quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Aflora a semente - por Gianni Carta (Cartacapital)

Litvinov, segunda-feira 17: a polícia da República Tcheca tem um violento confronto com um grupo de cerca de 500 manifestantes extremistas que se dirigia a um bairro de roma (ciganos) com coquetéis molotov. Os extremistas usam seus coquetéis contra a policia, que reage. Os extremistas não conseguem chegar ao bairro. Saldo do confronto: sete manifestantes e o mesmo número de policiais feridos. Outras quinze pessoas presas.

Londres, setembro de 2008: Edrielson Ferreira Machado Mortari, mineiro de 35 anos, em situação regular no Reino Unido, é detido, embora não tenha cometido crime algum. Na delegacia de Snow Hill, centro de Londres, alegou que só forneceria impressões digitais diante de seu advogado. Mortari diz ter recebido então joelhadas e socos no rosto.

Milão, setembro de 2008: Abba, apelido de Abdul Wiliam Guibre, jovem de 19 anos de Burkina Fasso, é morto a cacetadas pelos proprietários do bar onde trabalhava. Fausto e Daniele Cristofoli, pai e filho, suspeitaram que Abba estaria roubando dinheiro. Pego em flagrante com um pacote de bolachas, o africano foi agredido pelos Cristofoli, que o chamaram de “negro sujo”.

Notre-Dame de Lorette, abril de 2008: no cemitério militar próximo a Arras, norte da França, vândalos profanam 148 túmulos de soldados muçulmanos arregimentados nas então colônias francesas da Argélia e Tunísia durante a Primeira Guerra Mundial. A cabeça de um porco é pendurada em uma lápide de sepultura.

Pesquisa realizada em novembro de 2005 pelo Institut CSA revelou que um terço dos franceses se declara racista. Ainda segundo a mesma enquete, divulgada pelo diário Le Monde, 63% dos cerca de mil entrevistados consideram que “certos comportamentos podem justificar reações racistas”. Já uma pesquisa realizada pelo governo da Grã-Bretanha mostrou-se reveladora: 56% dos entrevistados acreditam haver mais preconceito racial hoje do que cinco anos atrás. De acordo com o mais recente relatório do Eurobarômetro, há discriminação nos 27 países da União Européia.

A que se deve essa nova onda de racismo, responsável por duas devastadoras guerras mundiais no século passado, ambas iniciadas neste continente? A globalização, que em tese iria tornar as economias desenvolvidas e emergentes mais iguais, provocou efeitos contrários. O resultado é que uma nova leva de imigrantes empobrecidos invadiu a Europa, ao mesmo tempo que o continente atravessava um período de baixo crescimento e pequena geração de empregos. Os estrangeiros, antes bem-vindos em países como a Espanha, passaram a ser vistos como aqueles que vieram roubar o trabalho dos nativos.

As políticas antiimigratórias adotadas pela União Européia, e por diferentes líderes europeus, não ajuda a imagem do imigrante. E os discursos antiimigratórios e xenófobos de extremistas como Jean-Marie Le Pen, que ao liderar o Frente Nacional chegou no segundo turno das eleições presidenciais de 2002, foram adotados por direitistas como o presidente francês Nicolas Sarkozy, e até por líderes de centro-esquerda como o premier britânico Gordon Brown.

Na França, por exemplo, são realizados testes de DNA em estrangeiros que aqui vêm viver com suas famílias. Mais: Sarkozy, filho de húngaro com uma judeo-grega, pretende neste ano expulsar 25 mil clandestinos. Leis para impedir a entrada de pessoas com baixa qualificação profissional têm sido reforçadas. O premier italiano, Silvio Berlusconi, também aprecia os testes de DNA, mas só para os ciganos. Berlusconi alega que as impressões digitais dos roma (com inspiração na ideologia fascista dos anos 30) são necessárias para o recenseamento da população. Detalhe: os roma são legalmente reconhecidos como habitantes da União Européia.

Gustavo Behr, da Casa Brasil de Lisboa, oferece motivos válidos a favor da imigração: “Os imigrantes são um importante elemento de sustentação da segurança social, e também um dos poucos fatores de combate ao crescente e inevitável desequilíbrio demográfico europeu. Como é sabido, a taxa de natalidade em alguns países é inferior à da mortalidade”.

Behr diz que certos veículos da mídia associam “imigração à criminalidade” e graças a essa “equação” o imigrante virou bode expiatório. De fato, um terço dos presos na Itália, para citar um exemplo, são estrangeiros. Os motivos podem ser vários, como a falta de emprego ou por serem marginalizados, mas o fato é que mais estrangeiros que cidadãos com nacionalidade local vão ao cárcere. Contudo, Behr tem razão ao dizer que políticos (e não só de direita) e a mídia, principalmente a popular, estereotipam os imigrantes. Na França, o encanador polonês virou, em 2005, o símbolo da mão-de-obra barata na campanha da esquerda contra a Carta Européia. Em Londres, o tablóide Daily Mail pintou e bordou com os encanadores poloneses, que desde a integração de seu país à UE fluíram em massa para a ilha. Consta, porém, que contribuem com cerca de 2,3 bilhões de libras anuais ao Tesouro britânico.

Após serem discriminados anos a fio, os poloneses estão voltando para seu país por causa da crise econômica, da libra enfraquecida e de uma Polônia em melhor situação econômica. Hoje, as remessas que fazem aos seus familiares na Polônia são 30% inferiores às do período anterior à crise.

Por motivos econômicos, mas também devido a guerras e catástrofes climáticas, imigrantes do Terceiro Mundo, incluindo significante fatia das ex-colônias, vieram tentar uma vida melhor na Europa. Depois das pesadas restrições à entrada de estrangeiros nos Estados Unidos, após os atentados de 11 de setembro de 2001, muitos imigrantes tomaram o caminho do Velho Mundo. Mas os ataques terroristas a Madri e Londres também provocaram um endurecimento das políticas na União Européia. As fronteiras se tornaram verdadeiros muros de fortalezas, com o uso de tecnologias que registram, além das impressões digitais, a cor dos olhos e da pele, ossatura, postura, voz e o comportamento de um modo geral.

Mesmo assim, as ondas migratórias, de brasileiros em particular, não têm diminuído. Em Portugal, os brazucas formam a maior comunidade estrangeira (15,2% do total de estrangeiros, à frente dos imigrantes de Cabo Verde). Segundo Behr, essa estatística não inclui os cerca de 20 mil brasileiros em situação ilegal no país.

Enquetes realizadas pela S.O.S. Racismo revelaram que havia 30 mil brasileiros na Espanha em 2005. Em 2007, o número subiu a 80 mil. Segundo Carlos Mellinger, ex-árbitro profissional de futebol e agora diretor da Associação Brasileira no Reino Unido (Abras), a comunidade brasileira no Reino Unido soma 300 mil indivíduos. Mellinger sustenta que não existe, na ilha, discriminação contra o brasileiro, tido como “trabalhador, eficaz e higiênico”. A Abras, financiada por taxas de adesão e com 14 voluntários, também está envolvida no já citado caso do mineiro Edrielson Mortari. A associação confirmou à revista brasileira publicada em Londres, Leros, que, de fato, Mortari foi “espancado” e “chegou quase a perder os sentidos”. Sobre se casos como o de Mortari e o da brasileira que não foi atendida num hospital público (e tinha todo direito) não se trata de ações com base em preconceito racial, Mellinger repete: “Veja, há casos de discriminação, mas não necessariamente porque o estrangeiro é brasileiro. E é algo pessoal, entre, por exemplo, a enfermeira e a brasileira que vai ao hospital. A verdadeira discriminação contra o estrangeiro vem dos altos cargos políticos, principalmente às vésperas de eleições, para satisfazer parte dos eleitores”.

Sentado a uma mesa no Bar Italia, no Soho, bairro de vanguarda no centro de Londres, o afável Vicente Lou, editor da Leros, publicação fundada há 17 anos para a comunidade e lida por 70 mil brasileiros, concorda com Mellinger. “Há racismo contra estrangeiro, mas não contra brasileiros”, observa.

Contudo, medidas impostas pelas autoridades indicam que o brasileiro é detectado entre outros estrangeiros. O Brasil permanece no topo da lista dos países com o “maior número de expulsos” do reinado. Ano passado 11,4 mil foram enviados para casa. Destes, 4,7 mil não conseguiram ultrapassar as fronteiras das Ilhas Britânicas e 6,7 mil ilegais foram deportados. A lista de enviados ao Brasil de 2008 incluirá o cantor Seu Jorge, convidado de um programa televisivo em Londres, mas barrado no aeroporto de Heathrow. Motivo dado: falta de visto, embora brasileiros não precisem de visto para entrar no Reino Unido.

Os brasileiros também não têm sorte na Espanha. De janeiro a setembro de 2008 foram os estrangeiros mais barrados em Madri. Mais de 2 mil brasileiros tiveram de voltar. A maioria, como no Reino Unido, não apresenta bilhete de retorno, não tem cartão de crédito, ou meios para se sustentar. Mas não são somente os pobres brasileiros que sofrem ao querer melhorar suas vidas em outras terras. Veja o caso de Rachid (ele pede anonimato, como vários entrevistados). Aos 47 anos, é empresário nascido em Londres, filho de européia com paquistanês. Os traços de seu rosto são anglo-saxônicos, os olhos claros. Porém, seu nome não ajuda.

Em Nova York, para onde viaja com freqüência, Rachid é, apesar do passaporte britânico, interrogado horas a fio nos aeroportos. Em Londres, também é interrogado nos aeroportos, mas, devido a sua chamada “etnia visível”, nas ruas não é sujeito ao racial profiling pela polícia. Os costumeiros suspeitos são negros e asiáticos, a maioria oriunda da Índia e do Paquistão.

Com 5 milhões de muçulmanos, ou 8% da população do país, a França tem a maior comunidade muçulmana da Europa. O que explica, em abril, a profanação dos túmulos de soldados árabes que defenderam o país durante a Primeira Guerra Mundial. Rachida Dati, a ministra da Justiça de origem magrebina (Norte da África), denunciou as “conotações racistas que mancham a memória dos mortos, os veteranos que deram suas vidas pela França”.

A islamofobia é tangível nas ruas. Nos bairros burgueses de centros como Paris e Lyon cidadãos se sentem ameaçados por uma juventude muçulmana de menos de 20 anos, geralmente oriunda de subúrbios. Encapuzados, vários pertencem a gangues.

Esses jovens são filhos e netos de habitantes das colônias francesas no Norte da África encorajados a vir trabalhar aqui a partir dos anos 50. Trabalharam em indústrias, e fizeram parte do crescimento econômico. Para abrigar esses operários e famílias, subúrbios como Clichy-sous-Bois, ao nordeste de Paris, foram erguidos às pressas e pelo menor preço possível. Resultado: hediondos edifícios, supermercados e escolas. Não há sequer uma estação de metrô em Clichy-sous-Bois.

Hoje, o nível de desemprego lá é de 40%, três vezes mais elevado que a taxa nacional. Nas ruas, com muros repletos de grafite, perambulam jovens encapuzados, traficantes de drogas e pequenos criminosos. Nasceram na França, mas são tratados como cidadãos de segunda categoria. Por conta de seus nomes árabes, eles têm maior dificuldade em encontrar empregos. São jovens em busca de uma identidade.

Não causa surpresa, portanto, que essa outra França tenha se revoltado no final de outubro de 2005, quando dois muçulmanos, Zyed Benna e Bouna Traoré, 17 e 15 anos, morreram eletrocutados numa estação de transmissão elétrica. Habituados a produzir documentos, e cientes de que um interrogatório poderia terminar na delegacia, e durar mais de quatro anos, preferiram se esconder da polícia.

Os violentos confrontos entre jovens dos subúrbios e a polícia de choque se esparramaram por toda a França. Lembravam cenas de insurreições do Terceiro Mundo. À época, Sarkozy, então ministro do Interior, chamou os jovens de “escória”, algo que Le Pen teria dito com prazer. A ira dos jovens só aumentou.

Ataques físicos e verbais contra judeus, na França, sempre existiram e, no seu auge, em 2004, foram registradas mil agressões. Devido a esses atos, quase 3 mil judeus fizeram o liyah, ou emigração para Israel, em 2007. Na França vivem 600 mil judeus, ou 1% da população. Certas gangues de muçulmanos encapuzados dificilmente conseguirão acertar um soco em Sarkozy, mas eles buscam outros cidadãos, e de preferência jovens judeus. O 11º Arrondissement, bairro ao nordeste de Paris, foi o centro de uma dessas disputas: jovens árabes deixaram um judeu de 17 anos em estado de coma.

O bairro tem alto nível de desemprego e é habitado por árabes de classes sociais pobres. Judeus escolhem moradias no local por causa presença de uma escola judaica. Suásticas sobram nos muros e caixas postais, e no parque do bairro as brigas entre gangues de árabes e judeus são freqüentes.

Um senegalês de 28 anos foi morto a facadas no início de setembro, em Roquetas de Mar, ao sul da Espanha, ao tentar apartar uma briga entre um compatriota e um roma. A comunidade negra saiu em massa pelas ruas, queimando duas casas dos supostos assassinos, vandalizando e enfrentando a polícia. Houve dezenas de feridos, quatro presos. Na Itália, mais particularmente em Nápoles e vizinhanças, a Camorra, a máfia local, instiga os italianos de classes menos abastadas a atacar os roma. Talvez porque os ciganos, ao contrário de cidadãos ilegais, se recusaram a vender sua cocaína e bolsas Prada falsificadas? Grupos vigilantes, comandados pela Camorra, perpetraram atos de inenarrável violência contra ciganos. O ministro do Interior, Roberto Maroni, pôs mais lenha na fogueira: “É isso o que acontece quando ciganos roubam bebês”. Meses depois, duas irmãs ciganas, Cristina e Violetta Djeordsevic, de 13 e 11 anos, nascidas na Itália, morreram afogadas em Torregaveta, balneário próximo de Nápoles. Seus corpos foram cobertos por toalhas, ficaram na praia à espera de remoção por três horas. Enquanto isso, quem estava por perto voltou a suas atividades normais, sem se preocupar com os corpos.

Sociólogos alegam que o país tem sido, há séculos, uma monocultura. Um negro italiano é uma novidade. No entanto, nada justifica a atuação perante estrangeiros. Nos últimos dois meses sobram incidentes. O negro Guibre foi morto a cacetadas em Milão por ter “roubado” um saco de bolachas, um homem de Gana apanhou em Parma num confronto com a polícia, um chinês foi espancado por uma gangue de jovens em Roma, outros seis africanos foram assassinados pela Camorra. Maroni, o ministro do Interior, novamente fez uma observação insólita: “Foram casos isolados”. Mas Jean-Leonard Touadi, o primeiro deputado negro (do Congo) no Parlamento italiano, disse: “Trata-se de uma seqüência de eventos preocupantes que não podem ser catalogados como incidentes isolados’’.

O mesmo vale para toda a Europa.

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