Não, eu também não li todo o processo do mensalão.
Mas o que li me deixou satisfeito ao ver o voto de Ricardo Lewandowski.
Ele enfrentou as complicações, incongruências e fraquezas de um processo que é menos claro, mais contraditório do parece.
A colocação de Lewandowski ajudou a lembrar o mais importante. Revelou que está em curso um processo perigoso de criminalização da política brasileira, e que o risco é se falar em voltar ao “como era antes”. Antes, claro, é o tempo em que não havia eleição, o regime militar.
Após anos de transformações e progressos, pequenos demais do ponto de vista da história e do país real, mas bem razoáveis do ponto de vista do que se fizera nas décadas recentes, a política brasileira pode evoluir para seu Thermidor.
Explico. Thermidor foi aquele período conservador da revolução francesa, quando os ricos recuperaram privilégios, a democracia foi enfraquecida e, pouco a pouco, o poder político transformou-se numa ditadura. No fim, restaurou-se o império. A aristocracia recuperou direitos e conseguiu impedir o avanço das mudanças, ao se reconciliar com a burguesia contra o povo, num processo muito bem estudado por Arno Meyer em A Força da Tradição. As eleições se tornaram duas vezes indiretas. Os candidatos passavam por uma assembleia e depois eram referendados por uma segunda. O direito de voto retornou aos muito ricos.
No caminho de Thermidor encontrou-se Robespierre e o Terror. Foi uma fase de tal violência política que fez a França de 1792-1994 ficar parecida com o Camboja após a vitória de Pol Pot.
A taxa demográfica do país que havia criado o iluminismo e os direitos do homem chegou a ficar negativa em função de execuções e mortes sumárias, todas por motivação política, sem direito a um julgamento. E tudo isso em nome do…combate à corrupção.
Foi um período tão terrível que ali se empregou, talvez pela primeira vez, a noção de que em política existe o Mal Necessário. Muitos de nós aprendemos a procurar aspectos positivos na figura de Robespierre, o Incorruptível, por causa dessa visão.
O Terror foi recuperado mais de um século depois, quando ninguém estava vivo para contar a história. Muitos pensadores passaram a acreditar – as vezes sinceramente – que toda mudança profunda passa pela existência de uma ditadura, de um período de violências brutais e incontroláveis, que seriam inevitáveis para limpar os desmandos e abusos incuráveis de uma época histórica anterior.
Essa noção alimentou a velha ditadura do proletariado que seria desenvolvida por Lenin e consumada, em seus aspectos mais horripilantes, por Stalin. Mas também teve, ao longo do tempo, vários adeptos de outra origem.
A experiência mostrou que essa visão estava errada.
Confirmou, primeiro, que a democracia é superior aos outros regimes. Segundo, que a maioria da população é a maior interessada nos regimes democráticos, pois é ali que pode fazer valer seus direitos e exercer um dos essenciais, que é a liberdade.
Apoiado até o fim da vida pela madrinha neoliberal Margareth Thatcher, o golpe de Augusto Pinochet no Chile era isso, diziam seus aliados de 1971 – uma cirurgia, um mal destinado a durar pouco.
O golpe de 64 prometia defender a democracia e dizia querer impedir uma “republica sindicalista” acusação que tem lá seu parentesco com algumas denúncias que de vez em quando foram jogadas contra o governo Lula. Durou 20 anos mas nasceu como um curtíssimo mal necessário para acabar com a corrupção e a subversão – valores que, com todas as adaptações e atualizações necessárias, também retratam o inferno de quem avança o Thermidor em 2012.
O horizonte do processo em curso, nós sabemos, é 2014. Não é conspiração, embora não faltem pretendentes. Muitos personagens se repetem, outros são novos. Nem tudo depende da vontade das pessoas. É um curso histórico, uma correnteza. Resta saber até onde irá.
As denúncias de corrupção não são uma campanha golpista. Pelo amor de Deus! Há que se criminalizar o crime, como lembrou alguém. Os culpados devem ser apontados, denunciados e punidos. Os espertalhões desmoralizam a política, envergonham. Seu papel é alugar o estado a quem paga mais.
Mas não vale forçar a barra – que é o caminho do mal necessário.
Não vale fingir, por exemplo, que somos impolutos, corajosos, incorruptíveis, depois de liberar o mensalão do PSDB-MG para a justiça comum.
Não vale fingir que o encontro do calendário do mensalão e da eleição é simples coincidência – se fosse, poderia ter sido evitada — ou, o que me parece espantoso, achar muito bom que essa coincidência tenha ocorrido.
Não vale desconsiderar, nessa altura do campeonato, que Roberto Jefferson falou tudo e um pouco mais, a favor e contra. Chegou a dizer que o mensalão não existia. Também disse que, quando informou José Dirceu do que acontecia, este reagiu com socos na mesa e criticou Delubio porque fazia aquilo que não devia. (Está lá, nas entrevistas à Folha). E também disse o contrário. Está no direito dele, que fez o possível para se defender. Só não precisamos achar que tudo o que diz é verdade. Mesmo a palavra “delator” dá a Jefferson uma verossimilhança exagerada. Pressupõe uma coerência que ele não tem.
Também não vale dizer que o destino do dinheiro é irrelevante e passar o julgamento inteiro dizendo que foi “compra de votos” e mesmo “suborno.” Se não tem importância, por que é preciso insistir nisso?
Seria mais fácil admitir que não sabemos como o dinheiro foi empregado e que, muito possivelmente, a maior parte foi gasta no pagamento de verbas de campanha, por mais que seja chato admitir isso.
Pois é: num caso de 40 corruptos, que tanta gente comparou a Ali Babá, não aparece nenhum “politico” que tenha ficado rico. Ninguém. Nenhuma quebra de sigilo indicou qualquer coisa anormal.
Podemos até imaginar que o esquema – com falhas risíveis de logística que ocorreu até da polícia parar um emissário de Valério porque suspeitava do carregamento exagerado de dinheiro em sacos de papel – fosse tão perfeito que cada centavo maquiavelicamente desviado, hoje faça companhia aos dólares de tantos bacanas na Suiça, no Caribe e outros paraísos fiscais.
Até o cara que quer ganhar o Loas para matar a fome e foi absolvido por não ter dinheiro para advogado deve ter sua graninha em Genebra, certo? Mas estamos supondo.
Sabe por que isso seria importante? Porque daria clareza a discussão, a entender os problemas. Daria racionalidade.
Evitaria o ambiente de intimidação, denunciado por mestres como Jânio de Freitas.
O esforço para deixar o dinheiro longe das campanhas e perto da “compra de votos” no Congresso já envolve afirmações dispensáveis. Já se disse, por exemplo, que o fato de muitas despesas terem sido feitas em 2003, ano sem eleições, prova que seu destino não era eleitoral. É supor na direção errada.
Basta ler a denuncia de Antônio Fernando de Souza, que falava, em toda sua fúria, em “dívidas pretéritas.” Embora falasse em “compra de votos” também admitia que uma parcela fora gasta em despesas de campanha. Não era assim categórico, absoluto.
É difícil negar que estamos no mundo da política. Eleição é aposta e e quem aposta deixa dívidas.
Também acho que não vale dizer que o importante é o contexto e depois render-se a uma assinatura.
Porque a assinatura de um empréstimo – modestíssimo – de 3 milhões de reais que é o argumento principal para condenar José Genoíno por sei lá quantos crimes. Não custa reparar: considerando o montante do mensalão, há o risco do empréstimo de Genoíno ser o único dinheiro limpo e honesto da história.
Porque seu contexto é o da política, lembra Lewandowski. Presidente do PT, Genoíno faz reuniões, articula, discute.
“Não sabe o que é dinheiro,” diz Waldemar Costa Neto, que sabe.
Mas não. No Thermidor 2014, é preciso criminalizar a política. Não é de todo absurdo. Sabe por que? Porque do ponto de vista histórico, a política democrática do Brasil já nasceu na porta do crime, na porta da cadeia. Apesar das proclamações em dias de festa, cedo ou tarde é preciso dar um jeito de colocar os “políticos” (entre aspas) naquele lugar de onde nunca deveriam ter saído. Porque toda vez que os “políticos” ficam soltos, eles começam a querer ganhar votos, a fazer demagogia. Mostram desvios populistas, questionam as coisas e logo viram subversivos, não é mesmo? Veja só: até os danados do PP deixaram a aliança com o PSDB e foram apoiar propostas do governo Lula, como a reforma da previdência, a tributária…
Há, no fundo, uma visão autoritária na ideia de “compra de votos.” Você seleciona aquilo que os políticos podem fazer e o que não podem. Traça um limite – que você define qual é – para os acordos políticos. Quem passou o limite “vendeu” consciência. Desculpe a palavra, mas isso é barbárie. Quem controla o partido é o eleitor.
Imagino uma tabela: o pessoal do PSDB – que teve um namorico no início do governo Lula – pode pegar na mão da noiva. A turma do PTB, como disse Jefferson, entra pela porta dos fundos, porque ali a barra é mais pesada. Já o PP vai para o banco de trás do carro.
Não custa lembrar: com toda aquela campanha antidemocrática do pré-golpe de 64, o povo queria as reformas de base. Dizia isso no Ibope e onde mais lhe perguntavam. Sem o golpe, Juscelino entraria em 65 como favoritíssimo… E com JK, claro, viria o populismo, o inflacionismo gastador, e assim por diante. Na primeira eleição depois do golpe, o governo militar sofreu derrotas tão feias que cancelou pleitos diretos para governador. Depois, para prefeitos de capital. Também resolveu impedir o Congresso de mexer no orçamento. Dizia que os “políticos” gostavam de fazer fonte em pracinha e não tinham noção dos graves problemas da pátria.
Apesar da orientação claramente adversa da maioria dos meios de comunicação em 2002, 2006 e 2010, os adversários de Lula não conseguiram competir de verdade. Nenhuma vez.
E as pesquisas eleitorais de 2014? Nem é bom falar.
Mas há o Thermidor.
A corrupção pode ser usada como arma política. Desde que a denúncia seja aplicada seletivamente.
Vamos fazer um pouco de sociologia.
Sem o menor interesse em permitir e muito menos estimular a politização e organização das “classes subalternas,” como dizem os sociólogos, sempre se sonegou aos partidos políticos os meios necessários para pagar as contas, organizar e formar seus quadros, manter locais públicos para reuniões, financiar sua imprensa e assim por diante. Estes meios deveriam vir do Estado, obviamente, como em tantos países civilizados. (Menos, obviamente, nos Estados Unidos, onde se diz seriamente que Obama é comunista, a Suprema Corte empossou um presidente que fraudou eleições na Florida, em 2000, e agora o Tea Party disputa a Casa Branca. Com chances.)
No Brasil, onde até 2003 a distribuição de riqueza permitia a 1% da população embolsar uma fatia da renda superior aos 50% mais pobres, nossa lei eleitoral já nasceu para criminalizar quem não era amigo do patamar de cima. Uma lei que só autoriza doações de indivíduos e empresas privadas contém uma orientação social – e portanto política — tão descarada e absurda que, recentemente, os partidos tiveram o bom senso de garantir acesso a uma certa quantia nos cofres públicos, proporcional a seu peso eleitoral.
Mas o principal seguiu como antes: é o poder econômico privado que domina as campanhas eleitorais. E aí nos chegamos ao mensalão, a 2002 e 2003. (E 2004. Olha aí, mais um quatro…) E é porque aluga o poder de Estado, quer licitações amigas, que o poder privado mantém a lei como está e diz que toda mudança é uma forma de populismo-estatizante. Mantém-se, assim, um universo de sombra, uma zona de gatos pardos, favorável a se fazer qualquer coisa – como em todo lugar onde o jogo não é claro e a prestação de contas é uma fantasia.
O problema é que os donos das campanhas eleitorais fizeram a aposta errada em 2002. Apostaram em todos os cavalos na esperança de derrotar a grande barbada, que era Lula. Até especuladores internacionais saíram a campo para bater forte em Lula.
Exatamente o partido vencedor chegou ao fim da campanha de cofres vazios.
Não vamos ser totalmente ingênuos. Sempre ocorrem desvios e é possível que eles tenham se repetido com os petistas em 2002. Vamos dar de barato que isso aconteceu, o que não muda a realidade. A contabilidade do partido estava à míngua no segundo turno e no início do governo. E era preciso arrumar dinheiro.
Foi isso que abriu o caminho para Marcos Valério, o ex-futuro bilionário de Curvelo, cidade tão querida por minha família, também. Claro que alguns colunistas podem desejar um personagem mais bem apessoado, digamos assim. Faltava ao aventureiro tucano-petista o lastro político, a cultura e tradição militante de outros tesoureiros, tão bem sucedidos em suas operações…
Mas, como se aprende na faculdade, e também em conversas de botequim, em algum lugar os vínculos do PT com suas raízes populares tinham de aparecer, certo…? Ao contrário de outros personagens do submundo do alto mundo, Valério tinha toda pinta de arrivista, de novo-rico, e isso é imperdoável num país em que muitos procuram um sobrenome para entrar no clube da Força da Tradição. Quem sabe nas próximas gerações, se for possível passar por Thermidor e recrutar tesoureiro petistas em Harvard …
É fácil enxergar o contexto, concorda?
Nenhum comentário:
Postar um comentário