Diante de um país no qual o ocupante da
Presidência rifa direitos, facilita o uso de trabalho escravo, compra deputados
e usa a máquina governamental para livrar-se de uma denúncia da procuradoria
por formação de organização criminosa e obstrução de justiça, no qual um
ministro do STF recebe 46 ligações de Whatsapp de um réu com o qual ele tem
ligações sabidamente carnais, o cômico é ouvir o tom de quem narra tudo isto
como se estivéssemos a assistir os embates políticos de uma democracia.
Deve ser algo parecido à República velha, na
qual uma oligarquia inventava eleições de fachada e a imprensa descrevia aquele
jogo de cena como se fosse um embate democrático.
O fato é que nunca o país mostrou de maneira
tão explícita quão bem ele se acomoda a ser uma cleptocracia na qual os três
poderes estão organizados para defender uma espécie de núcleo duro da
espoliação nacional.
O Estado brasileiro estará disposto a usar de
toda sua violência e intimidação para deixar intocada sua casta.
O caso do senhor Aécio Neves é exemplar neste
sentido.
Mesmo sendo pego em gravações telefônicas
expondo explicitamente manobras de obstrução de Justiça, mesmo dizendo ser
necessário conseguir um atravessador que pudesse ser morto posteriormente, este
senhor continua senador da República.
Ou seja, se quisermos entender como o poder
funciona no Brasil, temos que nos perguntar sobre quem é intocado.
Quem, a despeito de toda cortina de fumaça,
escapa sempre das amarras da Justiça. Quem, mesmo denunciado, nunca será preso.
Há várias formas de um país se degradar e o
Brasil tem conhecido a mais brutal de todas, a saber, a explicitação dos
mecanismos implícitos de funcionamento da democracia liberal.
A democracia liberal funciona com um duplo
sistema de normas.
O primeiro é um sistema explícito de regras e
normas enunciadas no ordenamento jurídico.
O segundo é um sistema implícito de práticas e
violências que, a princípio, não devem vir à tona, que deve ser feito em
silêncio.
Ou seja, a democracia não é apenas o império
da lei. Ela é a gestão de anomias cujas dinâmicas não devem ser explicitadas.
No entanto, no Brasil atual, são tais práticas
que ganham a cena sem que sua explicitação provoque maiores consequências. Isto
ao menos tem uma consequência positiva, a saber, mostrar quão farsesca sempre
foi nossa República.
Na melhor das hipóteses, isto pode deixar
claro o tipo de tarefa política que se impõe daqui para a frente. A tarefa de
ser capaz de se confrontar com a incapacidade nacional de construir uma
democracia e com a necessidade de produzir o que até agora nunca existiu.
Não poderia ser diferente em um país que
conheceu uma espécie de "transição democrática infinita", mas no
sentido do mal infinito hegeliano.
Ou seja, uma transição que nunca terminou, que
foi feita para nunca terminar.
Pois uma democracia efetiva só poderia ser
construída sobre as bases de um empuxo social em direção à constituição de uma
sociedade economicamente igualitária.
Mas hoje sabemos que mesmo as políticas
implementadas nos últimos quinze anos não tiveram impacto significativo algum
na desigualdade que destrói toda possibilidade de uma sociedade minimamente
coesa.
Ao Brasil, cabe a possibilidade de continuar a
farsa, brincando de eleições no interior de um sistema que funciona para
blindar o núcleo duro do poder e para jogar a polícia para cima dos
descontentes.
Ou aqueles que tomaram nota da degradação
podem recusar as saídas autoritárias que rondam a história brasileira e
procurar criar, pela primeira vez, as bases de um poder popular que possa se
colocar como a força imanente e presente da República.
Em um
momento no qual o resto do mundo se debate com os fins da democracia e a
ascensão das estratégias populistas, o Brasil pode se colocar em um horizonte
global de procura por uma experiência de emancipação social que é a grande
tarefa deste início de século.
Nenhum comentário:
Postar um comentário