governo, vai no
Facebook, repete meia dúzia de clichês ou frases feitas e sente que já exerceu
sua cidadania. Enquanto isso, a população carente, que nem sabe o que é
Facebook morre à mingua, sem atendimento médico brasileiro ou cubano.
Comentário
O Conselho federal de Medicina (CFM)
faz um lobby notório em favor de seus pares, o que é natural, todas as
entidades de classe, sindicatos e afins defendem seus interesses, tudo
tranquilo, tudo coerente com o ambiente democrático. Me espanta um pouco é
querer confundir a população como se os interesses corporativos do CFM fossem
os interesses do povo brasileiro: não são.
O CFM é, inclusive, o responsável
pelo extenso histórico de barrar a criação de novas faculdades de medicina – a despeito
da evidente demanda por mais médicos na sociedade. Assim fica fácil manter o
médico como um objeto raro no mercado (e portanto com salário vultuoso). É pena
que para fazer isto, sacrifique a população (especialmente a mais humilde), que
fica simplesmente sem atendimento, como ocorre habitualmente. É uma reserva de
mercado construída sobre a saúde alheia. Um escândalo.
Quanto ao "revalida", já
que o CFM tanto deseja garantir o conhecimento dos médicos que aqui atuam, por
que não fazer como a OAB, uma prova para os médicos recém-formados? Daí se
conseguiria garantir que TODOS os médicos que atuarão no Brasil possuem o
devido conhecimento e, esta mesma prova seria aplicada a quem se formasse fora
do país e desejasse exercer sua profissão aqui. Seria o correto, seria o
íntegro, mas esbarraria em interesses corporativos e, portanto, a chance de se
fazer isto é reduzida.
Não é uma maior quantidade de
médicos, exclusivamente, que resolverá o problema da saúde no Brasil, é claro
que não, não há panaceia na questão. Mas com certeza uma quantidade maior de
médicos ajuda o sistema de saúde como um todo, é inegável.
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