Ladislau Dowbor: “O neoliberalismo navega nos conceitos da eficiência e da competitividade. Isso é uma balela”. (Foto: Maia Rubim/Sul21) |
“Estamos destruindo o planeta em proveito de uma minoria, enquanto os
recursos necessários ao desenvolvimento sustentável e equilibrado são
esterilizados pelo sistema financeiro mundial. (…) Quando oito indivíduos são
donos de mais riqueza do que a metade da população mundial, enquanto 800
milhões de pessoas passam fome, achar que o sistema está dando certo é prova de
cegueira mental avançada”. Essa é uma das teses centrais do novo livro do
economista Ladislau Dowbor, “A era do capital improdutivo. A nova
arquitetura do poder: dominação financeira, seqüestro da democracia e
destruição do planeta” (Outras Palavras/Autonomia Literária), que analisa a
captura dos processos produtivos e políticos da sociedade mundial pelo capital
financeiro.
Na avaliação do professor titular de Pós-Graduação da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o neoliberalismo repousa sobre
“balelas” e a concentração de renda e de riqueza no planeta atingiu níveis
obscenos. Em entrevista ao Sul21, Dowbor fala sobre o seu novo
livro e sobre os desdobramentos dessa hegemonia do capital especulativo no Brasil.
O déficit no Brasil, defende o economista, não foi criado por gastos públicos,
mas sim pelo desvio dos gastos públicos para os bancos no serviço da dívida
pública:
“Muito curiosamente, o teto de gastos paralisa as atividades próprias do
Estado em educação, saúde, segurança, etc., mas libera a continuidade da
transferência de recursos públicos para os bancos. O Brasil tem, hoje, cerca de
60 milhões de adultos que estão negativados. Essas pessoas não conseguem pagar
suas contas relativas a comprar anteriores e, muito menos, efetuar novas
compras. E as empresas também estão endividadas. Esse sistema é absolutamente
inviável”.
Livro analisa nova arquitetura do poder econômico e político no mundo. (Divulgação) |
Sul21: O que é, exatamente, o capital improdutivo, conceito central do
teu novo livro?
Ladislau Dowbor: Nós devemos
distinguir o investimento, produtor de bens e serviços, que desenvolve
atividades econômicas, da aplicação financeira. São dois campos distintos. No
Brasil, se confunde, voluntariamente, investimento e aplicação financeira.
Quando você compra títulos do Tesouro, faz especulações sobre moedas ou compra
ações poderá até ganhar bastante dinheiro, movimentar um monte de papeis, sem
que, com isso, apareça sequer um par de sapatos, uma bicicleta ou uma escola a
mais no país. Você não gerou nada. Se você ganhou bastante, está se apropriando
do que outra pessoa perdeu. Se você previu que o dólar ia subir, comprou na
baixa e ele subiu, quem te vendeu perdeu dinheiro.
Toda essa esfera de aplicações financeiras é essencialmente
especulativa, não contribuindo para o processo produtivo. O que contribui para
o processo produtivo é o investimento que financia atividades que geram bens,
serviços, empregos, impostos e que fazem a economia girar. Falamos de capital
improdutivo quando passa a render mais você aplicar em papeis do que investir
em alguma coisa. No mundo, hoje, o PIB correspondente à produção de bens e
serviços aumenta em média algo entre 2 e 2,5% ao ano, enquanto que o rendimento
dos papeis aumenta cerca de 7% ao ano. A explicação é muito simples. O dinheiro
vai para onde rende mais. Gerou-se um sistema em que você ganha mais dinheiro
simplesmente teclando no computador do que efetivamente produzindo. Isso é a
expansão do capital improdutivo.
Há uma segunda questão importante. O capital especulativo e as
aplicações financeiras passam a funcionar em um processo de progressão
geométrica. Um bilionário que aplica seu dinheiro a 5% ao ano ganhará 137 mil
dólares por dia. Ele não consegue gastar tudo e esse dinheiro é reaplicado,
fazendo com que, a cada dia, o juro sobre o estoque de recursos aumente. Temos
aí uma expansão que, em termos financeiros, se chama efeito bola de neve. Esse
efeito faz com que grandes fortunas passam a ter muito mais dinheiro do que
conseguem gastar sem precisar desenvolver nenhuma atividade de produção
concreta de bens e serviços. Ou seja, ele não está sendo útil para a sociedade.
Harvey (David Harvey) tem razão. Esse capital deixa de ser capital e
passa a ser patrimônio, pois não entra no processo produtivo como um elemento
dinamizador. Isso deforma radicalmente a economia. Conforme cálculo feito pelo
IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), quando você faz uma
transferência de renda por meio de um programa como o Bolsa Família, para cada
real investido ele vai gerar R$ 1,78 de aumento do PIB. Isso acontece porque
você colocou o dinheiro na mão de alguém que não vai fazer aplicação financeira
ou comprar letras do Tesouro, mas sim que vai consumir. Esse consumo vai
incrementar a atividade do comerciante, que vai encomendar mais do produtor, o
que vai gerar mais emprego, em um efeito econômico multiplicador. O essencial
da deformação que vivemos é esse deslocamento da forma de remuneração do
capital produtivo relativamente à sua apropriação pelo sistema financeiro.
“Temos uma expansão das capacidades de produzir, mas não da produção efetivamente”. (Foto: Maia Rubim/Sul21) |
Sul21: Enquanto isso, produtos seguem sendo produzidos. Não deixamos de
produzir sapatos, automóveis, roupas e tudo mais. Há um capital produtivo que
segue participando da produção. Como ele se relaciona com o capital improdutivo
e como um sistema com essas características pode sobreviver? Se aplicar no
sistema financeiro é mais rentável, porque um produtor de calçados seguirá
fabricando calçados?
Ladislau Dowbor: Nas últimas
décadas, tivemos avanços tecnológicos fenomenais. Hoje produzimos automóveis
com muito mais rapidez e menor custo, utilizando inclusive robôs e coisas do
gênero. Na agricultura, temos a expansão da chamada agricultura de precisão,
onde a aplicação de novas tecnologias também permite um aumento de
produtividade fantástico. Ou seja, nós temos uma expansão das capacidades de
produzir, mas não da produção efetivamente porque esta vai depender do destino
final do produto. Um empresário, se não tem para quem vender, por mais que os
sapatos que ele produz sejam úteis, ele fecha.
Então, o equilíbrio de remuneração das diversas atividades é vital para
uma economia funcionar. Se você tem um dos atores que se apropria de muito mais
renda do que os outros, acaba travando o processo como um todo. É muito
interessante pegar o exemplo da reconstrução da Europa após a Segunda Guerra
Mundial. A Europa criou o Estado de Bem Estar, passando a remunerar os
trabalhadores proporcionalmente ao aumento da produtividade. Na Alemanha, por
exemplo, todo aumento da produtividade de uma empresa é revertido automaticamente
em aumento de salário. E o aumento da produção gera mais mercado. Há um
equilíbrio no conjunto do sistema.
Por outro lado, os impostos gerados neste processo são utilizados como
salário indireto. Na Alemanha, você tem escola pública gratuita, universidade
pública e gratuita. Há escolas privadas, mas, mesmo nestas, o professor é pago
pelo Estado. Isso é considerado um investimento nas pessoas. Esse salário
indireto é extremamente importante. As pessoas não vivem só com sua renda que
entra no bolso. O canadense tem um salário inferior ao americano, mas ele tem a
creche, a escola e o hospital de graça, tem piscinas em todas as escolas. Ou
seja, o imposto, ao contrário do que ocorre no Brasil, onde ele é chamado de
gasto, é transformado em salário indireto, em um investimento nas pessoas.
“O paradoxo é esse: a gente sabe o que funciona e estamos fazendo exatamente o contrário”. (Foto: Maia Rubim/Sul21) |
Esse modelo gera bem estar e é muito mais produtivo do que planos de
saúde e coisas do gênero. Quando você faz saúde pública, por exemplo, se
concentra em evitar as doenças. Já o sistema privado de saúde está interessado
na doença. Ele é a indústria da doença. Se você vai em países como Suécia,
França, Alemanha ou Canadá, verá um sistema de saúde que está preocupado com a
qualidade da água, com a ausência de agrotóxicos nos alimentos e com a
diminuição de emissão de gases pelos veículos nas cidades, para citar apenas
essas três coisas. Ou seja, está preocupado com o conjunto dos elementos que
geram a doença. O resultado é muito interessante. No Canadá, por exemplo, você
gasta 3.400 dólares/ano por pessoa em saúde. Nos Estados Unidos, é mais do
dobro disso. No entanto, a saúde média da população do Canadá é
incomparavelmente superior. É simplesmente mais produtivo.
Quando você canaliza os recursos de maneira adequada, consegue-se esse tipo
de resultado. Destinar recursos para a saúde pública, para a pequena e media
empresa, para reforçar o salário mínimo e dinamizar o consumo de bens simples:
tudo isso é organização econômica e social que chamamos de governança. O
governo é a máquina administrativa. Governança é fazer o conjunto funcionar.
No caso do Brasil, quando um dos grupos sociais, como o setor
financeiro, se torna muito mais poderoso do que os milhões de pequenos e médios
produtores e passa a apropriar dos recursos destes, por meio de juros, e do
próprio governo, por meio de leis que, por exemplo, os isentam de impostos,
temos uma deformação sistêmica e o processo trava.
Além do que ocorreu na Europa, podemos citar o exemplo do New Deal, nos
Estados Unidos, ou o que foi feito na Coréia do Sul. Todos eles se basearam em
não enriquecer os ricos, mas em desenvolver salário direto forte para a
população, o que gera demanda para as empresas, e impostos elevados, mas
orientados para investimentos em infraestruturas que barateiam os processos
produtivos e em políticas nas áreas de educação, saúde e cultura. Esse
investimento nas pessoas aumenta a produtividade do sistema como um todo. O
paradoxo é esse: a gente sabe o que funciona e estamos fazendo exatamente o
contrário.
Sul21: No seu livro você aponta que esse processo de deformação
sistêmica da economia mundial anda de mãos dadas com o fenômeno da captura da
esfera da política pelo sistema financeiro. Esse diagnóstico parece apontar
para um cenário bastante sombrio quanto ao futuro da democracia, não?
“Temos um endividamento generalizado dos governos no mundo com os grandes bancos”. (Foto: Maia Rubim/Sul21) |
Ladislau Dowbor: Você veja o
desastre hoje nos Estados Unidos. Donald Trump se elegeu dizendo que a Hillary
Clinton era ligada ao sistema financeiro. Eleito, quem ele nomeou para chefiar
a sua equipe econômica? O presidente do Goldman Sachs, o maior banco mundial.
No Brasil, em nome da resolução de problemas econômicos, tivemos um Joaquim
Levy na Fazenda e hoje temos um banqueiro comandando o Banco Central e um
banqueiro no Ministério da Fazenda. Na França, tivemos o peso do sistema
financeiro depositado na candidatura de Macron.
Temos, de modo geral, um endividamento generalizado dos governos no
mundo que os colocam numa relação de dependência com os grandes bancos, donos
da dívida. Há uma mudança dos equilíbrios políticos no planeta. Estávamos
acostumados com a ideia de que, numa democracia, você elege pessoas que
representam os anseios da população. No entanto, hoje, há um desgarramento
entre o processo político da eleição e o processo econômico. Não basta a
democracia política. Se você não tem também democracia econômica, o sistema
simplesmente não funciona. Escrevi um livro chamado “Democracia econômica”, já
publicado em várias línguas, que ajuda a entender esse processo (Conheça as obras de Ladislau Dowbor,
disponíveis em sua página).
Voltando ao argumento central: onde o sistema funciona? Ele funciona
quando se tem uma forte organização dos fluxos dos recursos financeiros para
reforçar a capacidade de compra das populações e a capacidade do Estado fazer
investimentos em infraestrutura e fazer políticas sociais. Esse processo
dinamiza as atividades, aumenta o volume de impostos tanto pelo consumo quanto
pela atividade empresarial e pelos empregos gerados. Esses impostos fecham a
conta sem gerar um déficit. O déficit no Brasil não foi criado por gastos
públicos, mas sim pelo desvio dos gastos públicos para os bancos no serviço da
dívida pública. Muito curiosamente, o teto de gastos paralisa as atividades
próprias do Estado em educação, saúde, segurança, etc., mas libera a
continuidade da transferência de recursos públicos para os bancos.
Sul21: Apesar da crise de 2007-2008, o neoliberalismo segue sendo
hegemônico e parece estar apoiado em algumas ideias que se enraizaram no senso
comum. Em uma das primeiras edições do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, o
economista Francisco Louçã disse que a esquerda precisava ter algumas ideias
fortes para enfrentar a força ideológica do neoliberalismo. Que ideias poderiam
ser estas, na sua opinião?
“O Brasil tem, hoje, cerca de 60 milhões de adultos que estão negativados”. (Foto: Maia Rubim/Sul21) |
Ladislau Dowbor: O
neoliberalismo navega nos conceitos da eficiência e da competitividade. Isso é
uma balela. Ele está, na verdade, drenando a capacidade produtiva da sociedade
ao se apoderar de recursos que poderiam ser investidos nas empresas e nas
pessoas. O Brasil tem, hoje, cerca de 60 milhões de adultos que estão
negativados. Essas pessoas não conseguem pagar suas contas relativas a comprar
anteriores e, muito menos, efetuar novas compras. As empresas também estão endividadas.
A ideia que embasa o funcionamento desse sistema é simples. Se você vai
comprar um fogão em uma loja, encontrará um preço a vista – 420 reais digamos –
e um preço a prazo que é o dobro disso. Esse fogão saiu da fábrica a 200 reais,
pagou 40% de imposto e tem o ganho da loja que o está vendendo por 420. Mas, na
verdade, eles querem vender a 840 reais. A grande massa da população, enganada
pela prestação que cabe no bolso e pelo juro apresentado ao mês, acaba pagando
840 reais por esse fogão. O cidadão que não tem capacidade de comprar a vista
vai pagar 840 reais por um fogão de 200.
Esse sistema é absolutamente inviável, pois esteriliza a capacidade de
reinvestimento da empresa, que está ganhando muito pouco, e a capacidade de
compra da população. No meio desse processo, há um intermediário que tem um
ganho imenso. É uma economia de intermediários não produtivos.
Buscar um novo equilíbrio significa taxar fortemente o capital
improdutivo e reduzir os impostos sobre o consumo. Não é preciso aumentar a
carga tributária. Basta começar a cobrar dos improdutivos e desonerar as
atividades que dinamizam a economia.
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