Em 17 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirmava “que o desprezo e o desrespeito pelos Direitos Humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homen comum. É essencial que os Direitos Humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”.
Em 2008, escrevi um artigo para celebrar os 60 anos da Declaração. Naquela ocasião, percebi claramente que os fantasmas dos traumas nascidos das experiências totalitárias dos anos 30 assombram suas linhas e entrelinhas. Por isso, a declaração afirmava que toda a pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. Ninguem poderá ser inculpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.
É considerada intolerável a interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, (e, atenção!) nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. O cidadão (note o leitor, o cidadão) tem direito à liberdade de opinião e de expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações por quaisquer meios e independente de fronteiras.
Todos têm direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistências especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social. A instrução é um direito de todos e ela será gratuita pelo menos nos graus elementares e fundamentais. O artigo 17 é dedicado a Bush Filho: “Toda pessoa terá direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados”.
Na Europa dos séculos XIX e XX, a consciência dos direitos moveu a luta dos subalternos e transformou o Estado numa instância de “totalização das relações sociais”. Suas intervenções realizam a mediação entre as classes e entre os membros individuais das diferentes classes. O avanço da “totalização das relações sociais” pode ser avaliado de forma mais clara pelo grau de independência adquirido pelas instâncias do poder público e da política diante do poder material da camada dominante. Os sitemas de proteção aos Direitos Humanos nos países mais avançados da Europa assumem que há, sim, contradição entre as exigências de impessoalidade e publicidade dos atos praticados pela autoridade, regulados pela lei abstrata e universal e o exercício do poder real pelas camadas economicamente mais poderosas.
A Declaração dos Direitos Humanos, na esteira do pensamento liberal e progressista dos séculos XIX e XX, imaginou que a igualdade e a diferença seriam indissociáveis na sociedade moderna e deveriam subsistir reconciliadas, sob as leis de um Estado Ético. Esse Estado permitiria ao cidadão preservar sua diferença em relação aos outros e, ao mesmo tempo, harmonizá-la entre si, manter a integridade do todo. Mas as transformações econômicas das sociedades modernas suscitaram o bloqueio das tentativas de impor o Estado Ético e reforçaram, na verdade, a fragmentação e o individualismo agressivo. Assim, a “ética” contemporânea não é capaz de resistir à degradação das propostas coletivas.
O século XXI completou uma década e o Brasil ainda não conseguiu acertar contas com o passado. O passado não passa, lança suas sombras sobre o presente e projeta maus agouros para o futuro. As reações à publicação do decreto dos Direitos Humanos lançaram no ar os odores da famigerada Marcha da Família com Deus pela Liberdade e suas consequências funestas. Sob essas consignas – Deus, Família e Liberdade – os beleguins da ditadura assassinaram religiosos, invadiram os lares de muitos brasileiros que dissentiam, desarmados, aos atropelos da exceção. Para garantir a liberdade de expressão degradaram (algumas) redações com censores de ornamentos culturais que iam do grotesco ao obsceno.
Digo acertar as contas sem ranço revanchista nem propósitos de revigorar a Lei de Talião, mas de abrir aos brasileiros de todas as gerações as portas da verdade. Não entenda o leitor que vamos encontrá-la apenas cavoucando as masmorras da ditadura, indagando os paus de arara, ou até mesmo desencavando e publicando os arquivos da repressão política (vou insistir: da repressão política). A verdade vai chegar a nós na discussão, sem receios nem interdições, acerca das razões e das circunstâncias históricas e sociais que levaram o País a sucumbir diante da inescrupulosa e oportunista violação dos princípios da vida democrática e do Estado de Direito.
Nos anos 60, às vésperas do famigerado golpe de Estado de 1964, surgiu um slogan premonitório: “Basta de intermediários, Lincoln Gordon para presidente”. Gordon era o embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Conspirava abertamente com as “forças democráticas” nativas, aquelas que estão permanentemente arquitetando a supressão da democracia. Da conspiração participavam naturalmente os homens de bem, os mesmos que hoje se arvoram em defensores intransigentes da democracia e do Estado de Direito. Nada mais inconveniente para essa turma do que uma Comissão da Verdade.
O silêncio devotado e cúmplice de muitos protagonistas dos anos de escuridão denuncia a falsidade de suas juras de amor pelos princípios que dizem defender. Não por acaso, depois de 25 anos de vida democrática, as garantias individuais somadas aos direitos econômicos ainda sofrem os ataques e achaques das forças do poder real e mal conseguem sair dos códigos para ganhar vida do povaréu, cotidianamente massacrado pelos abusos dos senhoritos da “ordem” e seus sequazes. Os mais furiosos se apresentam como “humanos direitos”, em contraposição aos defensores dos “direitos humanos”. Fico a imaginar como seria a vida dos humanos direitos na moderna sociedade capitalista de massas, crivada de conflitos e contradições, sem as instituições que garantam os direitos civis, sociais e econômicos conquistados a duras penas. A possibilidade da realização desse pesadelo, um tropismo da anarquia de massas, tornaria o Gulag e o Holocausto ensaios de amadores.
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