Eleição para presidente é bom por causa disso: só acontece de quatro em quatro anos, tem dia e hora para acabar. Em pouco tempo, fica-se sabendo quem ganhou e quem perdeu. No dia seguinte, a vida segue seu rumo. Os vencedores escolhem o time que vai governar e os perdedores reorganizam suas tropas para a próxima eleição. Por isso, como vocês sabem, nem pretendia voltar ao assunto.
Nas democracias costuma ser assim, mas não é bem o que esta acontecendo no Brasil nestas duas semanas que se passaram desde que fomos às urnas. Em alguns “bolsões sinceros mas radicais”, como se dizia nos tempos dos militares, quando não se podia votar para presidente, nota-se um rancoroso inconformismo com o resultado, especialmente na imprensa e nas redes sociais.
Manifestações diárias deste sentimento podemos encontrar em mensagens e artigos carregados de ira, preconceitos e intolerância que circulam em colunas, editoriais, blogs, celulares, facebooks, twitters e que tais, nas velhas e nas novas mídias impressas e eletrônicas, por toda parte _ hoje como ontem, os mais estridentes redutos do que sobrou da oposição radical. Não são tantos como pensam, mas fazem muito barulho.
Um exemplo patético do que pensa este tipo de eleitor derrotado é o inacreditável artigo publicado domingo na Folha de S. Paulo pelo poeta Ferreira Gullar, sob o título “Ah, se não fosse a realidade!”. De fato, se não fosse a realidade das urnas, ele talvez estivesse hoje mais feliz, menos amargo, escrevendo novos versinhos, mas o voto digitado não tem volta e os resultados oficiais já foram proclamados pelo TSE.
A começar pelo trecho destacado no texto _ “Ninguém imagina que Lula deixe dona Marisa em São Bernardo para instalar-se na alcova de Dilma” _ Gullar destila sua bílis num panfleto carregado de ódio e desrespeito, que não deve fazer bem a quem o escreve, muito menos a quem o lê num final de tarde de domingo como aconteceu comigo.
Viúvo do comunismo de resultados de Roberto Freire, o octogenário poeta ganhou destaque na reta final da campanha eleitoral como uma espécie de líder dos intelectuais de oposição, encabeçando manifestos e abaixo-assinados “em defesa da democracia e da vida”, como se ambas estivessem ameaçadas.
Fez o que pode e o que não pode, como se pudesse, para impedir a vitória de Dilma Rousseff, candidata de um governo que ele abomina desde que tomou posse, em 2003. Por isso, ele até hoje simplesmente não aceita a derrota.
“De fato, como acreditar que uma mulher que nunca se candidatara a nada, destituída de carisma e até mesmo de simpatia, fosse capaz de derrotar um candidato como José Serra, dono de uma folha de serviços invejável, tanto como parlamentar quanto como ministro de Estado, prefeito e governador?
Não obstante, aconteceu (…)”
Gullar faz parte do elenco fixo de intelectuais e “ólogos” em geral sempre requisitados pela imprensa para escrever artigos ou dar entrevistas contra o governo Lula, a presidente eleita e o PT. Até hoje, tem gente que não admite e não se conforma com as vitórias de Lula em 2002 e 2006, e muito menos com a de Dilma este ano.
Premiado porta-letras de um setor da sociedade que o venera nos saraus dos salões elegantes, o poeta é figurinha carimbada, mas agora é hora de renovar o plantel, pois ninguém vai conseguir ler sempre os mesmos lamentos e insultos por muito tempo.
Na semana passada, a mesma Folha recolheu do anonimato dois articulistas do melhor estilo “neocon”, que atribuem aos feios, sujos e malvados as razões de todas as nossas desgraças, e os abrigou em sua terceira página.
Primeiro, foi um rapaz chamado Leandro Narloch. Em seu breve currículo, ele informa já ter trabalhado na Veja e que é autor do livro “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”. Sob o título “Sim, eu tenho preconceito”, ele escreveu um texto em defesa da elite branca de Cláudio Lembo e da moça que culpou os nordestinos pela derrota e sugeriu o afogamento deles como solução. É mais um autor “neocon” em busca de um nicho de mercado dominado por “oldcons”.
Pouco importa que, mesmo sem os votos do Norte-Nordeste, Dilma tivesse vencido as eleições do mesmo jeito, com mais de 1,3 milhão de votos de vantagem. A tese dos neocons é que os pobres, doentes e iletrados das “regiões mais atrasadas” ganharam dos sábios, saudáveis e abonados do Sul-Sudeste maravilha, o que para eles é inconcebível.
A segunda a entrar em cena foi a professora doutora Janaina Conceição Paschoal, apresentada ao público como professora associada (de quem?) de Direito Penal na gloriosa Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Na mesma linha, ela publicou o artigo “Em defesa da estudante Mayara” e colocou a culpa pela explosão do “racismo regional” em Lula.
Enquanto a oposição procura juntar os cacos e entender o que aconteceu, sem a participação do seu líder derrotado, que sumiu do mapa e fez apenas uma fugaz e infeliz aparição no Sul da França, o noticiário pós-eleitoral se concentra nas muitas crises entre os partidos aliados na disputa por cargos no novo governo e no superdimensionamento de problemas administrativos enfrentados pela administração federal.
Pelo jeito, boa parcela do eleitorado mais conservador continua sem lideranças na representação político-partidária e no movimento social, embora tenha mostrado sua força na recente eleição, o que leva bispos, poetas, pastores e setores da imprensa a exercer este papel cada vez com maior furor.
Como dizia um velho jornalista dos meus tempos de Estadão, o mestre Frederico Branco, ainda nos anos 60 do século passado: eles não aprendem, não esquecem e não perdoam.
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