Honra-me ter sido detestado por Ernesto Geisel, ditador de 1974 a 1979. Baseio-me em depoimentos insuspeitos. Um, de Karlos Rischbieter, presidente da Caixa Econômica Federal e, em seguida, do Banco do Brasil durante a ditadura Geisel. Está no livro de memórias de Rischbieter, publicado no começo de 2008. O outro, gravado, é do quinto ditador da casta fardada, João Baptista Figueiredo. Tocou no assunto em 1988, durante um churrasco amigo.
Geisel, no meu caso certamente, desperdiçava seus maus humores. Eu não merecia tanto. Nunca estive com ele, informa-me a seu respeito fluvial entrevista contida em um monumental volume, destes que implodem qualquer criado-mudo. Falava com um grupo de professores do Cepedoc. Primeiro aspecto: ali Geisel em momento algum aponta a “distensão, lenta, gradual, porém segura” como seu trunfo. Praticamente esquece-se dela. Orgulha-se é dos feitos econômicos pretensamente extraordinários, alcançados durante o seu “mandato” (aspas obrigatórias), quando entendia que o Brasil fosse “uma ilha de prosperidade”.
Com isso, tendo a crer que o verdadeiro estrategista da abertura tenha sido Golbery do Couto e Silva, o titereiro. Sabia como lidar com seu títere de estimação, com quem mantinha, aliás, relações bem menos íntimas do que se supõe. Levava devidamente em conta os resultados das eleições parlamentares consentidas de 1974 e o papel de uma oposição concentrada à sombra do MDB do doutor Ulysses. Ou seja, percebia no horizonte sinais de insatisfação, quais fossem as ameaçadoras colunas de fumaça provocadas pelos peles-vermelhas dos filmes do faroeste.
O segundo aspecto diz respeito à tortura. Pois o ditador apresentado como tutor da distensão é a favor da tortura. Quem duvida, se tiver coragem para a empreitada, leia algo em torno de 500 páginas de entrevista. Eis aí uma questão que a mídia nativa não levanta. Qual é a responsabilidade dos ditadores pelos crimes de lesa-humanidade perpetrados pelos seus janízaros?
Branco, aquele general que gozava da fama de intelectual por ter lido alguns livros de Alexandre Dumas pai e de Victor Hugo, donde sorboniano, talvez escape desta no Vale de Josaphat. E Costa e Silva, que assinou o AI-5? E a Junta Militar, encabeçada por um general que escrevia poesias com pseudônimo de Adelita, habilitado, portanto, a figurar na Academia Brasileira de Letras? E Médici e Geisel? E Figueiredo? Durante o “mandato” deste não houve tortura, bombas sim, muitas bombas.
Seria de dever, como aconteceu, por exemplo, na Argentina, definir e condenar os ditadores, primeiros motores da repressão política e do terror de Estado. Ora, direis: estão todos mortos. Vamos condená-los, ao menos, à execração pública.
Está claro, no entanto, que não amadurecemos o bastante. De minha parte, não espero ler ou ouvir referências nesse sentido ao passado ditatorial por parte da mesma mídia que implorou o golpe de 1964 e hoje reage de maneira primitiva, anacrônica, intelectual e moralmente deplorável a um Projeto dos Direitos Humanos que não passa de declaração de intenções.
Em meio à reação descomposta, feroz e até vulgar, apinhada de editoriais que valeria entender como peças de humorismo não fossem tragicamente distantes da contemporaneidade do mundo, um único ponto do Projeto justifica reparo, a parecer saído da pena de redatores milenaristas. Não é digno de uma democracia autêntica atribuir ao Estado a tarefa de determinar quem da mídia age a favor dos Direitos Humanos e quem não.
Falha ululante do Projeto. O presidente Lula não erra quando afirma que o monopólio da comunicação contradiz quaisquer propósitos democráticos. Retruca o Estadão, “alto e bom som”, que o monopólio no Brasil não se dá. Esquece as empresas deste país que enveredam por todos os caminhos midiáticos, sem contar a aliança selada entre elas, às vezes automaticamente, quando divisam o risco comum.
Há 46 anos invocaram o golpe para deter uma marcha da revolução vermelha que nunca deu o ar da sua graça. Hoje preparam-se a sustentar em uníssono o candidato da oposição contra aquele do operário que chegou longe demais. De todo modo, não cabe ao Estado criar mecanismos para impedir este ou outros gêneros de monopólio. É sim da competência do Congresso aprovar uma lei para limitar os poderes dos barões. Que se estabeleçam fronteiras para a ação de cada qual: ninguém tem direito a tudo. Não vale a pena iludir-se, contudo. No Brasil atual, isto é quimera.
Nenhum comentário:
Postar um comentário