domingo, 11 de fevereiro de 2018

As origens do comando vermelho explicam por que o brasil é tão violento – por Eduardo Migowski (Voyager)

A história do crime organizado no Brasil é também a resposta sobre os reais motivos que o transformaram num dos países mais perigosos do mundo


O senhor estava na Ilha Grande quando foi criada a Falange Vermelha, hoje batizada de Comando Vermelho. De lá para cá, o que mudou?
William de Souza Lima: a bandidagem hoje é mais violenta do que na minha época porque a sociedade é mais agressiva. O avanço do capitalismo é o maior responsável pelo aumento das desigualdades sociais e da criminalidade. Enquanto as desigualdades forem expressivas, a criminalidade só tende a crescer. O capitalismo massacra o pobre, aumenta o desemprego e abandona os jovens, que ficam sem nenhuma perspectiva de vida (Entrevista concedida por William da Silva Lima, um dos criadores do Comando Vermelho, que se encontra no livro Marcinho VP: Verdades e Posições, ao jornalista Renato Homem).
No dia 03 de abril de 1981, um assaltante de bancos, que havia fugido do presídio da Ilha Grande (Candido Mendes), foi cercado pela polícia no bairro da Ilha do Governador (Rio de Janeiro). Acuado, ele não parecia disposto a se entregar. Logo chegariam mais reforços e, durante quinze horas, iria se desenrolar um intenso tiroteio. O cenário dessa batalha foi o Conjunto dos Bancários. O nome do foragido era José Jorge Saldanha, conhecido no submundo do crime como Zé Bigode.
Até este momento, nada de especial. Confrontos desse tipo eram (e são) comuns nas grandes cidades brasileiras. Mas esse caso, em especial, chamou a atenção das autoridades, da imprensa e dos cariocas. Zé Bigode ostentava um poder bélico incomum e estava disposto a morrer lutando. O marginal demonstrava um ódio muito grande em relação às autoridades e um estranho orgulho da sua posição. Apenas na manhã seguinte, após intenso tiroteio (que mobilizou 400 homens das forças de segurança), dois mil tiros disparados, três policiais mortos e outro ferido, que Zé Bigode seria finalmente morto. Esse fato ficaria imortalizado quando seu companheiro de crime, William de Souza Lima (o Professor), colocou o título do seu livro de memórias de 400 contra 1, que depois também viraria um filme de mesmo nome, em referência à batalha do Conjunto dos Bancários.
Segundo o jornalista Carlos Amorim, em Comando Vermelho: a história secreta do crime organizado, durante o tiroteio, um polícia teria dito: “não adianta ficar bancando ‘o fera’, eu sei que seu nome é Eli”. A resposta de Zé Bigode foi imediata: “Eli é o cacete, eu sou o Saldanha”.
A passagem é interessante. Por qual motivo um bandido, ao ser confundido com outro, faria questão de que os policiais soubessem o seu nome verdadeiro? Só há uma explicação: ele havia percebido que a fuga era impossível e se entregar não era uma opção. A morte era certa. O que estava em disputa era como e quando ela chegaria.
Zé Bigode não estava sendo movido pelo desejo de preservar a sua vida, a preocupação era outra. O que estava em jogo naquele momento era como o bandido seria lembrado e qual legado ele deixaria para a “causa” da qual fazia parte. Do que exatamente estamos falando? Causa? Legado? Memória? Não era um simples bandido querendo enriquecer sem trabalhar? Na verdade, não. Muita coisa havia mudado no mundo do crime nos últimos anos. A sociedade e as autoridades iriam descobrir naquele ano que o problema era muito mais grave.
As investigações mostraram que a “quadrilha” da qual Zé Bigode pertencia possuía ramificações nos morros do Adeus e da Mangueira. Na verdade, o campo de atuação dessa organização era muito maior. Os investigadores haviam localizado apenas a ponta do iceberg. Antes de morrer, o agora bandido mais conhecido do país, deixou uma pista das suas motivações. Ele teria dito: “eu sou o Zé Bigode do Comando Vermelho”. Foi dessa forma trágica que o país ficou sabendo da existência de uma nova organização criminosa que, até então, era de conhecimento apenas dos agentes carcerários.
A forma como o capitão Nelson Salmon, diretor do presídio Cândido Mendes, percebeu tais mudanças também foi inusitada e quase lhe custou a vida. Em agosto de 1979, ele caminhava lentamente pelas galerias da penitenciária, numa inspeção de rotina, quando foi alertado por um interno: “nesta madrugada haverá uma tentativa de fuga”. Salmon prontamente tomou as providências necessárias: colocou homens escondidos na mata para surpreender os amotinados. Sete apenados haviam planejado a evasão da ilha. Quando perceberam que haviam sido descobertos, recuaram e desistiram da empreitada.
O problema parecia resolvido. Mas havia uma questão. Eles estavam numa ilha, seria necessário, portanto, alguma ajuda externa para que eles pudessem chegar até o continente. Salmon então reuniu alguns dos seus subordinados e foi até uma enseada próxima, na esperança de encontrar os elementos que estavam auxiliando aqueles detentos. Certamente algum pescador, pensava.
Segundo relato do próprio Salmon, dado ao jornalista Carlos Amorim, os policiais estavam calmos e tranquilos. Caminhavam pelas trilhas de forma descontraída, falando alto e com as lanternas acesas. Não havia perigo. Afinal, os fugitivos já estavam de volta às celas. Engano que quase custou a vida de todos os presentes. Ao se aproximarem da praia, os agentes carcerários avistaram um ponto luminoso piscando no meio do oceano. Experientes, logo perceberam que era um código que deveria ser respondido para que os homens a bordo soubessem quem estava no local combinado. Salmon, sem saber ao certo qual seria a senha, piscou três vezes a lanterna, numa tentativa de enganá-los.
Após a resposta do capitão, os motores da embarcação foram ligados e o barco se aproximou lentamente da costa. Quando todos achavam que haviam conseguido ludibriar os tripulantes, o barulho do barco cessou, as luzes se apagaram. Escuridão total. Após alguns segundos, os sons das metralhadoras e dos fuzis romperam o silêncio. Os agentes, e alvejados e em desespero, jogaram-se ao chão enquanto eram submetidos a intensa fuzilaria. Acuados, nada poderia ser feito. O barco sumiria aos poucos na escuridão, enquanto Salmon e seus agentes buscavam abrigo. Naquela noite, o comandante percebeu que não estava mais lidando com simples bandidos que, desesperados, enfrentavam de modo solitário o mar da Ilha Grande em tentativas suicidas de escapar do Caldeirão do Diabo (como o presido era conhecido).
No dia seguinte, Salmon comunicou o ocorrido às autoridades. Seu relatório, porém, foi ignorado. O Brasil passava pela abertura política, não era conveniente investigar tais “atos terroristas” num momento em que os próprios militares estavam enviando cartas bombas, explodindo bancas de jornal e sabotando as comemorações do dia do trabalhador. Um grave erro. Quando as autoridades perceberam o problema, ele era praticamente irreversível. O ovo da serpente havia sido chocado.
Hoje o Comando Vermelho é uma realidade conhecida por todos os brasileiros. A facção criminosa atua praticamente em todo o território nacional e em alguns países estrangeiros. Desde a morte de Zé Bigode, CV não parou de crescer e seu poder em 2018 é imensamente maior do demonstrado no início dos anos 1980. O CV foi, por muito tempo, a maior organização criminosa do Brasil, dominando, no auge, as rotas de tráfico em território nacional e controlando 90% das favelas cariocas.
Recentemente, o PCC, organização criminosa de São Paulo, superou os cariocas em tamanho. Tal fato, porém, não deve ser entendido como um enfraquecimento do Comando Vermelho, mas é resultado do crescimento rápido e impressionante da facção paulista, possibilitado pelo fato de eles estarem localizados no estado mais rico do país.
Outras facções também estão sendo criadas, em diferentes estados, apavorando a população e desafiando o poder público. O CV, com efeito, foi o modelo que inspirou todos esses grupos. Entender, portanto, como a facção carioca se formou é perceber a gênese do narcotráfico e do crime organizado brasileiro. Este é o objetivo desse texto: fazer uma análise histórico/política da emergência dessas facções; sem cair no sensacionalismo, na demonização ou na apologia. Trabalho arriscado e difícil. Porém necessário.
De início, gostaria de apresentar o problema central a ser investigado: se o modelo do CV foi replicado por todo o território nacional, é porque deve haver algum ponto de contato, alguma identificação, entre os criminosos nos diferentes estados brasileiros. Explico: se um bandido, digamos, de Manaus percebeu que aquilo que estava sendo feito a milhares de quilômetros poderia ser vertido para a realidade do norte do país, certamente há alguma semelhança entre essas realidades distintas. Tanto o PCC quanto o CV nunca irão entrar, por exemplo, na Holanda. O motivo é que essas organizações não têm nada a dizer a um preso holandês, não há correlação entre esses mundos.
Se o crime se organiza de forma semelhante em vários pontos, num país continental como o Brasil, é porque essas quadrilhas estão respondendo aos mesmos estímulos. Possuem as mesmas necessidades. Entender essa questão é fundamental para compreendermos como chegamos à atual situação de descontrole dentro e fora dos presídios. Essa é a minha motivação ao escrever o presente texto.

O Comando Vermelho não se originou da união entre presos políticos e presos comuns
Antes de abordamos o assunto principal, é preciso “limpar o terreno”. Desfazer alguns mitos. A memória replicada pelo senso comum, sobre a criação do CV, é a de que a facção foi o resultado da união entre os presos políticos e os assaltantes comuns. Essa história é bem interessante e instigante. Porém, ela nada mais é que um mito de criação e, como tal, está permeada de verdades parciais e de lendas. A narrativa confunde mais do que explica e acaba por encobrir o verdadeiro motivo que levou à formação da facção. Se quisermos, de fato, entender como surgiu o crime organizado no Brasil, precisamos olhar em outra direção.
Na década de 1970, os presos comuns estavam separados dos presos políticos e havia, inclusive, certa rivalidade entre esses grupos. O CV foi formado, estruturado e pensado por homens pobres e que não haviam recebido educação formal. O mito da união entre presos de origens diferentes como marco de fundação da facção foi criado pela mídia, numa manchete que dizia: “A organização Falange Vermelha nasceu da convivência entre assaltantes e presos políticos, que os ensinaram como comandar e funcionar de maneira mais organizada” (Silva Lima, 2016, p. 146).
O CV foi organizado de forma hierarquizada e em nada se assemelhava a uma guerrilha de esquerda. Um dos primeiros e mais famosos líderes da facção, Rogério Lengruber (o RL do CVRL), era conhecido como “Marechal”. Ora, marechal não é um apelido que os movimentos de esquerda, que lutavam contra uma ditadura militar, iriam simpatizar.
Havia sim, no início, um discurso social por parte de alguns integrantes. Mas ela veio de outros presos, como Wiliam da Silva Lima, que já vinham tendo contato com a literatura de esquerda há décadas. Portanto, houve certa influência da esquerda na fundamentação, no vocabulário empregado, mas a criação da facção foi obra exclusiva dos presos comuns.
Eram mundos diferentes, realidades distintas. O CV foi a reposta dos grupos historicamente marginalizados, não daqueles que haviam sido marginalizados pelo contexto político. Para os “marginais históricos” nunca houve anistia, não há redenção. É matar ou morrer, ou melhor, é matar e morrer. Todos terminaram executados. Se nós quisermos entender o ponto de contato entre as diferentes facções brasileiras, esse não é o caminho. É preciso olhar para outros aspectos. Quais? Sigamos em frente.

A Origem do Comando Vermelho
A filosofia política moderna explica o surgimento do Estado como um processo em que os indivíduos, percebendo a sua fragilidade, “abriram mão” de parte da sua liberdade em troca de segurança. Assim teria nascido o Estado. Se esses filósofos estão certos ou errados, eu não sei, mas, sem querer, eles nos ajudaram a entender a gênese das organizações criminosas. O presídio de Ilha Grande era um lugar de castigo, em que os bandidos mais perigosos do Rio de Janeiro eram enviados para sofrer, ou, como avisavam os carcereiros aos recém-chegados após a surra de “boas vindas”, para morrer. Superlotado, os presos eram jogados à própria sorte. O preso estava sujeito a todo tipo de atrocidades. Vou colocar abaixo uma passagem do livro A História Secreta do Crime para o leitor ter uma ideia do que eu estou falando:
Gente ligada à Falange Jacaré faz a seleção dos novatos. Quem chega à Ilha Grande condenado é “examinado” pelos detentos que prestam serviços à administração. O que interessa é saber se o cara serve para “soldado”se vai “virar moça” ou se não serve para nada. Entrar para a falange, só com uma folha penal que “ateste a qualidade” do bandido: crime de morte, assalto violento, tráfico e principalmente um nome na praça. Os crimes passionais, os estupros de meninas (quando acontecem fora de um assalto ou sequestro) e outros delitos avulsos não passam no “vestibular”. Não são considerados “crimes de homem” e só merecem desprezo por parte dos “falangistas”, que são sempre gente de quadrilhas.
O processo de fazer um novato “virar moça” é simples. O sujeito é “selecionado” quando chega, especialmente se é daqueles que entram no presídio assustados, acuados pelos guardas, temendo os companheiros de cadeia. Esse é forte candidato. Particularmente se é jovem e saudável, se o corpo não apresenta sinais de deformações ou cicatrizes muito feias. O que vai acontecer com ele também é bem simples: o homem encarregado da primeira seleção avisa que chegou alguém que reúne as condições necessárias e a quadrilha faz o resto. O preso vai ser currado por cinco ou seis presidiários numa só noite. Vai ficar amarrado, amordaçado e permanentemente sob ameaça de estoques, que são facas artesanais.
No dia seguinte, a “moça” terá vergonha de contar o que aconteceu. Vai segurar a barra e não sabe que o mesmo processo se repete durante a noite seguinte e na próxima e na outra também. Pode durar uma semana. Depois de um certo tempo, o novato está tão desmoralizado que não tem outra saída a não ser a prostituição controlada pela quadrilha. Ele vira mercadoria de preço alto. Pode até “casar” com alguém na cadeia. Passa a morar na cela do “marido”, cuida da limpeza, faz comida e carinhos como qualquer “mulherzinha”.
Os estupros também eram cometidos para demarcar as relações de poder e submissão dentro do cárcere:
O jornalista Percival de Souza relata um caso assim no livro O Prisioneiro da Grade de Ferro. Aconteceu na Casa de Detenção de São Paulo. A descrição está num capítulo de título curioso, quase engraçado: “Elementos Enrabados.”
A história é a seguinte: dois assaltantes chegam ao presídio querendo ganhar autoridade e dominam o xerife da cela onde foram alojados — o xerife apanha na cara, se desmoraliza. Os demais presos, com medo de morrer, aceitam as ordens da nova liderança. “Todo mundo nu” gritam os novos xerifes. E os presos obedecem. Depois, outra ordem: “Agora todo mundo de quatro, com a bundinha pra cima”. E os presos obedecem. Armados com facas, os xerifes vão simplesmente comendo todo mundo. No dia seguinte, dois dos violentados matam os estupradores: um foi estrangulado, o outro teve o crânio partido e o cérebro perfurado por uma escova de dentes introduzida pelo ouvido.
Era a esse ambiente de extrema dificuldade, humilhação e violência que os presos eram submetidos. Como sobreviver? Essa era a pergunta que todos faziam. O único jeito era se organizar, unir forças e adotar um código moral que controlasse a violência. Como nos ensinaram os filósofos, as organizações coletivas são o resultado do medo e da insegurança. Mas havia um problema. Na Idade Moderna a legitimidade do poder vinha da tradição e cabia ao rei. E no presídio? Bem, nesse caso, viria da guerra.
Diante das dificuldades, os presos se uniram e formaram as chamadas falanges. Havia várias no Caldeirão do Diabo. Inicialmente, elas eram a união de presos de um mesmo bairro e cada uma dominava uma das galerias. A mais forte delas era a Falange do Jacaré, união dos presos da Zona Norte. Havia também a Falanges da Zona Sul e da Coreia e os chamados “neutros”. Esses grupos roubavam, estupravam e matavam outros detentos. Agiam também, em troca de vantagens, a mando dos agentes penitenciários que os usavam como uma espécie de “polícia” interna para manter a ordem e o medo no interior do presídio.
Os internos que deram origem ao CV estavam apartados do convívio com a massa carcerária, num local conhecido como “fundão”. Eram aqueles que haviam sido enquadrados na Lei de Segurança Nacional e, por isso, recebiam penas ainda mais duras. Esses detentos eram, em sua maioria, assaltantes de bancos. O assalto a banco era uma prática comum entre a guerrilha de esquerda, e muito lucrativa. Por tal motivo, esse tipo de crime era enquadrado dentro da legislação de exceção e, pelo princípio da simetria entre as penas, guerrilheiros de esquerda e bandidos comuns eram jogados nesse mesmo espaço. É interessante notar que a simetria era apenas em relação à punição, e os benefícios concedidos aos presos políticos não chegavam aos demais. Tal contradição gerou uma revolta e um sentimento de injustiça muito grande entre os presos. E foram esses homens que formaram a “Falange da LSN”, que depois seria conhecida como Falange Vermelha e, por fim, como Comando Vermelho.
Em 1978, a Anistia estava sendo discutida. Os militares, então, resolveram acabar com a divisão entre os presos e a Falange da LSN passou a ter contato com a massa carcerária. A forma como esses presos estavam organizados, porém, era muito diferente das demais falanges. A Falange da LSN queria impor um novo código de conduta dentro do presídio, que acabaria com os roubos, com os estupros e com a violência entre os presos. O inimigo era o Estado, não outros internos. Qualquer desavença entre presos deveria ser resolvida na rua.
Dentro do presídio, violência apenas para fugir. Havia também laços de solidariedade entre os presos. Sozinhos, todos estariam fragilizados, unidos, eles poderiam resistir e conquistar a tão sonhada liberdade. Como afirmou William da Silva Lima, o Comando Vermelho foi, inicialmente, uma estratégia para sobreviver na adversidade extrema. É desse pensamento que surgiu o lema da facção, que até hoje aparece pichado nas paredes dos presídios: “paz”, “justiça” e “liberdade”. Paz dentro da cadeia, justiça para os internos e a liberdade que viria por meio da fuga.
Os presos que conseguiam escapar também tinham compromisso com aqueles que ficavam. Seria criada uma “caixinha” para financiar a fuga de outros detentos. Por isso, as fugas estavam cada vez mais sofisticadas e complexas. Na mais famosa delas, que libertou José Carlos Reis Encina (Escadinha), um helicóptero chegou a ser usado para que o traficante pudesse escapar. Isso era, inicialmente, o Comando Vermelho. Um “clube” de bandidos que tinha o objetivo libertar os membros dos presídios. Mas, aos poucos, a facção iria se tornando mais sofisticada.
Restava, porém, um problema: Esse código de conduta havia sido estabelecido entre os presos do “fundão” e as outras falanges não haviam participado e nem haviam concordado com as regras que estavam sendo impostas. Se elas desafiassem o novo “regimento” e continuassem matando, estuprando e roubando, o que aconteceria? Nesse caso, ou a falange da LSN mostraria força para enquadrar os detentos ou ela seria desmoralizada.
Foi o que aconteceu. No dia 17 de setembro de 1979 estouraria a guerra dentro do Caldeirão do Diabo, que contaria o maior número de mortes de presos já registrado (sendo superada apenas pela Chacina do Carandiru na década 1990). Nessa batalha, a Falange da LSN seria a grande vitoriosa e passaria a controlar a penitenciária Cândido Mendes. O sucesso desse novo coletivo iria se espalhar por todo o sistema penitenciário carioca e logo ganharia as ruas. Os sobreviventes do massacre, por outro lado, iriam se organizar novamente e formar outra facção criminosa: o Terceiro Comando, maior rival do Comando Vermelho.

O Comando Vermelho ganha as ruas
Após o massacre, os policiais passaram a chamar a Falange da LSN de Falange Vermelha e a mística em torno do ocorrido rapidamente se espalharia pelo submundo do crime. A Falange Vermelha havia se tornado o coletivo de presos mais temido e admirado do Rio de Janeiro. A imagem construída em torno daqueles homens, porém, era maior do que o seu poder real. E, nesse aspecto, a imprensa colaborou, e muito, com a consolidação da organização.
Segundo William da Silva Lima, foram os jornais que rebatizaram o nome do coletivo para “Comando Vermelho”. Os motivos da mudança eram políticos. A cor vermelha era uma tentativa de vincular os atos criminosos praticados com a esquerda. Por isso também os jornais passaram a destacar a “origem” da facção como a união entre os presos políticos e comuns. A palavra “comando” foi inserida depois para apresentar o “Comando Vermelho”, na época um pequeno grupo de assaltantes, como um perigo a ser eliminado. O “comando” entra como parte dessa estratégia. A palavra transmite a imagem de um controle central, o núcleo de onde se espalham as atividades criminosas. A facção nasceu, portanto, de uma miragem. Assaltantes eram presos e automaticamente eram rotulados como membros dessa novidade chamada de “Comando Vermelho”, que começava a apavorar os corações e mentes dos brasileiros.
É preciso destacar o contexto histórico. O Brasil iniciava a abertura política. Éramos uma sociedade acostumada a sentir pavor. A reconhecer inimigos. A ditadura civil-militar, para se consolidar, precisou criar e estimular o medo. Havia um perigo, uma ameaça que precisava ser contida. Pessoas amedrontadas são mais fáceis de controlar. O agente do mal era a esquerda, os comunistas.
Durante o governo de João Goulart, a propaganda apontava o presidente como foco da subversão. Era preciso, portanto, derrubá-lo. Feito. Depois do golpe, o discurso mudou. O perigo não estava mais no poder, mas na sociedade. Era necessário, então, um governo forte, duro, que extirpasse tais elementos perversos. Assim foi feito. Os militares começaram prendendo nomes importantes ligados à esquerda. Depois veio a luta armada, que, de certa forma, fortaleceu o discurso da repressão. Os guerrilheiros foram eliminados. No início dos anos 1970 praticamente não existiam grupos armados no Brasil. O que fazer? Como legitimar um regime imposto pela força sem inimigos? Sem uma sociedade atormentada? A solução era inventar novas ameaças. É nesse momento, por exemplo, que os próprios militares começam a praticar atentados terroristas contra a sociedade civil, a ideia era manter acesa a chama do temor que permitia a perpetuação no poder. A mística em torno do nome “Comando Vermelho” nasceu como uma ficção inventada para substituir os comunistas nos pesadelos da classe média.

O Narcotráfico
Talvez o Saldanha o faça com mais paixão; Nanai, com mais fé. Com mais humor, o Mimoso; Nelson, com mais talento; Aché e Caó, com mais graça. Alckmin o faria com mais coração. Mas todos morreram. Quis o destino que me coubesse essa parte. (William da Silva Lima, 400 contra 1).
É desse modo que o “Professor” começa o seu livro de memórias sobre a formação do Comando Vermelho. A primeira geração da facção, da qual William fazia parte, logo seria dizimada pela polícia. Foi a segunda “geração”, da qual faziam parte nomes até hoje muito conhecidos, como Rogério Lengruber (Bagulhão ou Marechal), José Carlos do Rei Encina (Escadinha) e Francisco Viriato Ferreira (Japonês), que consolidou o Comando Vermelho dentro das favelas e fez a transição para o narcotráfico.
Essa mudança foi realizada de fora para dentro. É na década de 1980 que o tráfico de drogas se torna global e o consumo de cocaína explode no mundo inteiro. O Rio de Janeiro era um ponto geograficamente privilegiado nessa nova cadeia de comércio mundial. Era na “cidade maravilhosa” que a cocaína produzida na Colômbia entrava no Brasil e embarcava para Europa. As favelas cariocas, locais em que o Estado não atuava, passaram a ser os principais centros de comércio varejistas da cocaína. Diante desse quadro, o Comando Vermelho logo passaria a controlar essas rotas e a venda das substâncias ilícitas. Eles estavam “com a faca e o queijo na mão”. Controlavam os presídios, estavam organizados dentro das favelas e possuíam dinheiro.
Os traficantes mais conhecidos e poderosos do CV, como Escadinha, apadrinhavam alguns jovens das comunidades que eles queriam dominar. A história do traficante Paulo Roberto de Moura (Meio-Quilo) é ilustrativa desse processo. Meio-Quilo era um assaltante e pequeno traficante do Jacarezinho, na época a favela ainda não era dominada por nenhuma facção e só havia pequenos comerciantes de drogas. Meio-Quilo acabou sendo preso e, na cadeia, conheceu alguns chefes do CV. Após ser solto, ele recebeu armamento e homens do Comando Vermelho para expulsar os outros traficantes do morro, assim, o morro do Jacarezinho passou a ser controlado por Meio-Quilo e também pelo Comando Vermelho. Essa estratégia foi adotada em várias comunidades e, no início dos anos 1990, o CV atuava em 90% das bocas de fumo do Rio de Janeiro.
Nesse ponto, uma questão precisa ser esclarecida para desfazer outros mitos. O primeiro é que seria a volta da “democracia” a responsável pelo crescimento do crime organizado no Brasil. Isso é mentira. É no início da década de 1980 que as taxas de criminalidade explodem no Brasil; portanto, em plena Ditadura Civil-Militar. O que motivou esse crescimento, que ocorreu em vários países do mundo, foi a emergência do narcotráfico, do tráfico internacional de drogas, como forma de suprir a demanda crescente por cocaína.
Na década de 1980, os índices de homicídio dispararam na cidade do Rio Janeiro e, com eles, a sensação de insegurança. Esse crescimento vertiginoso gerou efeitos no campo simbólico. Num país historicamente conservador, que acabava de sair de uma ditadura, a memória popular passou a culpar a suposta leniência das autoridades, que estariam deixando a criminalidade agir impunemente. Essa interpretação não se sustenta. Primeiro porque a estrutura das políticas militares pouco foi alterada em relação ao modelo da ditadura. Segundo, porque, como vimos, o motivo do aparecimento do Comando Vermelho foi justamente oposto, ou seja, o tratamento brutal reservado aos presos.
Muitos cariocas apontam o ex-governador Leonel Brizola como o culpado pelo crescimento do Comando Vermelho, por ter adotado uma política de respeito aos direitos humanos dentro das favelas. Essa é outra falácia. Primeiro, como dito, o narcotráfico não apareceu apenas no Rio de Janeiro, mas em quase todas as cidades do mundo. O segundo motivo é um fato que poucas pessoas conhecem: o CV, como mostrou o jornalista Carlos Amorim, apoiou Moreira Franco nas eleições em que o político venceu o candidato da situação, Darcy Ribeiro. Quando Brizola foi eleito pela segunda vez governador do estado, o CV orientou os moradores das áreas sob seu controle a votarem no PDT; o motivo, porém, não foi a leniência do pedetista com o tráfico, mas o fato de Moreira Franco ter construído o presídio de segurança máxima de Bangu 01, isolando as principais lideranças da facção.

Conclusão
Voltando à pergunta inicial: o que teria motivado o surgimento do Comando Vermelho e quais os pontos de contato entre a realidade da facção carioca e as dos outros estados brasileiros?
Duas frases, de dois dos fundadores do CV, ajudam a explicar a tese central desse texto. A primeira, já citada, é a de William da Silva Lima, que afirmou que a facção era, em seus primórdios, uma tática de sobrevivência em condições extremas. A outra, dita por outro ex-membro da facção, José Carlos Gregório (o Gordo), que afirmou que o CV cresceu nos espaços deixados pelo Estado. Essa é, com efeito, a fórmula explosiva que permitiu que o crime organizado se alastrasse por todo o país.
A atuação do Comando Vermelho nas favelas ainda foi pouco explicada. No livro Bandidos, o historiador Eric Hobsbawm comenta sobre a relação ambígua entre as populações marginalizadas e esses marginais sociais:
Em primeiro lugar, um bando representa algo com o qual o sistema local precisa estabelecer um modus vivendi. Onde não existe nenhum mecanismo regular e eficiente para a manutenção da ordem pública — e isso ocorre quase por definição nas áreas onde floresce o banditismo — não há muita utilidade em se invocar a proteção das autoridades, tanto mais que tais apelos provocarão o envio de uma força expedicionária armada, que arrasará a economia da aldeia ainda mais que os bandidos.
Os traficantes são pobres que desafiam o poder constituído, que marginaliza essas pessoas. Por tal motivo, eles são ao mesmo tempo admirados e temidos pelas pessoas. O crime organizado se estabelece em áreas de extrema carência, em que o Estado não alcança, e passa a se legitimar como o único poder capaz de ordenar aquela realidade. Não existe vácuo de poder. Sem a presença do Estado, outra forma de organização coletiva se impõe e busca formas de legitimação.
O poder desses bandidos fascina sobretudo o jovem que vê nas armas um símbolo de poder, de afirmação e um atalho para sair daquela condição. Quando Meio-Quilo foi morto, o helicóptero enviado pelo Comando Vermelho para libertá-lo da penitenciária Milton Moreira Dias foi abatido, três mil moradores da favela do Jacarezinho compareceram ao enterro da traficante. A dor era genuína e difícil de ser compreendida por aqueles que não vivem a realidade dos morros. Por isso, vou deixar outro traficante e ex-morador de favela explicar essa adoração ao criminoso. Com a palavra, Marcio Santo Nepomuceno (Marcinho VP), um dos atuais chefes do CV, que se encontra encarcerado há 21 anos, boa parte desse tempo em presídios federais:
Durante o reinado de Meio-Quilo na favela do Jacarezinho, a comunidade funcionava como uma espécie de QG do Comando Vermelho. Todo preso que fugia se refugiava na comunidade, sob a proteção do traficante, que também ficou conhecido por promover uma série de melhorias na comunidade e de priorizar o bem-estar dos moradores. Quando estava preso, Meio-Quilo pontuava suas relações, sempre buscando o entendimento, o cumprimento da ética do crime e a busca pela sua liberdade, bem como de seus companheiros. (Marcinho VP: Verdades e Posições).
William da Silva Lima também aponta o caminho para a solução do problema:
Quantas centenas de prisões terão que ser construídas até os poderosos compreenderem que precisam construir escolas, precisam dividir benefícios. As vitórias políticas que não atentem para as necessidades do povo se apoiam em alicerces muito frágeis. O povo precisa de casa, comida, saúde, educação, ninguém faz opção por viver à margem social, ao contrário, a sociedade por meio da exclusão nos obriga a organizar nossas vidas baseados em valores diferentes. Nos mostra o belo e nos oferece o feio, nos mostra a alta tecnologia e nos oferece a fome, nos mostra vitórias e nos oferece a pedra fria dos cemitérios. (…)
Há dez anos falo sobre os nossos jovens. De como a falta de atenção a eles traria uma insegurança maior do que a que víamos na década de oitenta, mas são filhos da pobreza, na sua maioria negros e com pouco ou nenhum estudo. Joguem-nos às feras antes que eles contaminem nossos filhos, diz a sociedade. A resposta foi dura, as prisões estão cheias do futuro da nação e por ironia os filhos dela, da sociedade dita digna, também estão aqui. (William da Silva Lima, 400 contra 1).
A marginalização social empurra indivíduos para a marginalidade legal. Não podemos esperar que esses sujeitos ajam conforme os padrões morais usuais. O “direito penal do inimigo” opera dentro da racionalidade bélica. Inimigos da sociedade acabam vendo, igualmente, o Estado como inimigo. A dor gera revolta; a revolta, ódio; o ódio, violência. A violência é o terreno em que o crime se reproduz. É uma lógica bélica, em que se mata e morre. Se o Comando Vermelho cresceu preenchendo os buracos deixados pelo Estado, a facção nunca será derrotada enquanto o próprio Estado não ocupar esses espaços.
Precisamos ressignificar o lema paz, justiça e liberdade, invertendo essa ordem. No momento em que a liberdade for um direito, a justiça uma garantia, a paz social poderá ser alcançada. Enquanto isso não acontecer, continuaremos matando e morrendo.

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