Este artigo foi publicado pela
primeira vez há alguns anos. O seu pano de fundo é a segunda intifada
palestina, em 2000. Atrevi-me a pensar que o texto não envelheceu demasiado e
que a sua “ressurreição” está justificada pela criminosa acção de Israel contra
a população de Gaza. Aí vai, portanto.
DAS
PEDRAS DE DAVID AOS TANQUES DE GOLIAS
Afirmam algumas autoridades em
questões bíblicas que o Primeiro Livro de Samuel foi escrito na época de
Salomão, ou no período imediato, em qualquer caso antes do cativeiro da
Babilónia. Outros estudiosos não menos competentes argumentam que não apenas o
Primeiro, mas também o Segundo Livro, foram redigidos depois do exílio da
Babilónia, obedecendo a sua composição ao que é denominado por estrutura
histórico-político-religiosa do esquema deuteronomista, isto é, sucessivamente,
a aliança de Deus com o seu povo, a infidelidade do povo, o castigo de Deus, a
súplica do povo, o perdão de Deus. Se a venerável escritura vem do tempo de
Salomão, poderemos dizer que sobre ela passaram, até hoje, em números redondos,
uns três mil anos. Se o trabalho dos redactores foi realizado após terem
regressado os judeus do exílio, então haverá que descontar daquele número uns
quinhentos anos, mais mês, menos mês.
Esta preocupação de exactidão
temporal tem como único propósito oferecer à compreensão do leitor a ideia de
que a famosa lenda bíblica do combate (que não chegou a dar-se) entre o pequeno
David e o gigante filisteu Golias, anda a ser mal contada às crianças pelo
menos desde há vinte ou trinta séculos. Ao longo do tempo, as diversas partes
interessadas no assunto elaboraram, com o assentimento acrítico de mais de cem
gerações de crentes, tanto hebreus como cristãos, toda uma enganosa
mistificação sobre a desigualdade de forças que separava dos bestiais quatro
metros de altura de Golias a frágil compleição física do louro e delicado
David. Tal desigualdade, enorme segundo todas as aparências, era compensada, e
logo revertida a favor do israelita, pelo facto de David ser um mocinho astucioso
e Golias uma estúpida massa de carne, tão astucioso aquele que, antes de ir
enfrentar-se ao filisteu, apanhou na margem de um regato que havia por ali
perto cinco pedras lisas que meteu no alforge, tão estúpido o outro que não se
apercebeu de que David vinha armado com uma pistola.
Que não era uma pistola,
protestarão indignados os amantes das soberanas verdades míticas, que era
simplesmente uma funda, uma humílima funda de pastor, como já as haviam usado
em imemoriais tempos os servos de Abraão que lhe conduziam e guardavam o gado.
Sim, de facto não parecia uma pistola, não tinha cano, não tinha coronha, não
tinha gatilho, não tinha cartuchos, o que tinha era duas cordas finas e
resistentes atadas pelas pontas a um pequeno pedaço de couro flexível no côncavo
do qual a mão experta de David colocaria a pedra que, à distância, foi lançada,
veloz e poderosa como uma bala, contra a cabeça de Golias, e o derrubou,
deixando-o à mercê do fio da sua própria espada, já empunhada pelo destro
fundibulário. Não foi por ser mais astucioso que o israelita conseguiu matar o
filisteu e dar a vitória ao exército do Deus vivo e de Samuel, foi simplesmente
porque levava consigo uma arma de longo alcance e a soube manejar. A verdade
histórica, modesta e nada imaginativa, contenta-se com ensinar-nos que Golias
não teve sequer a possibilidade de pôr as mãos em cima de David, a verdade
mítica, emérita fabricante de fantasias, anda a embalar-nos há trinta séculos
com o conto maravilhoso do triunfo do pequeno pastor sobre a bestialidade de um
guerreiro gigantesco a quem, afinal, de nada pôde servir o pesado bronze do
capacete, da couraça, das perneiras e do escudo. Tanto quanto estamos
autorizados a concluir do desenvolvimento deste edificante episódio, David, nas
muitas batalhas que fizeram dele rei de Judá e de Jerusalém e estenderam o seu
poder até à margem direita do rio Eufrates, não voltou a usar a funda e as
pedras.
Também não as usa agora. Nestes
últimos cinquenta anos cresceram a tal ponto a David as forças e o tamanho que
entre ele e o sobranceiro Golias já não é possível reconhecer qualquer
diferença, podendo até dizer-se, sem ofender a ofuscante claridade dos factos,
que se tornou num novo Golias. David, hoje, é Golias, mas um Golias que deixou
de carregar com pesadas e afinal inúteis armas de bronze. Aquele louro David de
antanho sobrevoa de helicóptero as terras palestinas ocupadas e dispara mísseis
contra alvos inermes, aquele delicado David de outrora tripula os mais
poderosos tanques do mundo e esmaga e rebenta tudo o que encontra na sua
frente, aquele lírico David que cantava loas a Betsabé, encarnado agora na
figura gargantuesca de um criminoso de guerra chamado Ariel Sharon, lança a
“poética” mensagem de que primeiro é necessário esmagar os palestinos para
depois negociar com o que deles restar. Em poucas palavras, é nisto que
consiste, desde 1948, com ligeiras variantes meramente tácticas, a estratégia
política israelita. Intoxicados pela ideia messiânica de um Grande Israel que
realize finalmente os sonhos expansionistas do sionismo mais radical;
contaminados pela monstruosa e enraizada “certeza” de que neste catastrófico e
absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, estão
automaticamente justificadas e autorizadas, em nome também dos horrores do passado
e dos medos de hoje, todas as acções próprias resultantes de um racismo
obsessivo, psicológica e patologicamente exclusivista; educados e treinados na
ideia de que quaisquer sofrimentos que tenham infligido, inflijam ou venham a
infligir aos outros, e em particular aos palestinos, sempre ficarão abaixo dos
que sofreram no Holocausto, os judeus arranham interminavelmente a sua própria
ferida para que não deixe de sangrar, para torná-la incurável, e mostram-na ao
mundo como se tratasse de uma bandeira. Israel fez suas as terríveis palavras
de Jeová no Deuteronómio: “Minha é a vingança, e eu lhes darei o pago”. Israel
quer que nos sintamos culpados, todos nós, directa ou indirectamente, dos
horrores do Holocausto, Israel quer que renunciemos ao mais elementar juízo
crítico e nos transformemos em dócil eco da sua vontade, Israel quer que
reconheçamos de jure o que para eles é já um exercício de facto: a impunidade
absoluta. Do ponto de vista dos judeus, Israel não poderá nunca ser submetido a
julgamento, uma vez que foi torturado, gaseado e queimado em Auschwitz.
Pergunto-me se esses judeus que morreram nos campos de concentração nazis,
esses que foram trucidados nos pogromes, esses que apodreceram nos guetos,
pergunto-me se essa imensa multidão de infelizes não sentiria vergonha pelos
actos infames que os seus descendentes vêm cometendo. Pergunto-me se o facto de
terem sofrido tanto não seria a melhor causa para não fazerem sofrer os outros.
As pedras de David mudaram de mãos, agora são os palestinos que as atiram. Golias está do outro lado, armado e equipado como nunca se viu soldado algum na história das guerras, salvo, claro está, o amigo norte-americano. Ah, sim, as horrendas matanças de civis causadas pelos terroristas suicidas… Horrendas, sim, sem dúvida, condenáveis, sim, sem dúvida, mas Israel ainda terá muito que aprender se não é capaz de compreender as razões que podem levar um ser humano a transformar-se numa bomba.
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