Nassif, sabes uma frase que eu acho extremamente sibilina?
"Os números não mentem, jamais."
Para mim, números mentem, sim, ou melhor, prestam-se a omissões seletivas a depender da pergunta que é feita.
Por isso, sempre que se analisa um processo, é necessário manter o referencial em vista. Muitas vezes, ganhos em números absolutos correspondem a perdas em valores relativos. De um modo geral, razões e proporções contam uma história mais completa e contextualizada do que índices absolutos.
Acho que a poucos parâmetros econométricos isso se aplica tão bem quanto à questão dos salários. O salário em si é um valor monetário entregue periodicamente ao trabalhador como retorno pelos serviços prestados, seja ao estado, seja ao setor privado.
Porém, antes de tudo, a importância do salário está naquilo que ele é capaz de fazer por quem o recebe.
Então, analisemos a questão do salário mínimo.
Nominalmente, o salário mínimo do governo Lula foi R$ 200,00 a R$510,00. Um aumento de 155% em termos nominais.
Claro que esse é um valor enganoso, pois não diz nada a respeito do poder de compra desse salário.
Uma conversão comum, pelo fato de a economia estadunidense ser pouco afetada pela inflação, é denominar o salário mínimo em dólar. Nesse caso, no governo Lula, o salário mínimo foi de 57 para 300 dólares. Um aumento de 426%. Se o governo quisesse fazer demagogia, certamente esse seria o número a se usar.
Se colocarmos a inflação (IPCA) na jogada, o acumulado do governo Lula, até outubro, foi de 54,2%. Aplicando-se a correção aos 510 reais, o aumento corrigido do salário mínimo do governo Lula foi de 65%. Ainda está de bom tamanho.
Legal, né? Não vou nem entrar na comparação com FHC.
Mas receio que o cenário não seja tão alvissareiro assim.
Para mim, proporções é que são importantes. E comparações: o Brasil do presente só pode ser comparado com o Brasil do passado e com o Brasil que queremos (e aí o sujeito de "queremos" é discutível).
Acho que podemos ser mais ambiciosos do que comparar o salário mínimo de hoje com os das décadas perdidas de oitenta e noventa.
Que tal se compararmos o salário mínimo com o teto histórico de 1960, em termos de poder aquisitivo?
A série histórica 1940-2000 está no Dieese, aqui:http://www.dieese.org.br/esp/salmin/salmin00.xml.
Jogando-se o IPCA em cima, o salário mínimo de hoje, em valores de 2000, é de R$ 257,60. Com FHC, chegou a R$ 175,43. Um aumento de 47%, ainda respeitável.
Ainda assim, o valor atual é apenas 37% do pico do fim da era JK. Essa é uma excelente medida do grau em que a ditadura e as décadas perdidas introduziram a desigualdade na sociedade brasileira. O salário mínimo teria de ser de R$ 1.378,34 para que os trabalhadores cujo salário é indexado por ele tivessem o poder de compra que tinham em 1960. A relação do salário mínimo com o PIB, cuja evolução o Dieese ilustra, também documenta o famigerado arrocho dessas quatro décadas.
Mas isso não é o fim da história. Lembram-se da nossa constituição, e seus tantos artigos não regulamentados por conveniência? Tem-se falado muito da ADIN por Omissão do Comparato sobre os artigos que regulamentam as comunicações, mas há muitos outros que aguardam nosso célere congresso.
O sétimo artigo, da Seção II (Direitos Sociais), é um deles. Em seu inciso IV, segundo o Dieese, ele estabelece o "salário mínimo fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, reajustado periodicamente, de modo a preservar o poder aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim".
E aí, o Dieese já resolveu calcular quão distante o salário mínimo está do valor necessário para cobrir um rol de despesas estabelecido de forma a corresponder a essas necessidades para uma família de um casal e dois filhos, em que um dos adultos apenas é arrimo.
Aí podemos nos divertir um pouquinho em comparar as três últimas presidências.
A medida começou no fim do mandato do Itamar, e à época o salário mínimo conseguia cobrir pouco menos de 11% dessas despesas - o melhor valor que Itamar atingiu no período de medição.
O melhor valor de FHC foi em maio de 2002, quando o salário mínimo chegou a cobrir 17,8% das despesas do salário mínimo constitucional.
Com Lula, o melhor mês foi janeiro deste ano, quando se chegou a 25,6%. Como o reajuste é só no fim do ano, os valores finais são sempre piores: em outubro, o salário mínimo correspondeu a 23,9% do ideal da Carta Maior. O aumento sobre FHC, se comparados os picos, foi de 44%. Se comparados os valores de fim de mandato, foi de 64% ou pouco menos. No governo Dilma, caso seja aprovado o valor de R$ 580,00 e a inflação de 2010 fique em 4,4%, adentraremos o mandato com uma proporção de quase 27% em janeiro. Ou seja, estamos quase conseguindo sustentar, com o salário mínimo, um dos adultos da tal família.
Conclusões:
i. Lula realmente reabilitou o salário mínimo de forma considerável em relação aos antecessores, à inflação e ao poder aquisitivo.
ii. Porém, ele fez isso em cima de um patamar tão baixo que o Brasil ainda está longe de se tornar um país moderadamente próspero para todos os seus. Estou falando aqui em redução da desigualdade, aquele índice Gini que tanta vergonha nos traz.
iii. Esse patamar é baixo em relação ao nosso passado, àquilo que já fomos um dia.
iv. E é mais baixo ainda em relação àquilo que, na Constituição (o sujeito mais legítimo para o "queremos" lá de cima), estabeleceu-se como meta.
O salário mínimo constitucional, hoje, segundo o Dieese, seria de R$ 2.132,09. Claro que se pode questionar, e é por isso que ninguém abre ADIN contra um artigo tão vago e não regulamentado, se a família de quatro pessoas e um arrimo descreve bem a sociedade brasileira, de natalidade cadente e em que soem os dois adultos trabalharem (e, nas fazendas de alguns políticos, as crianças também, quando os fiscais do trabalho não estão olhando). O artigo pode ser anacrônico, a definição do Dieese, também; a desigualdade, não, essa é velha de guerra e contemporânea como de hábito.
Como o reajuste é dado pela média do crescimento do PIB dos últimos dois anos, mais a inflação acumulada no período, podemos brincar com isso, se presumirmos duas coisas:
a. Uma média de crescimento de seis por cento ao ano.
b. Uma inflação de cinco por cento ao ano.
Isso corresponde a um reajuste anual de 11,3%. No fim de 2011, o reajuste seria para R$ 645,00.
Número de anos para chegarmos ao patamar de 1960: oito e uns quebrados.
Número de anos para chegarmos ao patamar constitucional: doze e pouquinho. O PIB terá de dobrar para que isso aconteça, no ritmo atual.
Uau! Chegaremos a 2019 do jeito que estávamos em 1960, e a 2023, do jeito que o PMDB (o PMDB!) queria que fôssemos em 1988, no entendimento do Dieese. (Eles eram maioria na Constituinte, lembram-se?)
(E ainda tem gente com saudades do crescimento econômico da ditadura…)
Mas isso não vai acontecer.
Dilma está falando em salário mínimo de R$ 700 até 2014, então as condições que estabeleci são por demais otimistas. O reajuste de 2010 (de R$ 465,00 para os atuais R$ 510,00) foi de 9,6%. Se for a 580 agora, será de 13,7%, mas o governo já insinuou que, se se fizer isso, o reajuste em 2011 será menor. E isso se a crise não voltar.
E não me venham criticar o Dieese com essa história de que sindicalista sempre quer mais do que pode conseguir. Os dados sobre a série histórica de salários são do IBGE e sustentar uma família de quatro não é nem um pouco absurdo, ainda mais se considerarmos que, nas famílias mais pobres, em que o salário mínimo tem um impacto social maior, essa situação é comum.
Até dá para entender o Plínio nessas horas.
Uma nota de otimismo: pelo menos, no Brasil, o salário voltou a subir, desde Itamar, ganhando fôlego nos últimos anos. Nos EUA, o poder de compra da massa salarial parou nos anos setenta e sua proporção no PIB está em queda livre há anos. Não por outro motivo, eles caem de quarto para 18° lugar no IDH quando a desigualdade é contabilizada.
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