As milícias em benefício próprio
descobriram como barganhar com a vida dos brasileiros e ganhar adeptos
manipulando o medo e o ódio
Cena de interior II, da artista Adriana Varejão: obra estava exposta na mostra 'Queer Museum – Cartografia da Diferença na Arte' em Porto Alegre. Divulgação |
O
fechamento da mostra Queer Museum – Cartografia
da Diferença na Arte Brasileira aponta a crescente articulação entre
setores da política tradicional e milícias como o Movimento Brasil Livre (MBL).
Essa articulação está desenhando o Brasil deste momento – e poderá ter muita
influência na eleição de 2018. Nesta coligação não formalizada, velhas táticas
ganham aparência de novidade pelo uso das redes sociais, com enorme eficiência
de comunicação. É velho e novo ao mesmo tempo. A vítima maior não é a arte ou a
liberdade de expressão, mas os mesmos de sempre: os mais frágeis, os primeiros
a morrer.
A
exposição era exibida desde 15 de agosto, em Porto Alegre, no Santander
Cultural. Contava com obras de artistas brasileiros de diversas gerações, como
Cândido Portinari, Alfredo Volpi, Ligia Clark, Leonilson e Adriana Varejão. É
justamente de Varejão uma das obras mais atacadas: “Cenas do interior 2” tem
quatro imagens de atos sexuais, incluindo sexo com um animal. Outra obra
demonizada foi a de Bia Leite, que expôs desenhos baseados em frases e imagens
do Tumblr “Criança Viada”, que reúne fotos enviadas por internautas deles
mesmos na infância. Liderados por milícias como o MBL, pessoas começaram a ofender
o público da mostra e a acusar os artistas de promover a “pedofilia”, a
“zoofilia” e a “sensualização precoce de crianças”. As milícias também
promoveram um boicote ao banco. O Santander recuou, e a exposição, que deveria
se estender até outubro, foi encerrada.
O
MBL, uma das milícias que lideraram os ataques à exposição, foi um dos
principais articuladores das manifestações contra o PT e pelo impeachment de
Dilma Rousseff, que levaram às ruas milhões de brasileiros vestidos de amarelo.
Na ocasião, sua bandeira era a luta contra a “corrupção”. E propagavam ideias
“liberais”. Como bem apontou Pablo Ortellado, em sua coluna na Folha de S.
Paulo, o MBL descobriu que “as chamadas ‘guerras culturais’ eram um ótimo
instrumento de mobilização e que por meio do discurso punitivista e contrário
aos movimentos feminista, negro e LGBTT podiam atrair conservadores morais para
a causa liberal”. Passaram então a gritar contra as cotas raciais, o aumento do
encarceramento (num país em que a maioria dos presos é composta por negros) e
um projeto que espertamente foi batizado de “Escola Sem Partido”.
Mas
qual é o contexto e o que o MBL e outras milícias semelhantes defendem? Se este
tipo de grupo se formou erguendo a bandeira da “anticorrupção” e não promove
nenhuma manifestação nas ruas contra um presidente denunciado duas vezes e um
dos governos mais corruptos da história do Brasil, é possível levantar a
hipótese bastante óbvia de que a “corrupção” nunca foi o alvo.
Quando
são citados na imprensa, MBL e assemelhados são tachados de “conservadores” e
“liberais”. Isso os coloca sempre num polo contra outro polo, o que é essencial
para este tipo de milícia sobreviver, se replicar e agir em rede. E dá a estas
milícias uma consistência que não condiz com a realidade de seu conteúdo.
Liberais de fato jamais tentariam fechar uma mostra de arte, para ficar apenas
num exemplo. Nem faz sentido dizer que são “conservadores” ou mesmo de
“direita”. Eles são o que lhes for conveniente ser.
A
dificuldade de nomear o que são, é importante perceber, os favorece. E acabam
se beneficiando de rótulos aos quais lhes interessa estar associados num
momento ou outro e que lhes emprestam um conteúdo que não possuem, mas do qual
sempre podem escapar quando lhes convêm. Neste sentido, apesar de exibirem como
imagem um corpo compacto, essas milícias são fluidas. Embora ajam sobre os
corpos, não há corpo algum. Isso lhes facilita se moverem, por exemplo, da luta
anticorrupção para as bandeiras morais, agora que não lhes interessa mais
derrubar o presidente.
O
que se pode afirmar sobre milícias como o MBL é que elas têm um projeto de
poder – ou têm um poder que pode servir a determinados projetos de poder. O
poder destas milícias está em mostrar que são capazes de se comunicar com as
massas e, portanto, de influenciar tanto eleitores quando odiadores, num
momento histórico em que estas duas identidades se confundem. E este é um
enorme poder, que claramente tem sido colocado a serviço de políticos e de
partidos tradicionais. Além e principalmente, claro, de a serviço de seu
próprio benefício.
A
descoberta de que temas “morais” são uma excelente moeda de barganha não é
prerrogativa do MBL e de seus assemelhados. Esta moeda sempre esteve em
circulação. Na Nova República, que se seguiu à ditadura civil-militar
(1964-1985), ela esteve na primeira eleição presidencial da redemocratização,
quando Fernando Collor de Mello, que depois se tornaria o primeiro presidente a
sofrer impeachment, usou fartamente contra Lula o fato de que ele tinha uma
filha de uma relação anterior ao seu casamento com Marisa Letícia e que teria
sugerido um aborto à então namorada.
Mas
o marco fundador do que vivemos hoje pode ser localizado bem mais tarde, na
eleição de 2010. Naquele momento, ao perceber o potencial eleitoral do crescimento
dos evangélicos no Brasil, em especial dos neopentecostais, alguns oportunistas
perceberam que jogar o tema do aborto no palanque poderia ser conveniente.
Tanto para conquistar o voto religioso quanto para derrubar opositores.
No
final do primeiro turno de 2010, a internet e as ruas foram tomadas por uma
campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma Rousseff era “abortista” e
“assassina de fetos”. Rousseff começou a perder votos entre os evangélicos e
parte dos bispos e padres católicos exortou os fiéis a não votar nela. José
Serra (PSDB) empenhou-se em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas,
determinando o rumo da campanha dali em diante. E Rousseff correu a buscar o
apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente
contra o aborto”. Nela, comprometia-se, em caso de vencer a eleição, a não
propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema.
Quem
peregrinou por templos evangélicos defendendo Rousseff e garantindo que ela era
contra o aborto foi justamente Eduardo Cunha (PMDB), que depois lideraria o
processo de impeachment da presidente eleita e hoje está preso. Naquele
momento, o debate político, que nas eleições anteriores tinha se mantido dentro
de certos parâmetros éticos, foi rebaixado. E os oportunistas religiosos e não
religiosos farejaram que estes eram o temas com que poderiam garantir vantagens
para si mesmos e para seus grupos, traficando-os no balcão de negócios de
Brasília. Quando os limites são superados, mesmo aqueles que promoveram a sua
superação não são capazes de prever até onde isso pode chegar. Desde então, o
corpo de mulheres e de gays, lésbicas, travestis e transexuais tornou-se uma
das principais moedas de barganha eleitoral.
As
milícias rapidamente compreenderam esse potencial. Seu trunfo é comprovar que
podem levar as massas para onde quiserem, o que as torna valiosas para
políticos com grandes ambições eleitorais e valiosas para seus líderes com
ambições eleitorais. Mas só podem levá-las porque se comunicam com uma
população que se sente cada vez mais insegura e desamparada e que é a primeira
a sofrer com a crise econômica e a crescente dureza dos dias sem saúde, sem
escola, sem serviços básicos, enquanto assiste a um noticiário que é quase todo
ele sobre malas de dinheiro da corrupção. Uma população que há anos tem sido
treinada por programas policialescos/sensacionalistas na TV que atribuem todas
as dificuldades a facínoras à solta, adestrando-a a ver as mazelas da vida
cotidiana como culpa de alguém que pode e deve ser eliminado – e não a uma
estrutura mais complexa que a mantém cimentada no lugar dos explorados.
As
milícias compreendem o potencial desse medo e desse ódio. E sabem se comunicar
com esse medo e esse ódio. Encontraram o canal, o ponto a ser tocado.
Encontrado o canal, o inimigo pode ser mudado conforme a conveniência. Se agora
não interessa derrubar o presidente denunciado por corrupção, há que se
encontrar um outro alvo para canalizar esse ódio e esse medo e manter o número
de seguidores cativos e, de preferência, crescendo, atingindo públicos mais
amplos. E, principalmente, manter o valor de mercado das milícias em alta, em
especial às vésperas de uma campanha eleitoral das mais imprevisíveis.
Assim,
testemunhamos um fenômeno de ilusão na semana passada. O problema do Brasil já
não era a desigualdade nem a pobreza que voltou a crescer. Nem mesmo o desemprego.
Nem a crescente violência no campo e nas periferias promovidas em grande parte
pelas próprias forças de segurança do Estado a serviço de grupos no poder. Nem
o desinvestimento na saúde e na educação. Nem a destruição da floresta
amazônica e o ataque aos povos indígenas e quilombolas pelos chamados
“ruralistas”. Nem projetos que mexem em direitos conquistados na área
trabalhista e da previdência sendo levados adiante sem debate por um governo
corrupto. Não.
De
repente, na semana passada, o problema do Brasil tornou-se, para milhões de
brasileiros, a certeza de que o país é dominado por pedófilos e defensores do
sexo com animais. Agora, são artistas que devem ser perseguidos, presos e até,
como se viu em algumas manifestações nas redes sociais, mortos. E não só
artistas, mas também quadros e peças de teatro. O problema do Brasil é que
pedófilos querem corromper as crianças e transgêneros querem destruir as
famílias.
Assim
como pouco antes o problema do Brasil era o fato de os negros, maioria da população,
passarem a ter o acesso à universidade ampliado por ações afirmativas. E o
problema do Brasil seria uma suposta doutrinação partidária nas escolas – e não
a falta de investimento em educação e o salário de fome dos professores e as
escolas caindo aos pedaços. Com esse truque de ilusionismo coletivo se desvia
da necessidade de mudar algo muito mais estrutural em um dos países mais
desiguais do mundo.
O
prejuízo causado pelo ataque à exposição de arte é menos a questão da censura e
do cerceamento da liberdade de expressão, como foi colocado por parte dos que
reagiram contra o fechamento da mostra, e mais o apagamento que ataques como
este ajudam a produzir e a perpetuar. Como o número assombroso de homossexuais
assassinados e de estupros de mulheres no país. Para lembrar: segundo o Grupo
Gay da Bahia, que documenta a violência produzida por homofobia, só neste ano
251 pessoas foram assassinadas por sua orientação sexual. No ano passado,
ocorreram 343 assassinatos. Os crimes por homofobia vêm crescendo: entre 2005 e
2014 foram 2181 homicídios e, apenas entre 2015 e 2017, já são 3093. Em 2014,
metade dos casos registrados de transfobia letal no mundo ocorreu no Brasil.
Este massacre, este que é real, este que se dá sobre os corpos de pessoas, este
não produz nenhum protesto ou comoção.
A
cada hora, no Brasil, cinco mulheres são estupradas. Isso significa que,
enquanto você lê este texto, pelo menos uma mulher já sofreu ou está sofrendo
um estupro. E isso são apenas os casos documentados. A estimativa, segundo
estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), é de que apenas 10%
dos estupros são registrados pela polícia. Assim, o número verdadeiro seria de
mais de meio milhão de estupros por ano no Brasil. Este massacre, este que é
real, este que se dá sobre os corpos de pessoas, este não produz comoção no
país.
Ao
denunciar a arte e os artistas como “pedófilos”, o que se produz é o apagamento
de um fato bastante incômodo: o de que a maioria das crianças violadas é
violada por familiares e conhecidos. Pelo menos um quarto dos casos de violação
de crianças tem como autor pais e padrastos. Ocorre, portanto, naquilo que a
bancada da Bíblia tenta vender como a única família possível, formada por um
homem e por uma mulher.
Essa
mesma estratégia faz com que a guerra contra as cotas raciais torne ainda mais
invisível o horror concreto: o genocídio da juventude negra e pobre. E o
“Escola Sem Partido” desloca o problema real, o desinvestimento na escola
pública, justamente a que abriga os mais pobres, para um falso problema, a
suposta doutrinação política. E assim, com os males reais sendo invisibilizados
e apagados, tudo continua como está. E aqueles que gritam seguem cimentados na
mesma posição na pirâmide social.
O
fato de que as mais recentes ofensivas sejam contra a cultura não é um dado
qualquer. É também por movimentos culturais surgidos nas periferias do país e
apoiados por programas públicos, especialmente nas gestões de Gilberto Gil e de
Juca Ferreira, que uma juventude politizada fortaleceu sua atuação. É também
nas artes e na literatura que se encontra a maior possibilidade de ampliação
das subjetividades. E é a subjetividade que nos ajuda a compreender o mundo em
que vivemos para além do que nos é dado para ver.
E
isso também não é um detalhe: para as milícias seguirem arregimentando
eleitores e odiadores é preciso que a compreensão do mundo siga literalizada –
ou seja, sem a possibilidade de recursos como metáforas, ironias e invenções de
linguagem. Nesse ritmo, daqui a pouco, quando alguém disser coisas como “boca
da noite”, um outro vai rebater com a afirmação de que “noite não tem boca”. É
também isso que aconteceu quando muitos olharam para a exposição e só
literalizaram o que viram lá, bloqueados em qualquer outra possibilidade de
entrar em contato com seus próprios sentidos e realidades inconscientes.
Se
os programas policialescos/sensacionalistas de TV desempenharam e desempenham
um papel fundamental para a compreensão simplista do Brasil e dos problemas do
Brasil, ao eleger um “culpado” individualizado, sem tocar em questões de
desigualdade racial e social e questões de acesso a direitos básicos como a
própria justiça, as igrejas evangélicas neopentecostais cumpriram e cumprem o
papel de literalizar a linguagem. Há gerações sendo formadas na interpretação
literal da Bíblia, para muitos o único livro que leem. O que milícias como MBL
perceberam é a possibilidade de manipular essa mesma matéria-prima,
arregimentando massas já bem treinadas em enxergar inimigos e literalizar a
linguagem.
Há
um ponto nesse episódio que é revelador de onde milícias como MBL querem
chegar. É o ponto de encaixe. As milícias sempre vociferaram contra os
“vândalos” e “desordeiros” que quebravam fachadas de bancos em protestos
contrários à sua bandeira de ocasião. Desta vez, aparentemente investiram
contra o Santander, um dos maiores bancos do mundo, ao pregar um boicote. Mas
não era contra o Santander, e sim contra o fato de uma exposição que afirmaram
ser de “apologia à pedofilia e à zoofilia” ter sido financiada por dinheiro de
renúncia fiscal via lei Rouanet. O verdadeiro alvo do ataque é o investimento
de dinheiro público em cultura. Se a lei Rouanet tem problemas e pode ser
aprimorada, ela significou um investimento importante numa área sempre relegada
e que tem sofrido enormemente no atual governo.
Neste
ponto, vale a pena perceber quais são os candidatos que apoiam e são apoiados
por milícias como o MBL. Em São Paulo, João Doria Jr (PSDB), o político cuja
política é se dizer não político. Volta e meia são postadas nos sites das
milícias as fotos de Doria serelepando pelo Brasil em seu jatinho particular.
Nestes posts, é enaltecido o fato de que ele não gasta dinheiro público para se
locomover “a serviço de São Paulo”.
Os
milhares que apertam a tecla de “curtir” esse tipo de mensagem podem não
perceber que se propagam ali duas ideias que prejudicam a maioria da população:
1) que só ricos podem ser eleitos; 2) que o investimento de dinheiro público é
ruim para o Brasil, quando justamente é fundamental para combater a
desigualdade e garantir o acesso a direitos básicos que se invista em saúde,
educação e transporte público, entre outros temas prioritários. A ideia de que
todo investimento público é suspeito ou será desviado para a corrupção é
bastante conveniente para políticos e candidatos da política tradicional a
serviço do mercado. Quanto menos o Estado atuar e investir em áreas
estratégicas para a vida cotidiana e a qualificação da população, há mais
espaço para negócios que só crescem pela sua ausência.
Outro
exemplo é o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Jr, também do PSDB,
notório apoiador e apoiado pelo MBL. A nota do Santander Brasil foi publicada
na página oficial do prefeito, com a afirmação de que “a exposição mostrava
imagens de pedofilia e zoofilia”. Horas depois, foi apagada. A milícia
desempenhou um papel importante em sua vitória na última eleição. E é para a
eleição de 2018 que o MBL vem ensaiando lances cada vez mais ousados, como o da
exposição, que pode ter levado alguns de seus apoiadores e apoiados a um
afastamento temporário. Mas o que importa é e sempre será o poder das milícias
de influenciar eleitores/odiadores.
De
nada adianta chamar as pessoas que se manifestaram contra a mostra de
“ignorantes”, “fascistas” e “nazistas”. É também preciso escutá-los para além
do óbvio. E para além do que é dado a ver. Do contrário, aqueles que “entendem
a arte” se colocam no melhor lugar para as milícias, o de um polo oposto que
iguala a todos no patamar do rebaixamento e produz o apagamento das diferenças.
Um grita: “Pedófilo!”. O outro responde: “Nazista!”. O que muda? Se estes são
“os que entendem”, há que usar esse entendimento para não fazer o jogo das
milícias.
Também
não adianta gritar que as pessoas não compreendem o que é arte. Se parte
significativa da população não teve e não tem acesso à arte é também porque os
privilégios se mantêm intactos neste país graças a muita gente que entende de
arte. E nada, muito menos a arte, deve estar protegida do debate. O ataque é
abusivo. O debate é necessário.
Há
diferenças entre as milícias que lideram os ataques e aqueles que elas
conseguem arregimentar para os ataques. É importante compreender essas
diferenças e aprender a dialogar com elas. Durante a semana passada, por
exemplo, evangélicos replicaram mensagens enviadas por seus pastores contra a
mostra e a “apologia à pedofilia”. Mas algumas destas pessoas, com quem
conversei, estavam replicando a mensagem ao mesmo tempo que participavam
ativamente de debates públicos sobre direitos humanos e maior investimento no
SUS. Estas, por exemplo, são pessoas com quem é possível conversar. E este é
apenas um exemplo. É um erro confundir os líderes das milícias com aqueles que
ocasionalmente lideram. Assim como é um erro colocar o complexo mundo
evangélico brasileiro no mesmo escaninho.
A
crise, como não custa repetir, é também de palavra. Ou principalmente de
palavra. E o esvaziamento das palavras é algo poderoso. Como o “livre” do
Movimento Brasil Livre (MBL). Ou como “Escola Sem Partido”, um projeto que toma
vários partidos. Mas as palavras que os confrontam já se esvaziaram. Como
“fascista”, que já pouco ou nada diz. E agora também “nazista” já se desidrata.
Para uma parte significativa da população, os conceitos de “direita” e
“esquerda” pouco significam. E “pedófilo” agora pode ser alguém que pintou um
quadro. Assim como as gentes na internet vão virando fantasmagorias, as
palavras também.
A
literalização da linguagem é apenas uma das faces da crise da palavra. Os
brasileiros sempre tiveram uma linguagem riquíssima, complexa, de invenção,
povoada por subjetividades. Guimarães Rosa, um dos maiores ícones da literatura
brasileira, bebeu nesta fonte – e não o contrário. Alguns dos melhores momentos
da música brasileira foram paridos por essa inventividade ousada. É o teatro
quem tem melhor dado conta do atual momento do Brasil.
É
nesta resistência que é preciso apostar. E para isso é preciso investir muito
no fortalecimento dos movimentos culturais. E é preciso fazer a disputa também
ou principalmente pela linguagem. Quando tantos gritam “pedófilo” é preciso
escutar e responder de forma que o diálogo seja possível. Quem ganha com o
esvaziamento das palavras já sabemos. Quem perde nem sempre percebe que perde.
Aqueles
que investem no terror sabem apenas como começa. Mas como ignoram a história e
apostam na desmemória, não aprenderam uma lição básica: quando se manipula
medos e ódios, o controle é apenas uma ilusão. Nunca se sabe até onde pode
chegar nem como acaba.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros
de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho
da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site:
desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:
@brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum
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