A história do crime organizado no Brasil é também a resposta sobre os reais motivos que o transformaram num dos países mais perigosos do mundo
O senhor estava na
Ilha Grande quando foi criada a Falange Vermelha, hoje batizada
de Comando Vermelho. De lá para cá, o que mudou?
William
de Souza Lima: a bandidagem hoje é mais violenta do que na minha época porque a
sociedade é mais agressiva. O avanço do capitalismo é o maior responsável pelo
aumento das desigualdades sociais e da criminalidade. Enquanto as desigualdades
forem expressivas, a criminalidade só tende a crescer. O capitalismo massacra o
pobre, aumenta o desemprego e abandona os jovens, que ficam sem nenhuma
perspectiva de vida (Entrevista concedida por William da Silva Lima, um dos
criadores do Comando Vermelho, que se encontra no livro Marcinho VP: Verdades e Posições, ao
jornalista Renato Homem).
No dia 03 de abril de 1981, um assaltante de bancos,
que havia fugido do presídio da Ilha Grande (Candido Mendes), foi cercado pela
polícia no bairro da Ilha do
Governador (Rio de Janeiro).
Acuado, ele não parecia disposto a se entregar. Logo chegariam mais reforços e,
durante quinze horas, iria se desenrolar um intenso tiroteio. O cenário dessa
batalha foi o Conjunto dos Bancários. O nome do foragido era José Jorge Saldanha, conhecido no
submundo do crime como Zé Bigode.
Até este momento, nada de especial. Confrontos desse
tipo eram (e são) comuns nas grandes cidades brasileiras. Mas esse caso, em
especial, chamou a atenção das autoridades, da imprensa e dos cariocas. Zé
Bigode ostentava um poder bélico incomum e estava disposto a morrer lutando. O
marginal demonstrava um ódio muito grande em relação às autoridades e um
estranho orgulho da sua posição. Apenas na manhã seguinte, após intenso
tiroteio (que mobilizou 400 homens das forças de segurança), dois mil tiros
disparados, três policiais mortos e outro ferido, que Zé Bigode seria
finalmente morto. Esse fato ficaria imortalizado quando seu companheiro de
crime, William de Souza Lima (o
Professor), colocou o título do seu livro de memórias de 400 contra 1, que depois também viraria
um filme de mesmo nome, em referência à batalha do Conjunto dos Bancários.
Segundo o jornalista Carlos Amorim, em Comando
Vermelho: a história secreta do crime organizado, durante o tiroteio, um
polícia teria dito: “não adianta ficar bancando ‘o fera’, eu sei que seu nome é
Eli”. A resposta de Zé Bigode foi imediata: “Eli é o cacete, eu sou o
Saldanha”.
A passagem é interessante. Por qual motivo um
bandido, ao ser confundido com outro, faria questão de que os policiais
soubessem o seu nome verdadeiro? Só há uma explicação: ele havia percebido que
a fuga era impossível e se entregar não era uma opção. A morte era certa. O que
estava em disputa era como e quando ela chegaria.
Zé Bigode não estava sendo movido pelo desejo de
preservar a sua vida, a preocupação era outra. O que estava em jogo naquele
momento era como o bandido seria lembrado e qual legado ele deixaria para a
“causa” da qual fazia parte. Do que exatamente estamos falando? Causa? Legado?
Memória? Não era um simples bandido querendo enriquecer sem trabalhar? Na
verdade, não. Muita coisa havia mudado no mundo do crime nos últimos anos. A
sociedade e as autoridades iriam descobrir naquele ano que o problema era muito
mais grave.
As investigações mostraram que a “quadrilha” da qual
Zé Bigode pertencia possuía ramificações nos morros do Adeus e da Mangueira. Na
verdade, o campo de atuação dessa organização era muito maior. Os
investigadores haviam localizado apenas a ponta do iceberg. Antes de morrer, o agora bandido mais conhecido do país,
deixou uma pista das suas motivações. Ele teria dito: “eu sou o Zé Bigode do
Comando Vermelho”. Foi dessa forma trágica que o país ficou sabendo da
existência de uma nova organização criminosa que, até então, era de
conhecimento apenas dos agentes carcerários.
A forma como o capitão Nelson Salmon, diretor do presídio
Cândido Mendes, percebeu tais mudanças também foi inusitada e quase lhe
custou a vida. Em agosto de 1979, ele caminhava lentamente pelas galerias da
penitenciária, numa inspeção de rotina, quando foi alertado por um interno:
“nesta madrugada haverá uma tentativa de fuga”. Salmon prontamente tomou as
providências necessárias: colocou homens escondidos na mata para surpreender os
amotinados. Sete apenados haviam planejado a evasão da ilha. Quando perceberam
que haviam sido descobertos, recuaram e desistiram da empreitada.
O problema parecia resolvido. Mas havia uma questão.
Eles estavam numa ilha, seria necessário, portanto, alguma ajuda externa para
que eles pudessem chegar até o continente. Salmon então reuniu alguns dos seus
subordinados e foi até uma enseada próxima, na esperança de encontrar os
elementos que estavam auxiliando aqueles detentos. Certamente algum pescador,
pensava.
Segundo relato do próprio Salmon, dado ao jornalista
Carlos Amorim, os policiais estavam calmos e tranquilos. Caminhavam pelas trilhas
de forma descontraída, falando alto e com as lanternas acesas. Não havia
perigo. Afinal, os fugitivos já estavam de volta às celas. Engano que quase
custou a vida de todos os presentes. Ao se aproximarem da praia, os agentes
carcerários avistaram um ponto luminoso piscando no meio do oceano.
Experientes, logo perceberam que era um código que deveria ser respondido para
que os homens a bordo soubessem quem estava no local combinado. Salmon, sem
saber ao certo qual seria a senha, piscou três vezes a lanterna, numa tentativa
de enganá-los.
Após a resposta do capitão, os motores da embarcação
foram ligados e o barco se aproximou lentamente da costa. Quando todos achavam
que haviam conseguido ludibriar os tripulantes, o barulho do barco cessou, as
luzes se apagaram. Escuridão total. Após alguns segundos, os sons das
metralhadoras e dos fuzis romperam o silêncio. Os agentes, e alvejados e em
desespero, jogaram-se ao chão enquanto eram submetidos a intensa fuzilaria.
Acuados, nada poderia ser feito. O barco sumiria aos poucos na escuridão,
enquanto Salmon e seus agentes buscavam abrigo. Naquela noite, o comandante
percebeu que não estava mais lidando com simples bandidos que, desesperados,
enfrentavam de modo solitário o mar da Ilha Grande em tentativas suicidas de escapar do Caldeirão do Diabo (como o presido
era conhecido).
No dia seguinte, Salmon comunicou o ocorrido às
autoridades. Seu relatório, porém, foi ignorado. O Brasil passava pela abertura
política, não era conveniente investigar tais “atos terroristas” num momento em
que os próprios militares estavam enviando cartas bombas, explodindo bancas de
jornal e sabotando as comemorações do dia do trabalhador. Um grave erro. Quando
as autoridades perceberam o problema, ele era praticamente irreversível. O ovo
da serpente havia sido chocado.
Hoje o Comando
Vermelho é uma realidade conhecida por todos os brasileiros. A facção
criminosa atua praticamente em todo o território nacional e em alguns países
estrangeiros. Desde a morte de Zé Bigode, CV não parou de crescer e seu poder
em 2018 é imensamente maior do demonstrado no início dos anos 1980. O CV foi,
por muito tempo, a maior organização criminosa do Brasil, dominando, no auge,
as rotas de tráfico em território nacional e controlando 90% das favelas
cariocas.
Recentemente, o PCC, organização criminosa de São Paulo, superou os cariocas em
tamanho. Tal fato, porém, não deve ser entendido como um enfraquecimento do
Comando Vermelho, mas é resultado do crescimento rápido e impressionante da
facção paulista, possibilitado pelo fato de eles estarem localizados no estado
mais rico do país.
Outras facções também estão sendo criadas, em
diferentes estados, apavorando a população e desafiando o poder público. O CV,
com efeito, foi o modelo que inspirou todos esses grupos. Entender, portanto,
como a facção carioca se formou é perceber a gênese do narcotráfico e do crime
organizado brasileiro. Este é o objetivo desse texto: fazer uma análise
histórico/política da emergência dessas facções; sem cair no sensacionalismo,
na demonização ou na apologia. Trabalho arriscado e difícil. Porém necessário.
De início, gostaria de apresentar o problema central
a ser investigado: se o modelo do CV foi replicado por todo o território
nacional, é porque deve haver algum ponto de contato, alguma identificação,
entre os criminosos nos diferentes estados brasileiros. Explico: se um bandido,
digamos, de Manaus percebeu que aquilo que estava sendo feito a milhares de
quilômetros poderia ser vertido para a realidade do norte do país, certamente há
alguma semelhança entre essas realidades distintas. Tanto o PCC quanto o CV nunca irão entrar, por exemplo,
na Holanda. O motivo é que
essas organizações não têm nada a dizer a um preso holandês, não há correlação
entre esses mundos.
Se o crime se organiza de forma semelhante em vários
pontos, num país continental como o Brasil, é porque essas quadrilhas estão
respondendo aos mesmos estímulos. Possuem as mesmas necessidades. Entender essa
questão é fundamental para compreendermos como chegamos à atual situação de
descontrole dentro e fora dos presídios. Essa é a minha motivação ao escrever o
presente texto.
O Comando Vermelho não se originou da união entre presos
políticos e presos comuns
Antes de abordamos o assunto principal, é preciso
“limpar o terreno”. Desfazer alguns mitos. A memória replicada pelo senso
comum, sobre a criação do CV, é a de que a facção foi o resultado da união
entre os presos políticos e os assaltantes comuns. Essa história é bem
interessante e instigante. Porém, ela nada mais é que um mito de criação e,
como tal, está permeada de verdades parciais e de lendas. A narrativa confunde
mais do que explica e acaba por encobrir o verdadeiro motivo que levou à
formação da facção. Se quisermos, de fato, entender como surgiu o crime
organizado no Brasil, precisamos olhar em outra direção.
Na década de 1970, os presos comuns estavam separados
dos presos políticos e havia, inclusive, certa rivalidade entre esses grupos. O
CV foi formado, estruturado e pensado por homens pobres e que não haviam recebido
educação formal. O mito da união entre presos de origens diferentes como marco
de fundação da facção foi criado pela mídia, numa manchete que dizia: “A
organização Falange Vermelha nasceu da convivência entre assaltantes e presos
políticos, que os ensinaram como comandar e funcionar de maneira mais
organizada” (Silva Lima, 2016, p. 146).
O CV foi organizado de forma hierarquizada e em nada
se assemelhava a uma guerrilha de esquerda. Um dos primeiros e mais famosos
líderes da facção, Rogério
Lengruber (o RL do CVRL), era conhecido como “Marechal”. Ora, marechal
não é um apelido que os movimentos de esquerda, que lutavam contra uma ditadura
militar, iriam simpatizar.
Havia sim, no início, um discurso social por parte de
alguns integrantes. Mas ela veio de outros presos, como Wiliam da Silva Lima, que já vinham
tendo contato com a literatura de esquerda há décadas. Portanto, houve certa
influência da esquerda na fundamentação, no vocabulário empregado, mas a
criação da facção foi obra exclusiva dos presos comuns.
Eram mundos diferentes, realidades distintas. O CV
foi a reposta dos grupos historicamente marginalizados, não daqueles que haviam
sido marginalizados pelo contexto político. Para os “marginais históricos”
nunca houve anistia, não há redenção. É matar ou morrer, ou melhor, é
matar e morrer. Todos
terminaram executados. Se nós quisermos entender o ponto de contato entre as
diferentes facções brasileiras, esse não é o caminho. É preciso olhar para
outros aspectos. Quais? Sigamos em frente.
A Origem do Comando Vermelho
A filosofia política moderna explica o surgimento do
Estado como um processo em que os indivíduos, percebendo a sua fragilidade,
“abriram mão” de parte da sua liberdade em troca de segurança. Assim teria
nascido o Estado. Se esses filósofos estão certos ou errados, eu não sei, mas,
sem querer, eles nos ajudaram a entender a gênese das organizações criminosas.
O presídio de Ilha Grande era um lugar de castigo, em que os bandidos mais
perigosos do Rio de Janeiro eram enviados para sofrer, ou, como avisavam os
carcereiros aos recém-chegados após a surra de “boas vindas”, para morrer.
Superlotado, os presos eram jogados à própria sorte. O preso estava sujeito a
todo tipo de atrocidades. Vou colocar abaixo uma passagem do livro A História Secreta do Crime para o
leitor ter uma ideia do que eu estou falando:
Gente
ligada à Falange Jacaré faz
a seleção dos novatos. Quem chega à Ilha Grande condenado é “examinado” pelos
detentos que prestam serviços à administração. O que interessa é saber se o
cara serve para “soldado”se vai “virar moça” ou se não serve para nada. Entrar
para a falange, só com uma folha penal que “ateste a qualidade” do bandido:
crime de morte, assalto violento, tráfico e principalmente um nome na praça. Os
crimes passionais, os estupros de meninas (quando acontecem fora de um assalto
ou sequestro) e outros delitos avulsos não passam no “vestibular”. Não são
considerados “crimes de homem” e só merecem desprezo por parte dos
“falangistas”, que são sempre gente de quadrilhas.
O
processo de fazer um novato “virar moça” é simples. O sujeito é “selecionado”
quando chega, especialmente se é daqueles que entram no presídio assustados,
acuados pelos guardas, temendo os companheiros de cadeia. Esse é forte
candidato. Particularmente se é jovem e saudável, se o corpo não apresenta
sinais de deformações ou cicatrizes muito feias. O que vai acontecer com ele
também é bem simples: o homem encarregado da primeira seleção avisa que chegou
alguém que reúne as condições necessárias e a quadrilha faz o resto. O preso
vai ser currado por cinco ou seis presidiários numa só noite. Vai ficar
amarrado, amordaçado e permanentemente sob ameaça de estoques, que são facas
artesanais.
No
dia seguinte, a “moça” terá vergonha de contar o que aconteceu. Vai segurar a barra
e não sabe que o mesmo processo se repete durante a noite seguinte e na próxima
e na outra também. Pode durar uma semana. Depois de um certo tempo, o novato
está tão desmoralizado que não tem outra saída a não ser a prostituição
controlada pela quadrilha. Ele vira mercadoria de preço alto. Pode até “casar”
com alguém na cadeia. Passa a morar na cela do “marido”, cuida da limpeza, faz
comida e carinhos como qualquer “mulherzinha”.
Os estupros também eram cometidos para demarcar as
relações de poder e submissão dentro do cárcere:
O
jornalista Percival de Souza relata um caso assim no livro O Prisioneiro da Grade de Ferro.
Aconteceu na Casa de Detenção de São Paulo. A descrição está num capítulo de
título curioso, quase engraçado: “Elementos Enrabados.”
A
história é a seguinte: dois assaltantes chegam ao presídio querendo ganhar
autoridade e dominam o xerife da cela onde foram alojados — o xerife
apanha na cara, se desmoraliza. Os demais presos, com medo de morrer, aceitam
as ordens da nova liderança. “Todo mundo nu” gritam os novos xerifes. E os
presos obedecem. Depois, outra ordem: “Agora todo mundo de quatro, com a
bundinha pra cima”. E os presos obedecem. Armados com facas, os xerifes vão
simplesmente comendo todo mundo. No dia seguinte, dois dos violentados matam os
estupradores: um foi estrangulado, o outro teve o crânio partido e o cérebro
perfurado por uma escova de dentes introduzida pelo ouvido.
Era a esse ambiente de extrema dificuldade,
humilhação e violência que os presos eram submetidos. Como sobreviver? Essa era
a pergunta que todos faziam. O único jeito era se organizar, unir forças e
adotar um código moral que controlasse a violência. Como nos ensinaram os
filósofos, as organizações coletivas são o resultado do medo e da insegurança.
Mas havia um problema. Na Idade Moderna a legitimidade do poder vinha da
tradição e cabia ao rei. E no presídio? Bem, nesse caso, viria da guerra.
Diante das dificuldades, os presos se uniram e
formaram as chamadas falanges. Havia várias no Caldeirão do Diabo. Inicialmente, elas eram a união de presos de um
mesmo bairro e cada uma dominava uma das galerias. A mais forte delas era
a Falange do Jacaré, união dos
presos da Zona Norte. Havia também a Falanges da Zona Sul e da Coreia e os
chamados “neutros”. Esses grupos roubavam, estupravam e matavam outros
detentos. Agiam também, em troca de vantagens, a mando dos agentes
penitenciários que os usavam como uma espécie de “polícia” interna para manter
a ordem e o medo no interior do presídio.
Os internos que deram origem ao CV estavam apartados
do convívio com a massa carcerária, num local conhecido como “fundão”. Eram
aqueles que haviam sido enquadrados na Lei de Segurança Nacional e, por isso,
recebiam penas ainda mais duras. Esses detentos eram, em sua maioria, assaltantes
de bancos. O assalto a banco era uma prática comum entre a guerrilha de
esquerda, e muito lucrativa. Por tal motivo, esse tipo de crime era enquadrado
dentro da legislação de exceção e, pelo princípio da simetria entre as penas,
guerrilheiros de esquerda e bandidos comuns eram jogados nesse mesmo espaço. É
interessante notar que a simetria era apenas em relação à punição, e os
benefícios concedidos aos presos políticos não chegavam aos demais. Tal
contradição gerou uma revolta e um sentimento de injustiça muito grande entre
os presos. E foram esses homens que formaram a “Falange da LSN”, que depois
seria conhecida como Falange Vermelha e, por fim, como Comando Vermelho.
Em 1978, a Anistia estava sendo discutida. Os
militares, então, resolveram acabar com a divisão entre os presos e a Falange
da LSN passou a ter contato com a massa carcerária. A forma como esses presos
estavam organizados, porém, era muito diferente das demais falanges. A Falange
da LSN queria impor um novo código de conduta dentro do presídio, que acabaria
com os roubos, com os estupros e com a violência entre os presos. O inimigo era
o Estado, não outros internos. Qualquer desavença entre presos deveria ser
resolvida na rua.
Dentro do presídio, violência apenas para fugir.
Havia também laços de solidariedade entre os presos. Sozinhos, todos estariam
fragilizados, unidos, eles poderiam resistir e conquistar a tão sonhada
liberdade. Como afirmou William da
Silva Lima, o Comando Vermelho foi, inicialmente, uma estratégia para
sobreviver na adversidade extrema. É desse pensamento que surgiu o lema da
facção, que até hoje aparece pichado nas paredes dos presídios: “paz”,
“justiça” e “liberdade”. Paz dentro da cadeia, justiça para os internos e a
liberdade que viria por meio da fuga.
Os presos que conseguiam escapar também tinham
compromisso com aqueles que ficavam. Seria criada uma “caixinha” para financiar
a fuga de outros detentos. Por isso, as fugas estavam cada vez mais
sofisticadas e complexas. Na mais famosa delas, que libertou José Carlos Reis Encina (Escadinha), um helicóptero chegou a ser usado para que o traficante
pudesse escapar. Isso era, inicialmente, o Comando Vermelho. Um “clube” de
bandidos que tinha o objetivo libertar os membros dos presídios. Mas, aos
poucos, a facção iria se tornando mais sofisticada.
Restava, porém, um problema: Esse código de conduta
havia sido estabelecido entre os presos do “fundão” e as outras falanges não
haviam participado e nem haviam concordado com as regras que estavam sendo
impostas. Se elas desafiassem o novo “regimento” e continuassem matando,
estuprando e roubando, o que aconteceria? Nesse caso, ou a falange da LSN
mostraria força para enquadrar os detentos ou ela seria desmoralizada.
Foi o que aconteceu. No dia 17 de setembro de 1979
estouraria a guerra dentro do Caldeirão do Diabo, que contaria o maior número
de mortes de presos já registrado (sendo superada apenas pela Chacina do
Carandiru na década 1990). Nessa batalha, a Falange da LSN seria a grande
vitoriosa e passaria a controlar a penitenciária Cândido Mendes. O sucesso
desse novo coletivo iria se espalhar por todo o sistema penitenciário carioca e
logo ganharia as ruas. Os sobreviventes do massacre, por outro lado, iriam se
organizar novamente e formar outra facção criminosa: o Terceiro Comando, maior rival do
Comando Vermelho.
O Comando Vermelho ganha as ruas
Após o massacre, os policiais passaram a chamar a
Falange da LSN de Falange Vermelha e
a mística em torno do ocorrido rapidamente se espalharia pelo submundo do
crime. A Falange Vermelha havia se tornado o coletivo de presos mais temido e
admirado do Rio de Janeiro. A imagem construída em torno daqueles homens,
porém, era maior do que o seu poder real. E, nesse aspecto, a imprensa
colaborou, e muito, com a consolidação da organização.
Segundo William da Silva Lima, foram os jornais que
rebatizaram o nome do coletivo para “Comando Vermelho”. Os motivos da mudança
eram políticos. A cor vermelha era uma tentativa de vincular os atos criminosos
praticados com a esquerda. Por isso também os jornais passaram a destacar a
“origem” da facção como a união entre os presos políticos e comuns. A palavra
“comando” foi inserida depois para apresentar o “Comando Vermelho”, na época um
pequeno grupo de assaltantes, como um perigo a ser eliminado. O “comando” entra
como parte dessa estratégia. A palavra transmite a imagem de um controle
central, o núcleo de onde se espalham as atividades criminosas. A facção
nasceu, portanto, de uma miragem. Assaltantes eram presos e automaticamente
eram rotulados como membros dessa novidade chamada de “Comando Vermelho”, que
começava a apavorar os corações e mentes dos brasileiros.
É preciso destacar o contexto histórico. O Brasil
iniciava a abertura política. Éramos uma sociedade acostumada a sentir pavor. A
reconhecer inimigos. A ditadura civil-militar, para se consolidar, precisou
criar e estimular o medo. Havia um perigo, uma ameaça que precisava ser
contida. Pessoas amedrontadas são mais fáceis de controlar. O agente do mal era
a esquerda, os comunistas.
Durante o governo de João Goulart, a propaganda apontava o presidente como foco da
subversão. Era preciso, portanto, derrubá-lo. Feito. Depois do golpe, o
discurso mudou. O perigo não estava mais no poder, mas na sociedade. Era
necessário, então, um governo forte, duro, que extirpasse tais elementos
perversos. Assim foi feito. Os militares começaram prendendo nomes importantes
ligados à esquerda. Depois veio a luta armada, que, de certa forma, fortaleceu
o discurso da repressão. Os guerrilheiros foram eliminados. No início dos anos
1970 praticamente não existiam grupos armados no Brasil. O que fazer? Como
legitimar um regime imposto pela força sem inimigos? Sem uma sociedade
atormentada? A solução era inventar novas ameaças. É nesse momento, por
exemplo, que os próprios militares começam a praticar atentados terroristas
contra a sociedade civil, a ideia era manter acesa a chama do temor que
permitia a perpetuação no poder. A mística em torno do nome “Comando Vermelho”
nasceu como uma ficção inventada para substituir os comunistas nos pesadelos da
classe média.
O Narcotráfico
Talvez
o Saldanha o faça com mais paixão; Nanai, com mais fé. Com mais humor, o
Mimoso; Nelson, com mais talento; Aché e Caó, com mais graça. Alckmin o faria
com mais coração. Mas todos morreram. Quis o destino que me coubesse essa
parte. (William da Silva Lima, 400
contra 1).
É desse modo que o “Professor” começa o seu livro de
memórias sobre a formação do Comando Vermelho. A primeira geração da facção, da
qual William fazia parte, logo seria dizimada pela polícia. Foi a segunda
“geração”, da qual faziam parte nomes até hoje muito conhecidos, como Rogério Lengruber (Bagulhão ou Marechal), José Carlos do Rei Encina (Escadinha) e Francisco Viriato Ferreira (Japonês), que consolidou o Comando Vermelho dentro das favelas e
fez a transição para o narcotráfico.
Essa mudança foi realizada de fora para dentro. É na
década de 1980 que o tráfico de drogas se torna global e o consumo de cocaína
explode no mundo inteiro. O Rio de
Janeiro era um ponto geograficamente privilegiado nessa nova cadeia de
comércio mundial. Era na “cidade maravilhosa” que a cocaína produzida na Colômbia entrava no Brasil e embarcava para Europa. As favelas cariocas, locais em
que o Estado não atuava, passaram a ser os principais centros de comércio
varejistas da cocaína. Diante desse quadro, o Comando Vermelho logo passaria a
controlar essas rotas e a venda das substâncias ilícitas. Eles estavam “com a
faca e o queijo na mão”. Controlavam os presídios, estavam organizados dentro
das favelas e possuíam dinheiro.
Os traficantes mais conhecidos e poderosos do CV,
como Escadinha, apadrinhavam alguns jovens das comunidades que eles queriam
dominar. A história do traficante Paulo
Roberto de Moura (Meio-Quilo)
é ilustrativa desse processo. Meio-Quilo era um assaltante e pequeno traficante
do Jacarezinho, na época a favela ainda não era dominada por nenhuma facção e
só havia pequenos comerciantes de drogas. Meio-Quilo acabou sendo preso e, na
cadeia, conheceu alguns chefes do CV. Após ser solto, ele recebeu armamento e
homens do Comando Vermelho para expulsar os outros traficantes do morro, assim,
o morro do Jacarezinho passou a ser controlado por Meio-Quilo e também pelo
Comando Vermelho. Essa estratégia foi adotada em várias comunidades e, no
início dos anos 1990, o CV atuava em 90% das bocas de fumo do Rio de Janeiro.
Nesse ponto, uma questão precisa ser esclarecida para
desfazer outros mitos. O primeiro é que seria a volta da “democracia” a
responsável pelo crescimento do crime organizado no Brasil. Isso é mentira. É
no início da década de 1980 que as taxas de criminalidade explodem no Brasil;
portanto, em plena Ditadura
Civil-Militar. O que motivou esse crescimento, que ocorreu em vários países
do mundo, foi a emergência do narcotráfico, do tráfico internacional de drogas,
como forma de suprir a demanda crescente por cocaína.
Na década de 1980, os índices de homicídio dispararam
na cidade do Rio Janeiro e, com eles, a sensação de insegurança. Esse
crescimento vertiginoso gerou efeitos no campo simbólico. Num país
historicamente conservador, que acabava de sair de uma ditadura, a memória
popular passou a culpar a suposta leniência das autoridades, que estariam
deixando a criminalidade agir impunemente. Essa interpretação não se sustenta.
Primeiro porque a estrutura das políticas militares pouco foi alterada em
relação ao modelo da ditadura. Segundo, porque, como vimos, o motivo do
aparecimento do Comando Vermelho foi justamente oposto, ou seja, o tratamento
brutal reservado aos presos.
Muitos cariocas apontam o ex-governador Leonel Brizola como o culpado pelo
crescimento do Comando Vermelho, por ter adotado uma política de respeito aos
direitos humanos dentro das favelas. Essa é outra falácia. Primeiro, como dito,
o narcotráfico não apareceu apenas no Rio de Janeiro, mas em quase todas as
cidades do mundo. O segundo motivo é um fato que poucas pessoas conhecem: o CV,
como mostrou o jornalista Carlos Amorim, apoiou Moreira Franco nas eleições em que o político venceu o
candidato da situação, Darcy
Ribeiro. Quando Brizola foi eleito pela segunda vez governador do estado, o
CV orientou os moradores das áreas sob seu controle a votarem no PDT; o motivo, porém, não foi a
leniência do pedetista com o tráfico, mas o fato de Moreira Franco ter
construído o presídio de segurança máxima de Bangu 01, isolando as principais lideranças da facção.
Conclusão
Voltando à pergunta inicial: o que teria motivado o
surgimento do Comando Vermelho e quais os pontos de contato entre a realidade
da facção carioca e as dos outros estados brasileiros?
Duas frases, de dois dos fundadores do CV, ajudam a explicar a tese central desse texto. A primeira, já citada, é a de William da Silva Lima, que afirmou que a facção era, em seus primórdios, uma tática de sobrevivência em condições extremas. A outra, dita por outro ex-membro da facção, José Carlos Gregório (o Gordo), que afirmou que o CV cresceu nos espaços deixados pelo Estado. Essa é, com efeito, a fórmula explosiva que permitiu que o crime organizado se alastrasse por todo o país.
Duas frases, de dois dos fundadores do CV, ajudam a explicar a tese central desse texto. A primeira, já citada, é a de William da Silva Lima, que afirmou que a facção era, em seus primórdios, uma tática de sobrevivência em condições extremas. A outra, dita por outro ex-membro da facção, José Carlos Gregório (o Gordo), que afirmou que o CV cresceu nos espaços deixados pelo Estado. Essa é, com efeito, a fórmula explosiva que permitiu que o crime organizado se alastrasse por todo o país.
A atuação do Comando Vermelho nas favelas ainda foi
pouco explicada. No livro Bandidos,
o historiador Eric Hobsbawm comenta
sobre a relação ambígua entre as populações marginalizadas e esses marginais
sociais:
Em
primeiro lugar, um bando representa algo com o qual o sistema local precisa
estabelecer um modus vivendi.
Onde não existe nenhum mecanismo regular e eficiente para a manutenção da ordem
pública — e isso ocorre quase por definição nas áreas onde floresce o
banditismo — não há muita utilidade em se invocar a proteção das
autoridades, tanto mais que tais apelos provocarão o envio de uma força
expedicionária armada, que arrasará a economia da aldeia ainda mais que os
bandidos.
Os traficantes são pobres que desafiam o poder
constituído, que marginaliza essas pessoas. Por tal motivo, eles são ao mesmo
tempo admirados e temidos pelas pessoas. O crime organizado se estabelece em
áreas de extrema carência, em que o Estado não alcança, e passa a se legitimar
como o único poder capaz de ordenar aquela realidade. Não existe vácuo de
poder. Sem a presença do Estado, outra forma de organização coletiva se impõe e
busca formas de legitimação.
O poder desses bandidos fascina sobretudo o jovem que
vê nas armas um símbolo de poder, de afirmação e um atalho para sair daquela
condição. Quando Meio-Quilo foi morto, o helicóptero enviado pelo Comando
Vermelho para libertá-lo da penitenciária Milton Moreira Dias foi abatido, três
mil moradores da favela do Jacarezinho compareceram ao enterro da traficante. A
dor era genuína e difícil de ser compreendida por aqueles que não vivem a
realidade dos morros. Por isso, vou deixar outro traficante e ex-morador de
favela explicar essa adoração ao criminoso. Com a palavra, Marcio Santo
Nepomuceno (Marcinho VP), um dos atuais chefes do CV, que se encontra
encarcerado há 21 anos, boa parte desse tempo em presídios federais:
Durante
o reinado de Meio-Quilo na favela do Jacarezinho, a comunidade funcionava como
uma espécie de QG do Comando Vermelho. Todo preso que fugia se refugiava na
comunidade, sob a proteção do traficante, que também ficou conhecido por
promover uma série de melhorias na comunidade e de priorizar o bem-estar dos
moradores. Quando estava preso, Meio-Quilo pontuava suas relações, sempre
buscando o entendimento, o cumprimento da ética do crime e a busca pela sua
liberdade, bem como de seus companheiros. (Marcinho
VP: Verdades e Posições).
William da Silva Lima também aponta o caminho para a
solução do problema:
Quantas
centenas de prisões terão que ser construídas até os poderosos compreenderem
que precisam construir escolas, precisam dividir benefícios. As vitórias
políticas que não atentem para as necessidades do povo se apoiam em alicerces
muito frágeis. O povo precisa de casa, comida, saúde, educação, ninguém faz
opção por viver à margem social, ao contrário, a sociedade por meio da exclusão
nos obriga a organizar nossas vidas baseados em valores diferentes. Nos mostra
o belo e nos oferece o feio, nos mostra a alta tecnologia e nos oferece a fome,
nos mostra vitórias e nos oferece a pedra fria dos cemitérios. (…)
Há
dez anos falo sobre os nossos jovens. De como a falta de atenção a eles traria
uma insegurança maior do que a que víamos na década de oitenta, mas são filhos
da pobreza, na sua maioria negros e com pouco ou nenhum estudo. Joguem-nos às
feras antes que eles contaminem nossos filhos, diz a sociedade. A resposta foi
dura, as prisões estão cheias do futuro da nação e por ironia os filhos dela,
da sociedade dita digna, também estão aqui. (William da Silva Lima, 400 contra 1).
A marginalização social empurra indivíduos para a
marginalidade legal. Não podemos esperar que esses sujeitos ajam conforme os
padrões morais usuais. O “direito penal do inimigo” opera dentro da
racionalidade bélica. Inimigos da sociedade acabam vendo, igualmente, o Estado
como inimigo. A dor gera revolta; a revolta, ódio; o ódio, violência. A
violência é o terreno em que o crime se reproduz. É uma lógica bélica, em que
se mata e morre. Se o Comando Vermelho cresceu preenchendo os buracos deixados
pelo Estado, a facção nunca será derrotada enquanto o próprio Estado não ocupar
esses espaços.
Precisamos ressignificar o lema paz, justiça e
liberdade, invertendo essa ordem. No momento em que a liberdade for um direito,
a justiça uma garantia, a paz social poderá ser alcançada. Enquanto isso não
acontecer, continuaremos matando e morrendo.
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