Atribulado pela memória das desordens monetárias e cambiais dos anos 20 e 30 do século passado, Keynes, delegado da Inglaterra em Bretton Woods, propôs a Clearing Union, uma espécie de Banco Central dos bancos centrais. A Clearing Union emitiria uma moeda bancária, o bancor, destinada exclusivamente a liquidar posições entre os bancos centrais. Os negócios privados seriam realizados nas moedas nacionais que, por sua vez, estariam referidas ao bancor mediante um sistema de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis. Os déficits e superávits dos países corresponderiam a reduções ou aumentos das contas dos bancos centrais nacionais (em bancor) junto à Clearing Union.
O plano apresentado por Keynes buscava uma distribuição mais equitativa do ajustamento dos desequilíbrios de balanço de pagamento entre deficitários e superavitários. Isto significava, na verdade - dentro das condicionalidades estabelecidas - facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os países superavitários. O propósito de Keynes era evitar os ajustamentos deflacionários e manter as economias na trajetória do pleno emprego. Ele imaginava, ademais, que o controle de capitais deveria ser "uma característica permanente da nova ordem econômica mundial".
Mas a utopia da "moeda supranacional" foi derrotada pelo arranjo internacional proposto pelo Estado americano, então superavitário e detentor de mais de 60% das reservas-ouro. Tratava-se, como é óbvio, de preservar o privilégio da seignoriage. Assim, a supremacia do dólar, já no imediato pós-guerra, impulsionou a transnacionalização da grande empresa, a ampliação e a reorientação dos fluxos de comércio, ao promover o investimento "cruzado" entre os mercados dos países industrializados e suscitar a redistribuição geográfica da produção manufatureira para a periferia.
A "metástase" do sistema industrial dos países desenvolvidos, particularmente do americano, foi revigorada pela onda da liberalização financeira e comercial deflagrada nos anos 80 e ganhou força redobrada na década dos 90. Desde então, o investimento manufatureiro concentrou-se na China e na Ásia emergente. A "competitividade" chinesa tornou-se um tormento para os rivais, tanto nos setores menos qualificados tecnologicamente, quanto, em ritmo acelerado, nas áreas de tecnologia mais sofisticada. O país tornou-se grande receptor do investimento direto americano, europeu e japonês e, ao mesmo tempo, ganhou participação crescente no mercado de bens finais, peças e componentes dos Estados Unidos e Europa.
A redistribuição espacial da indústria manufatureira ampliou os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa, bem como favoreceu o avanço da chamada globalização financeira. Os EUA foram capazes de atrair capitais para cobrir os déficits em conta corrente e, assim, mantiveram taxas de juros baixas, dólar valorizado, importações baratas e calmaria inflacionária. A ampliação dos déficits em conta corrente dos EUA teve como contrapartida a rápida acumulação de reservas nos países emergentes - nos manufatureiros e nos exportadores de commodities, aí incluídos os petroleiros. Utilizadas na compra de ativos americanos, as reservas dos "poupadores" ensejaram a espantosa expansão do crédito, fomentaram a inflação de ativos e estimularam o consumo das famílias. A virtude da temperança incitou os destemperos da finança que levaram à crise.
Quando eclodiu a crise financeira, os analistas passaram a buscar os "culpados" pelo desastre. Os partidários dos desajustes entre poupança e investimento repartem a responsabilidade pelos desequilíbrios globais entre dois vícios simétricos: os americanos poupam menos do que investem; os superavitários (sobretudo, os asiáticos - não só a China, mas também o Japão e outros menos votados) investem menos do que poupam. Os que acusam os superavitários de manipular a taxa de câmbio sublinham a importância das estratégias de crescimento dos parceiros emergentes, impulsionadas pela expansão das exportações, ancoradas nas moedas subvalorizadas.
Essa busca de "individualização" de responsabilidades obscurece o mais importante: o caráter "fundamental", constitutivo, dos ditos desequilíbrios globais (bem como dos "excessos" da finança) na determinação das "leis" que regeram o modo de crescimento da economia global nas últimas décadas.
Não é demasiado repetir que, nos últimos 30 anos, ocorreram profundas transformações na morfologia e na dinâmica da economia mundial. Ganharam força três movimentos simultâneos: 1) o avanço da internacionalização financeira escorada na desregulamentação e na abertura das contas de capital urbi et orbi; 2) a aceleração da reestruturação produtiva, mediante as fusões e aquisições e o direcionamento dos fluxos de investimento direto para as regiões de menor custo; 3) as mudanças importantes, daí decorrentes, na divisão internacional do trabalho e nos padrões de comércio.
As transformações financeiras foram acompanhadas, como é sabido, de mudanças na estratégia global da concorrência entre as empresas dominantes, com implicações sobre a natureza e a direção do investimento direto estrangeiro e do progresso técnico. Não se trata apenas de reafirmar a importância crescente do comércio intrafirmas, mas de destacar o papel decisivo do "global sourcing", fenômeno que está presente, sobretudo, nas estratégias de deslocalização e de investimento que alentaram a competitividade da grande empresa e, de quebra, ensejaram o crescimento exuberante das economias asiáticas, a China em particular. Os "desequilíbrios" estão no DNA do exuberante movimento de expansão do capitalismo do final do século XX e da primeira década do Terceiro Milênio. Dificilmente serão revertidos mediante um realinhamento entre o yuan, o dólar e o euro.
Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Escreve mensalmente às terças-feiras, excepcionalmente nesta quarta-feira.
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