sábado, 23 de janeiro de 2010

Os muros de borracha - Wálter Fanganiello Maierovitch (CartaCapital)

No livro que tem como subtítulo Eu e os Criminosos de Guerra, Carla del Ponte, a primeira a assumir o encargo de chefe do Ministério Público no Tribunal Penal Internacional (TPI), usou a expressão “muro de borracha” para definir não apenas a dificuldade da sua transposição em questões judiciais, mas especialmente o retrocesso experimentado quando se tromba contra ele. De fato, jamais foi fácil a tarefa de não deixar impunes os crimes quando, de permeio, os poderosos erguem muros de borracha.

Del Ponte, caso morasse no Brasil, estaria a assistir a paralisação das apurações e dos processos judiciais contra o banqueiro Daniel Dantas nos casos Satiagraha e Kroll, determinados no fim de 2009 e janeiro de 2010, respectivamente. Mais ainda, contemplaria o transporte por caminhão, de São Paulo para Brasília, de todos os documentos relativos à referida Operação Satiagraha, por ordem do ministro guardião Eros Grau. O mesmo que, sem determinar eleição, conduziu, em 2009, Roseana Sarney ao governo do Maranhão e anteriormente, na condição de relator, deu sustentação à escandalosa liminar de soltura concedida ao banqueiro Dantas pelo ministro Gilmar Mendes, em habeas corpus e sem competência.

Na verdade, tratou-se de novos muros de borracha quando o de anos anteriores havia ruído, caso, por exemplo, daquele alicerçado na proibição de perícia nos discos rígidos do Banco Opportunity, determinada por Ellen Gracie. A ministra, em 2009, diminuiu a importância do seu cargo no STF ao querer trocá-lo por um tribunal de comércio sediado nos EUA, onde acabou reprovada no processo seletivo. Assim, faliu, como se diz entre aldeões portugueses, a sua tentativa de passar de cavalo a burro.

O TPI foi instituído, pelo Tratado de Roma, em 18 de julho de 1998. Sua competência decorre da necessidade de punir os responsáveis por atrocidades caracterizadas pela negação da dignidade humana. Como o TPI não conta com jurisdição retroativa, o Brasil, que está entre as 120 nações que o aceitaram (sete ficaram de fora), jamais assistirá a julgamentos de processos criminais contra aqueles que, entre 1964 e 1989, perpetraram terrorismo de Estado, a fim de sustentar uma ditadura.

No Brasil, 144 dos nossos conacionais foram assassinados sob tortura durante o regime de exceção. E o número dos desaparecidos, sob custódia do regime militar, chega a 125. A conspiração militar que resultou no golpe de 1964, e contou com contribuição financeira, doutrinária (Doutrina Mann, do secretário para Negócios Interamericanos), política e bélico-naval dos EUA (Operação Brother Sam, capitaneada pelo porta-aviões Forrestal, que ficou à disposição), foi regida pelo general Humberto Castelo Branco. Antes dela, o general Olympio Mourão Filho, de perfil filo-integralista que comandava a região de Minas Gerais, ensaiara o golpe com a sua abortada Operação Popeye.

A ditadura militar, decorrente de golpe que tirou do poder ao arrepio da democrática Constituição de 1946 o presidente João Goulart, passou, não bastassem os atos institucionais, a calar, pela tortura e prisões, os opositores, num endurecimento iniciado logo em 1965. Com o famigerado Ato Institucional número 5, cujo texto foi da lavra do então ministro da Justiça Gama e Silva, conferiu-se ilegitimamente ao presidente da República poderes para cassar direitos políticos, suspender o remédio heroico do habeas corpus, censurar a imprensa, prender por opinião, aposentar professores incômodos etc.

A luta armada, uma reação legítima contra o golpe e o terror de Estado, começou a ser articulada em 1967 e se mostrou apenas em 1969, sem a participação do Partido Comunista Brasileiro, que adotara a linha da oposição sem violência: a posição do PCB, chamado de Partidão, levou Carlos Marighella a criar e comandar a Ação Libertadora Nacional (ALN).

Apegado à máxima de que a história é escrita pelos vencedores, o regime ditatorial, por perceber que chegava à exaustão e por cautela voltada a conferir um bill de indentidade e impunidade aos agentes do terror, elaborou, em 1979, a chamada Lei da Anistia (Lei nº 6.683). A que concedeu, em plena ditadura, anistia aos autores de crimes políticos, conexos a eles ou por motivação militar. Como se nota, a referida lei representa caso típico de autoanistia, em pleno regime excepcional.

Os ditadores de plantão e seus serviçais olvidaram, à época, que o Direito Internacional e as convenções subscritas pelo Brasil, desde 1964, já criminalizavam os atos de lesa-humanidade, como a tortura, o terrorismo, o genocídio etc. Também não reconheciam prescrição, anistia ou outra hipótese aniquiladora do direito de punir e da efetivação de sanção imposta com observância do devido processo legal.

Esse tiro pela culatra começou a ser percebido, no Brasil, quando a Espanha, que teve lei de anistia promulgada em 1977 (depois da morte do general-ditador Francisco Franco), começou, no governo socialista, a projetar a chamada Lei para Recuperar a Memória Histórica, só aprovada pelo Parlamento em 2007. A meta principal era escrever a verdadeira história. Fora isso, procurou-se (1) restabelecer direito às famílias em face de condenados à morte por infamantes tribunais de exceção; (2) remover símbolos do regime de arbítrio; (3) localizar as fossas onde estavam sepultados os assassinados por delitos de opinião e oposição à ditadura e indenizar sobreviventes de tortura ou seus sucessores.

Recentemente, num escrito de uma ativista de direitos humanos de Madri, quando havia esperança de se encontrar a fossa com os espólios do poeta Federico Garcia Lorca, ficou assinalado que, quando se tenta apagar a memória das vítimas de tormentos, aparece sempre um fantasma para não deixar morrer as lembranças.

No fim de 2009, mais precisamente em 21 de dezembro, o governo Lula deu um passo largo ao anunciar e formalizar o Programa Nacional de Direitos Humanos, que designa um grupo de trabalho incumbido de redigir, até abril de 2010, um projeto de lei a instituir uma Comissão Nacional da Verdade. O referido órgão, com prazo determinado, terá a incumbência de examinar as violações de direitos humanos durante o regime militar (1964-1985). Está previsto também levantamento histórico a respeito da ditadura Vargas, da revogação da Lei da Anistia de 1979 e da edição de lei, a exemplo da Espanha, a proibir manutenção de nomes de pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade em logradouros, próprios públicos, ruas, viadutos etc.

Esse fecho de 2009 era animador ao projetar grande progresso no campo dos direitos humanos em 2010, com respeito às famílias das vítimas, e de se poder contar para as novas gerações a nossa verdadeira história. No entanto, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, montou um jogo de cena e até se fala ter Lula assinado, sem ler, o decreto do referido programa.

Por não concordar com a redação, termos e metas do Programa Nacional de Direitos Humanos, o ministro Jobim, que amiúde gosta de envergar uniforme militar, apresentou ao presidente Lula um pedido de exoneração, em 22 de dezembro. Por evidente, contava com o aval dos comandantes das três armas. Tudo que teria sido acertado entre a Secretaria de Direitos Humanos e o Ministério da Defesa, incluído o termo reconciliação e a meta de apuração também de atos dos que optaram pela luta armada para combater o regime, foi glosado, segundo Jobin

Apesar da formação jurídica e do tempo passado no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro embarcou no falso discurso do revanchismo contra as Forças Armadas e da legitimidade da Lei da Anistia. Esqueceu Jobim uma velha lição, ou seja, a responsabilidade criminal, por imprescritíveis crimes de lesa-humanidade e terrorismo de Estado, recai sobre a pessoa do infrator e não na corporação, Exército, Marinha ou Aeronáutica.

Assim, responsabilizar um coronel Brilhante Ustra, apontado como responsável pela tortura de presos políticos nas celas do DOI-Codi, não implica mácula ao Exército Nacional. Quando o Judiciário afasta por corrupção um magistrado ou o Exército expulsa um soldado indigno da farda, alcança-se o aperfeiçoamento, ou melhor, não seriam a Magistratura e o Exército, nos exemplos dados, os punidos, mas membros das corporações que não se mostraram dignos. Membros das Forças Armadas nunca estiveram legitimados a promover terrorismo, torturar, sequestrar, matar e desaparecer com seres humanos.

Vale frisar, ainda, que a autoanistia, em diversas oportunidades, foi declarada ilegítima pelas Nações Unidas e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Não se aceita, em síntese, a autotutela por anistia. Nem benefícios a tiranos são referendados e legitimados pela Corte de Direitos Humanos da União Europeia, sediada em Estrasburgo (França). Os então ditadores Franjo Tudjman, da Croácia, e Slobodan Milosevic, da ex-Iugoslávia, não lograram reconhecimentos espúrios, em detrimento de direitos humanos. A propósito, Milosevic, sob odor de crimes contra a humanidade e genocídios, morreu na prisão, por força de mandado expedido pelo TPI.

A carta-renúncia de Jobin, aquele que confessou em livro laudatório haver fraudado a Constituinte e inserido artigos sem exame dos seus pares, não foi aceita pelo presidente Lula. O ministro luta pela manutenção da Lei da Anistia de 1979. Para torná-la ampla e irrestrita usa como pressão a ameaça contra os que se opuseram ao regime pela via armada, equiparando-os a assassinos e torturadores com o crachá da ditadura.

Para entender melhor o quadro, os comandantes militares, na verdade e pelo porta-voz Jobin, desejam (1) apurar a atuação dos movimentos de resistência de esquerda e, em especial, as condutas da ministra Dilma Rousseff e do ministro Franklin Martins; e (2) não concordam com buscas e apreensões em quartéis e comandos militares, ou seja, pretendem manter arquivos secretos.

A manutenção da Lei da Anistia, avisam os militares, representa “ponto de honra”. Nem tal manutenção, frise-se, favorece os autores ou mandantes de crimes de lesa-humanidade. Em ilustrativo artigo sobre a Lei da Anistia não impedir a punição dos que praticaram tortura e crimes de lesa-humanidade durante o regime militar, os procuradores da República Eugênia Augusta Gonzaga Fávero e Marlon Alberto Weichert, ambos mestres em Direito Constitucional, alertam não ser preciso revogar a Lei da Anistia, pois a punição dos crimes só depende de uma interpretação técnica do seu conteúdo: “Ora, só praticam crimes políticos, ou com motivação política, os que desejam ir contra o Estado. Os atos dos órgãos de repressão visavam o contrário, ou seja, defender o governo”, que, acrescento, era de exceção, golpista, antidemocrático e promotor de terrorismo de Estado”.

A atual postura do ministro Jobim deve arrancar aplausos dos torturadores do DOI-Codi e da Operação Bandeirantes (Oban), dos membros do famigerado Comando de Caça aos Comunistas (CCC) e do fantasma de Emílio Garrastazu Médici. Em resumo, tenta-se implantar um vergonhoso muro de borracha, a vedar para 2010 as esperanças de fechar, com a marca da verdade, esse período repugnante da nossa história.

No governo, apesar das negativas, existem duas frentes em litígio, ou seja, a do ministro Vannuchi, da Secretaria de Defesa dos Direitos Humanos, e, do outro lado, a encabeçada por Jobin, ministro da Defesa.

Outro aspecto a considerar, no que toca ao tema anistia, diz respeito à morosidade da Justiça na solução sobre a constitucionalidade ou não da Lei da Anistia. Fora dos autos e pela constitucionalidade já se manifestou o presidente do STF, Gilmar Mendes. Em razão disso, estará tecnicamente impedido de julgar. Quanto à arguição de descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, sobre a Lei de Anistia, está a ocorrer descumprimento do disposto no artigo 7º, parágrafo único, da Lei nº 9.882, de 3/12/1999. Nela se estabelece o prazo de cinco dias para a manifestação da Procuradoria-Geral da República. O prazo findou em 7 de fevereiro do ano passado e os autos continuam com o referido procurador.

Num ano encerrado por dissensos entre Executivo e Judiciário e entre este e o Legislativo, tudo estará mais tranquilo em 2010, quando, em maio, assumirá a presidência do STF o ministro Cezar Peluso, que tem outro estilo, é juiz de carreira tarimbado, jurista e professor de direito sempre muito respeitado. Peluso parece já ter compreendido que o ativismo judiciário (eufemismo que significou, em 2009, a subtração de função constitucional exclusiva do Legislativo) e as precipitações e intromissões ao estilo Gilmar Mendes, só contribuíram para o descrédito da mais alta Corte.

Enquanto o ministro Eros Grau sonha com a aprovação da emenda da bengala, que lhe daria mais cinco anos de STF, esboça-se na sociedade civil um movimento para reformas, a fim de se estabelecer, como nas cortes constitucionais europeias, prazo de sete anos de mandato para ministros, sem possibilidade de recondução. O recall revogação do mandato parlamentar só depende de regulamentação da Constituição, já proposta pelo Conselho Federal da OAB, em projeto da lavra e da autoridade do professor Fábio Konder Comparato.

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