A liturgia do cargo público não é meroexercício de vaidade e de ego. Ela é um marco do republicanismo, que determina
ser o exercício de função pública uma atividade impessoal. Quem está investido
nela não deve a enxergar como um galardão adquirido em razão de qualidades
pessoais, mas precisamente porque foi chamado a servir ao público. A liturgia
lhe serve de proteção, para qualificar a função e não a si.
Eugênio Aragão: “Quando autoridades se comportam como moleques, como moleques serão tratadas”. Foto: Gil Ferreira/Agência CNJ. |
Juízes, por exemplo, lidam diariamente com
conflitos. Ao decidirem sobre uma causa, tornam um dos litigantes vencedor e
outro perdedor. Aquilo que pode significar, para o magistrado, apenas um número
em sua estatística de produção mensal, na alma do perdedor pode ser uma
catástrofe pessoal. O que o leva a não ir às vias de fato com aquele que vê
como seu malfeitor? É a aura da liturgia que inspira o respeito necessário a
criar uma barreira de blindagem relativa.
Quando, porém, autoridades se comportam
como moleques, como moleques serão tratadas. Se adotarem discurso e
comportamento de botequim, não poderão se queixar quando começarem a voar
garrafas e sopapos.
Temos assistido quase diariamente
comportamentos fora do script litúrgico por parte de magistrados, a começar por
alguns do andar de cima. Têm sido muito cúpidos em dar entrevistas, falar fora
dos autos, opinar sobre tudo e todos. Têm adotado posturas controvertidas e,
por vezes, até mesmo político-partidárias em discursos públicos, seja nos
tribunais ou fora deles.
A desfaçatez de mudar ostensivamente de
opinião, conforme o momento político e o alvo das ações jurisdicionais, chega a
causar náusea àqueles que assistem a esse circo quase cotidiano. Esse tipo de
atitude cai bem em conversa de bar, onde a inconsequência regada a álcool tudo
permite, tudo perdoa, mas não no exercício de função pública.
Dos magistrados se espera autocontenção e
não exibicionismo. Infelizmente há, entre nós, magistrado que se fez notório e
não é um bom exemplo de autocontenção.
A despeito de gozar de exclusividade para
cuidar só de um universo de processos supostamente conexos, decretada por seu
tribunal, aparentemente em virtude de sobrecarga que esse universo representa,
esse juiz tem viajado Brasil e mundo afora para dar palestras, receber prêmio
de bom-mocismo e participar de talk-shows.
Tem tido tempo de sobra para difundir seu
moralismo obsessivo sobre os fins da persecução penal de “corruptos”, a ponto
de virar super-herói de uma parte desorientada da sociedade, cuja bronca turva
sua visão sobre o crítico momento político vivido pelo País. Para fugir das
garrafadas e dos sopapos, anda com séquito de seguranças e deles vive cercado
no trabalho e em casa. Torna-se, assim, personagem controvertido, agente de
disseminação de incertezas, ao invés de se limitar a oferecer segurança
jurídica a seus jurisdicionados.
Isso não é vida de juiz. Mas, ainda que
não faça sentido, no sadio senso comum, essa imagem distorcida que se oferece
de um magistrado, tem sido exemplo para muitos outros de sua corporação, que
também querem compartilhar desse espaço de afago público a egos jurisdicionais.
Para tanto, assinam até abaixo-assinado de
defesa do colega premiado de bom-mocismo, quando se torna alvo de críticas mais
ou menos acerbas. Alguns foram às manifestações “contra a corrupção” convocadas
para derrubar governo, manifestam-se cheio de emoção em perfis de Facebook e,
depois, deram provimento liminar para impedir posse de ministro de estado.
Renan Calheiros: “tenho ódio e nojo a métodos fascistas” – Foto: reprodução |
Num ambiente desses, a reação de veemente
indignação pública do Presidente do Senado Federal, Renan Calheiros, contra o
“jabaculê” determinado nas dependências daquela Casa Legislativa por juiz de
primeiro grau de Brasília, não deve causar surpresa.
Expressou nada mais que seu protesto
institucional contra aquilo que entendeu ser um abuso de magistrado
incompetente para tanto, pois o alvo da diligência da polícia judiciária eram
agentes da polícia legislativa que tinham procedido a varreduras
eletromagnéticas em locais de trabalho e residência de Senadores que seriam
alvos de investigação criminal.
Essas varreduras tinham sido determinadas
pela administração do Senado a pedido dos próprios Senadores alvejados. Se as
varreduras foram pedidas por estes e se entenda que elas constituem embaraço a
justiça, em tese são os Senadores objeto da escuta ambiental que deveriam ser
questionados sobre a iniciativa. Isso, evidentemente, atrairia a competência do
foro por prerrogativa de função que é o Supremo Tribunal Federal.
Tanto mais é surpreendente, isto sim, que
a Presidente do Conselho Nacional de Justiça vá à imprensa, não para admoestar
magistrados que ultrapassam a linha do bom senso em suas atitudes e decisões,
mas para se dirigir com dedo em riste ao Presidente do Senado Federal, com
discurso não menos surpreendente de se ver como destinatária de cada crítica
que se faça em tom mais ou menos contundente a magistrados que procedem de
forma, no mínimo, controvertida.
Carmem Lúcia: " quando um juiz é destratado, eu também sou". Foto: CNJ |
O Conselho Nacional de Justiça é órgão de
controle externo da magistratura e tem, também, uma atuação correcional em
relação a estes. Não deve a dirigente do órgão se confundir com aqueles que
deve disciplinar, pois assim fazendo, reforça os desvios de conduta e se porta
feito porta-voz de uma corporação e não de uma instituição.
Não é mais novidade para ninguém que
certos padrões de comportamento de elevado risco para o governo das
instituições no País têm fundo corporativo. É mostrando os dentes que as mais
poderosas categorias do serviço público se alavancam para negociar vantagens.
Não é à toa que suas associações de classe
são recebidas nos gabinetes parlamentares e em órgãos de gestão financeira do
executivo com tapete vermelho, água gelada e café, enquanto aos servidores
comuns e mortais só resta a via da greve e das manifestações públicas.
Não é à toa que essas categorias
musculosas estão no topo da cadeia alimentar do Estado brasileiro, recebendo
ganhos desproporcionalmente superiores a outros servidores que exercem suas
funções com igual ou maior denodo e risco pessoal que Suas Excelências.
Trata-se de grave distorção no sistema de remuneração do setor público
brasileiro, que em nada contribui para sua eficiência.
Ao invés de querer colocar limites aos
reclamos do Presidente do Senado Federal, a Senhora Presidente do CNJ faria
melhor em dar sua contribuição para a contenção de atitudes de risco dos
magistrados e buscar diálogo entre poderes para impor ordem ao sistema
remuneratório do serviço público federal.
O melhor caminho para isso seria a
desvinculação de todos os ganhos de servidores daqueles de atores que estão em
posição de puxar o trem e gastos com aumentos a seu favor: Presidente e
Vice-Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do Supremo
Tribunal Federal, Deputados e Senadores.
Norma constitucional deveria vedar essa
vinculação e dispor que o teto do serviço público (excluídos o dos atores
políticos mencionados) fosse estabelecido pela Lei de Diretrizes Orçamentárias
e o ganho de cada categoria devesse guardar proporção, com base nos vetores de
risco e complexidade, com as demais, de sorte que não se admita que um general
de exército ganhe brutos em torno de 14.000 reais mensais, um professor titular
de universidade receba cerca de 12.000 reais, quando um jovem membro do
ministério público seja remunerado com quase 30.000 reais no mesmo período.
Para articular essa revolução de ganhos,
que seja capaz de neutralizar condutas de risco de categorias por prestígio, é
fundamental o consenso entre os poderes da República, para constituir o
SINAGEPE – Sistema Nacional de Gestão de Pessoal, integrando os três poderes e,
aos poucos, as administrações estaduais e municipais através de matriz única de
ganhos, quiçá regionalizando-a e submetendo-a a um fundo solidário de
compensação de debilidades financeiras dos entes que compõem a Federação.
Só assim se coloca cada agente do Estado
em seu quadrado. Zela-se pelo controle universal de gastos de pessoal e se
moraliza a atuação dos diversos atores nos três poderes de modo a se
estabelecer, no Brasil, pela primeira vez, um “Berufsbeamtentum”, um funcionalismo
profissional como existe em outras economias mais fortes deste planeta.
* Eugênio
José Guilherme de Aragão: Ex-Ministro da Justiça e Professor da Faculdade de
Direito da Universidade de Brasília
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