quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Conversações com Hugo Chávez e Raúl Castro - por Sean Penn (The Nation / Agência Cartamaior)

Em uma visita realizada a Venezuela e Cuba, em outubro deste ano, o ator e cineasta Sean Penn conversou demoradamente com Hugo Chávez e Raúl Castro. Ao final da entrevista com Castro, ele reflete: "a maior parte das questões básicas sobre soberania nos permitem entender o antagonismo norte-americano contra Cuba e Venezuela, assim como contra as políticas desses países. Eles sempre tiveram só duas escolhas: serem imperfeitamente nossos ou imperfeitamente deles mesmos".
Sean Penn, para o The Nation

O ator e cineasta Sean Penn visitou Venezuela e Cuba, em outubro deste ano, quando se econtrou com os presidentes dos dois países, Hugo Chávez e Raul Castro. Ele relatou essas conversas em um artigo publicado no The Nation.

Joe Biden, que em breve seria eleito vice-presidente, falava vigorosamente para as tropas: “Não podemos mais ser dependentes de energia de um ditador da Arábia Saudita ou da Venezuela”. Bem, eu sei o que é a Arábia Saudita. Mas, tendo estado na Venezuela em 2006, visitando favelas, me misturando com a rica oposição e passando dias e horas com os apoiadores do presidente, eu me pergunto, sem me perguntar, a quem o Senador Biden estava se referindo. Hugo Chávez Frias é o presidente democraticamente eleito da Venezuela (e por democraticamente eleito eu quero dizer que ele foi repetidas vezes apresentado perante os eleitores em eleições reconhecidas por observadores internacionais e obteve larga vantagem de votos, num sistema que, apesar de seus defeitos e irregularidades, permitiu aos seus opositores que lhe atacassem e ocupassem o seu cargo, tanto no referendo nacional no ano passado como nas recentes eleições regionais no último novembro).

As palavras de Biden foram do tipo de retórica que nos levou recentemente a uma guerra com perdas de vida e de altíssimo custo financeiro, a qual, enquanto derrubou um patife no Iraque, também derrubou a maior parte dos princípios dinâmicos sobre os quais os Estados Unidos foi fundado, intensificando o recrutamento para a AlQaeda e desconstruindo as Forças Armadas dos EUA.

Nestas alturas, em outubro de 2008, eu já tinha digerido minhas primeiras visitas a Venezuela e a Cuba e o tempo que passei com Chávez e com Fidel Castro. Tenho estado cada vez mais intolerante com a propaganda. Apesar de o próprio Chávez ter uma queda pela retórica, esta nunca foi causa de uma guerra. Esperando “desmitificar” esse “ditador”, decidi lhe fazer uma outra visita. Nesse momento eu tinha dito a amigos, privadamente: “É verdade, Chávez pode não ser um homem bom. Mas também é possível que seja um grande homem.”

Entre os amigos a quem disse isso estavam o historiador Douglas Brinkley e o colunista da Vanity Fair, Cristopher Hitchens. Esses dois se complementavam perfeitamente. Brinkley é um intelectual sólido, notável, cujo código de ética de historiador lhe assegura adesão suprema a evidências arrazoadas. Hitchens, um ardiloso operador de palavras, sempre muito imprevisível em suas preferências, é elemento insuspeito sob qualquer ponto de vista, já que uma vez, num programa de televisão, referiu-se a Chávez como um “palhaço rico em petróleo”. Ainda que eu pense que Hitchens é tão brilhante como íntegro, ele pode ser combativo ao ponto de agredir, como o fez uma vez com comentários pesados sobre a santa ativista antiguerra Cindy Sheehan. Brinkley e Hitchens equilibrariam qualquer viés em minha escrita. Além disso, são dois caras com quem tenho muita alegria e por quem tenho muita afeição.

Então, pedi a Fernando Sulichin, um velho amigo argentino e produtor independente de cinema, muito bem relacionado, que ele conseguisse uma entrevista com Chávez. Além disso, queríamos voar da Venezuela a Havana, e eu pedi a Fernando que solicitasse, em meu nome, entrevistas com os irmãos Castro, mais urgentemente com Raúl, que tomou as rédeas do poder de um Fidel doente em fevereiro – e que nunca deu uma entrevista a um estrangeiro. Eu tinha viajado a Cuba em 2005, quando tive a grande sorte de encontrar Fidel, e estava ávido por uma entrevista com o novo presidente. O telefone tocou às duas da tarde do dia seguinte: “Mi hermano”, disse Fernando. “Está feito”.

Nosso vôo de Houston a Caracas atrasou devido a problemas mecânicos. Era uma da manhã e, enquanto esperávamos, Hitchens dizia, andando, impaciente: “muito raramente só uma coisa dá errado”. Ele deve ter gostado do jeito que soou, porque disse de novo. Ele era o pessimista de Deus. Eu disse: “Hitch, vai dar tudo certo. Vão nos arranjar um outro avião e chegaremos lá a tempo”. Mas o pessimista de Deus é na verdade o ateísta pessimista de Deus. E eu seria lembrado depois da clareza desse ateísmo. Alguma outra coisa ia na verdade dar errado. Bem, errado ou certo, como você dirá. Em duas horas estávamos chegando.

Quando aterrissamos no aeroporto de Caracas, Fernando estava lá para nos receber. Ele nos levou a um terminal privado, onde esperamos pela chegada do Presidente Chávez, que nos levaria numa agenda eleitoral da campanha para governador na bela Ilha Margarita.

A Doutrina Monroe tem de ser quebrada”, disse Chávez. “Nós estamos presos nela há mais de 200 anos".

Passamos os dois dias seguintes na companhia constante de Chávez, com muitas horas de encontros privados entre nós quatro. No compartimento privado do avião do presidente, achei que quando se trata de baseball o domínio do inglês de Chávez aumenta. Quando Douglas pergunta se a Doutrina Monroe deveria ser abolida, Chávez, querendo escolher suas palavras cuidadosamente, verte-as para o espanhol para detalhar as nuances de sua posição contra essa doutrina, que justificou a intervenção norte-americana na América Latina por quase dois séculos. “A Doutrina Monroe tem de ser quebrada”, ele disse. “Nós estamos presos nela há mais de 200 anos. Isso sempre nos traz de volta o velho confronto de Monroe versus Bolívar. Jeferson costumava dizer que a América deveria engolir uma a uma das repúblicas do sul. O país em que você nasceu baseou-se numa atitude imperialista.”

A inteligência venezuelana diz-lhe que o Pentágono tem planos para invadir seu país. “Eu sei que eles estão pensando em invadir a Venezuela”, diz Chávez. Parece que ele vê a destruição da Doutrina Monroe como medida de seu destino. “Ninguém vai mais chegar aqui e explorar nossos recursos naturais”. Ele está preocupado com a reação norte-americana às suas declarações ousadas sobre a Doutrina Monroe? Ele cita o militante uruguaio pela liberdade José Gervasio Artigas: “Com a verdade eu não ofendo nem temo”.

Qual a diferença entre você e Fidel?” Chávez diz, “Fidel é um comunista. Eu não sou. Eu sou um social-democrata. Fidel é um marxista-leninista. Eu não sou. Fidel é um ateísta. Eu, não.

Hitchens estava sentado quieto, tomando notas ao longo da conversa. Chávez reconhece uma centelha de ceticismo nos seus olhos. “CRIS-tó-fer, faz-me uma pergunta. Faz a pergunta mais difícil!”. Eles trocaram um sorriso. Hitchens diz: “Qual a diferença entre você e Fidel?” Chávez diz, “Fidel é um comunista. Eu não sou. Eu sou um social-democrata. Fidel é um marxista-leninista. Eu não sou. Fidel é um ateísta. Eu, não. Um dia discutimos sobre Deus e Cristo. Eu disse a Castro que sou um cristão. Eu acredito nos Evangelhos Sociais de Cristo. Ele, não. Simplesmente, não. Mais de uma vez, Castro me disse que Venezuela não é Cuba e que não estamos nos anos 60”.

“Você vê”, diz Chávez, “a Venezuela deve ter um socialismo democrático. Castro tem sido um professor para mim. Um mestre. Não em ideologia, mas em estratégia”. Talvez ironicamente, John Kennedy é o presidente dos EUA favorito de Chávez. “Eu era um menino”, ele disse. Kennedy era a força motriz das reformas na América”. Surpreso pela afinidade de Chávez com Kennedy, Hitch entra na conversa referindo o plano econômico para a América Latina de Kennedy, contra Cuba. “A Aliança para o Progresso era uma coisa boa?” “Sim”, diz Chávez. “A Aliança para o Progresso era uma proposta política para melhorar condições. Foi pensada para diminuir as diferenças sociais entre culturas”.

As conversas entre nós quatro continaram em ônibus, comícios e inaugurações em toda a Ilha Margarita. Chávez não cansa. Ele falava com cada novo grupo de pessoas por horas debaixo de um sol a pino. Dorme no máximo 4 horas por noite, gastando a primeira hora de sua manhã lendo as notícias do mundo. E, uma vez de pé, ele é incansável, a despeito do calor, umidade e das duas camadas de camisetas vermelhas revolucionárias que ele veste.

Eu tinha três motivações centrais para essa viagem: incluir as vozes de Brinkley e de Hitchens, aprofundar meu entendimento de Chávez e da Venezuela e estimular minha mão de escritor e me engajar pelo apoio de Chávez para que os irmãos Castro encontrem a nós três em Havana. Ainda que Fernando tenha me assegurado que essa terceira peça do quebra-cabeças estava encaixada, houve algum mal-entendido cultural ou linguístico nas nossas conversas telefônicas. Enquanto isso, a CBS News aguardava uma reportagem de Brincley, Vanity Fair uma de Hitchens e eu estava escrevendo para o The Nation.

Se Barack Obama for eleito presidente dos Estados Unidos, o senhor aceitaria um convite para voar até Washington encontrá-lo?”. Chávez respondeu imediatamente: “Sim”.

No nosso terceiro dia na Venezuela nós agradecemos ao Presidente Chávez por seu tempo, os quatro entre seguranças pessoais e imprensa no aeroporto de Santiago Marino na Ilha Margarita. Brincley tinha uma questão final e eu também: “Senhor Presidente”, disse ele, “se Barack Obama for eleito presidente dos Estados Unidos, o senhor aceitaria um convite para voar até Washington encontrá-lo?”. Chávez respondeu imediatamente: “Sim”.

Quando chegou minha vez de perguntar, eu disse: “Presidente, é muito importante para nós encontrarmos os irmãos Castro. É impossível contar a história da Venezuela sem incluir Cuba – e impossível contar a história de Cuba sem os Castro”. Chávez nos prometeu que iria ligar para o Presidente Castro no momento em que entrasse no avião e pedir-lhe em seu nome pelo encontro, mas nos alertou que seria improvável que seu irmão mais velho, Fidel, pudesse responder tão rapidamente ao convite, já que ele estava escrevendo e refletindo muito nesses dias, sem ver muita gente. Ele tampouco faria promessas sobre Raúl. Chávez subiu no seu avião e nós vimos ele voar embora.

Na manhã seguinte saímos para Havana. Vou revelar tudo: estávamos num avião emprestado pelo Ministério de Energia e Petróleo da Venezuela. Se alguém quer se referir a isso como um suborno, fique à vontade. Mas quando você ler a próxima reportagem de um jornalista voando no Air Force One [o avião presidencial norte-americano], ou a bordo de um avião de transporte das forças armadas dos EUA, seja tão gentil como o está sendo ao rejeitar este artigo aqui. Nós gostamos do luxo na viagem, mas nossa reportagem permanece independente.

Para mim os riscos pessoais eram bastante altos. Pegar o avião até Havana sem uma mínima garantia de acesso a Raúl estava me deixando ansioso. Cristopher tinha cancelado algumas palestras importantes na última hora para fazer essa viagem. Não era hábito seu deixar os outros esperando. Então, para ele, era pegar ou largar e ele estava ficando agitado. Douglas, um professor de História na Universidade Rice, teria de retornar rapidamente para suas obrigações acadêmicas. Fernando sentia o peso de nossa expectativa de que ele fosse nosso batedor. E eu, bem, contava com o telefonema de Chávez a Raúl, tanto para conseguir a entrevista como para salvar minha reputação com meus companheiros.

Aterrissamos em Havana ao meio-dia e nos encontramos, na pista de aterrissagem, com Omar Gonzalez Jimenez, presidente do Instituto Cubano de Cinema, e Luis Alberto Notario, cabeça da ala de co-produção internacional do Instituto. Eu tinha passado um tempo com ambos na minha viagem anterior a Cuba. Começamos a falar de coisas pessoais enquanto caminhávamos até a alfândega, até que Hitch deu um passo à frente e, sem pudor algum, disse: “Senhor, precisamos ver o Presidente!”. “Sim”, disse Omar. “Nós estamos sabendo do pedido, e ele foi passado ao presidente. Ainda estamos esperando por sua resposta”.

Mas pelo resto do dia até a tarde do dia seguinte, torturamos nossos anfitriões com a batida incessante de Raúl, Raúl, Raúl. Eu acho que se Fidel tivesse condições e pudesse ter arranjado tempo, ele telefonaria. E, se não, eu continuaria grato pelo nosso encontro anterior e disse isso na nota que lhe escrevi e passei através de Omar. Raúl eu só conhecia através do que li, e não tinha a mínima idéia se ele iria ou não nos encontrar.

Mesmo o visitante sente o espírito de uma cultura que proclama, de várias maneiras: “Este é o nosso lugar especial”.

Os cubanos são um povo especialmente caloroso e hospitaleiro. Como nossos anfitriões, nos levaram para dar uma volta na cidade, onde notei que o número de carros americanos dos anos 50 diminuiu mesmo nos poucos anos que se passaram desde a minha última visita, dando lugar aos russos de design menor. Numa volta pela aparição invasiva da Secção de Interesses dos EUA (Sina) pelo Malecón, onde as ondas quebram contra a parede molhando os carros, vi algo quase indescritível sobre a atmosfera de Cuba. É a presença palpável da arquitetônica e humana história viva num pedaço de terra rodeado de água. Mesmo o visitante sente o espírito de uma cultura que proclama, de várias maneiras: “Este é o nosso lugar especial”.

Demos voltas pela Havana Velha e numa exposição envidraçada fora do Museu da Revolução, vimos o Granma, o barco usado para transportar revolucionários do México em 1956. Passamos pelo Palácio de Belas Artes, com sua coleção de peças apaixonadas e políticas de um corte transversal da profunda reserva de talento de Cuba. Fizemos então um passeio pelo Instituto Superior de Artes e depois fomos jantar com o presidente da Assembléia Nacional, Ricardo Alarcón e com Roberto Fabelo, um pintor que eles convidaram depois que eu expressei meu apreço por seu trabalho no museu, naquela tarde. Já pela meia-noite ainda não havia uma palavra de Raúl Castro. Depois disso fomos levados à casa de protocolo, onde descansaríamos até o amanhecer.

Ao meio-dia do dia seguinte, o despertador estava disparando alto nos nossos ouvidos. Nós ainda tínhamos dezesseis horas em Havana antes de pegar nosso vôo de volta para casa. Estávamos sentados numa mesa em La Castellana, um restaurante luxuoso de Havana Velha, com um grande grupo de artistas e músicos que, liderados pelo famoso pintor cubano Kcho, tinham criado a Brigada Martha Machado, uma organização de voluntários que estão ajudando às vítimas dos furacões Ike e Gustav na Ilha da Juventude. A Brigada tem pleno apoio do governo, em dólares, aviões e pessoal, coisa que daria inveja aos nossos enviados para a costa do golfo depois do furacão Katrina. Também conosco estava Antonio Castro Soto del Valle, um rapaz bonito e humilde que é o filho de 39 anos de Fidel Castro. Antonio, que estudou medicina, é chefe da equipe médica do time de baseball cubano. Eu tive uma rápida mas agradável conversa com ele e re-enfatizei nossa agenda Raúl.

O relógio não estava mais funcionando. Estava pesando. Omar me disse que nós escutaríamos a decisão do presidente em breve. Dedos cruzados, Douglas, Hitch, Fernando e eu voltamos à casa de protocolo para pegar nossas bagagens, antes. Por volta de 6 horas da tarde, estávamos a dez horas da nossa volta. Eu estava sentado no térreo na sala de estar, lendo sob a fraca luz de fim de tarde. Hitch e Douglas estavam nos seus quartos, no primeiro andar, eu acho que descansando para afastar a ansiedade. E no sofá ao meu lado estava Fernando, roncando.

Então, Luis apareceu na porta aberta da frente. Eu olhei de soslaio sobre os meus óculos como se ele tivesse me dado uma resposta muito direta. Sem palavras, apontei para cima, onde meus companheiros estavam descansando. Mas Luis mexeu a cabeça se desculpando. “Só você”, ele disse. O presidente tinha tomado a decisão.

Eu poderia escutar as palavras de dúvida de Hitch no meu ouvido, “Muito raramente uma só coisa dá errado”. Ele estava falando de mim? Et mi, Brute? Em todo caso, pus a mão nos bolsos para ter certeza de que estava com as notas tomadas na Venezuela, com minha caneta, meus óculos e saí com Luis. Logo antes de eu bater a porta do carro que estava esperando, eu escutei a voz de Fernando me chamando. “Sean!” Nós partimos no carro.

Nos EUA, o Presidente cubano Raúl Castro, ex-ministro das forças armadas da ilha, tem sido tratado como um “militarista frio” e um “fantoche” de Fidel. Mas o jovem comandante de Sierra Maestra está provando que as serpentes estão erradas.

Nos EUA, o Presidente cubano Raúl Castro, ex-ministro das forças armadas da ilha, tem sido tratado como um “militarista frio” e um “fantoche” de Fidel. Mas o jovem comandante de Sierra Maestra está provando que as serpentes estão erradas. Na verdade, o “Raulismo” está em alta, ao lado do recente boom econômico industrial e agrícola. O legado de Fidel, como o de Chávez, dependerá da sustentabilidade de uma revolução flexível, que possa sobreviver à partida de seus líderes pela morte ou renúncia. Mais uma vez Fidel foi subestimado pelo Norte. Na escolha por seu irmão Raúl, ele pôs a política do dia-a-dia do país em mãos formidáveis. Num informe do Conselho para Assuntos Hemisféricos, o porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, John Casey, admitiu que o Raulismo poderia levar o país a “maior abertura e liberdade para o povo cubano”.

Logo, logo estou sentado numa pequena mesa polida no gabinete do governo com o Presidente Castro e um tradutor. “Fidel ligou há alguns minutos”, ele me disse. “Ele quer que eu telefone depois que conversemos”. Há um humor na voz de Raúl que lembra uma vida de tolerância afetuosa pelo olhar atento do seu irmão mais velho. “Ele quer saber tudo o que falamos”, disse com sorriso de sabedoria. “Eu nunca gostei da idéia de conceder entrevistas”, disse. “Diz-se muitas coisas mas, quando são publicadas tornam-se curtas, condensadas. As idéias perdem seu sentido. Eu soube que você faz filmes longos. Talvez também faça longo jornalismo”. Eu prometi a ele que escreveria o mais rápido que pudesse, e que publicaria tanto como escrevesse. Informalmente ele me disse que havia prometido sua primeira entrevista como presidente a outros, e não queria multiplicar o que poderia ser construído como um insulto; por isso escolheu a mim só e não aos meus companheiros.

A reforma agrária de 1959 foi o Rubicão de nossa revolução. Uma sentença de morte para as nossas relações com os EUA”.

Castro e eu tomamos uma xícara de chá. “Quarenta e seis anos atrás, hoje, exatamente a esta hora do dia, mobilizamos tropas, Alameda no oeste, Fidel em Havana, eu em Areda. Ao meio-dia me disseram que em Washington o Presidente Kennedy discursaria. Foi durante a crise dos mísseis. Nós estávamos esperando um discurso que fosse uma declaração de guerra. Depois da humilhação na Baía dos Porcos, a pressão dos mísseis [que Castro afirma ser estritamente defensiva] representaria uma grande derrota para Kennedy. Kennedy não suportaria esse fracasso. Hoje nós estudamos os candidatos norte-americanos muito cuidadosamente, focando em McCain ou Obama. Observamos todas as suas falas antigas. Particularmente aquelas feitas na Flórida, onde a oposição a Cuba se tornou um negócio lucrativo para muita gente. Em Cuba temos um partido, mas nos EUA há muito pouca diferença. Ambos os partidos são uma expressão da classe dominante”. Ele diz que hoje os membros do lobby Miami cubano são descendentes da era de riqueza de Batista, ou proprietários de terras internacionais “que só pagaram centavos por sua terra”, quando Cuba passou sessenta anos sob o domínio absoluto dos EUA.

“A reforma agrária de 1959 foi o Rubicão de nossa revolução. Uma sentença de morte para as nossas relações com os EUA”. Castro parece estar me avaliando enquanto toma outro gole de seu chá. “Naquele momento não havia discussão sobre o socialismo, ou sobre a relação de Cuba com a Rússia. Mas a sorte estava lançada”.

Depois que a administração Eisenhower bombardeou dois navios carregados de armas para Cuba, Fidel estendeu a mão a antigos aliados. Raúl diz: “Pedimos a Itália. Não! Pedimos a Tchecoslováquia. Não! Ninguém nos daria armas para nos defendermos porque Eisenhower havia lhes pressionado. Então, quando obtivemos as armas da Rússia, não tivemos tempo de aprender como usá-las antes do ataque na Baía dos Porcos!” Ele ri e se desculpa, indo rapidamente para uma sala ao lado, de trás de uma parede, só para voltar imediatamente à sala em que estávamos e fazer a piada: “Aos 77 isso é culpa do chá”.

Piadas à parte, Castro se move com a agilidade de um jovem. Ele se exercita todos os dias, seus olhos são brilhantes e sua voz, forte. Ele retoma de onde tinha parado. “Você sabe, Sean, há uma famosa foto de Fidel da invasão da Baía dos Porcos. Ele está na frente de um tanque russo. Não sabíamos ainda como pôr aqueles tanques em marcha ré. “Então”, ri, “entregar-se não era uma opção!” É demais para um “frio militarista”. Raúl Castro era caloroso, aberto, enérgico e de uma inteligência espirituosa.

"Bloqueio é um ato de guerra, então os americanos preferem embargo, uma palavra usada em procedimentos legais".

Eu retomo o assunto das eleições nos EUA repetindo a questão que Brinkley tinha feito a Chávez: Castro aceitaria um convite a Washington para encontrar com o Presidente Obama, se ele vencesse a eleição algumas semanas depois? Castro se torna reflexivo. “Essa é uma pergunta interessante”, ele diz, seguido de um longo, embaraçoso, silêncio. Até que: “Os EUA tem o processo eleitoral mais complicado do mundo. Há ladrões treinados em eleições do lobby cubano norte-americano na Flórida...” Eu o interrompo: “Eu acho que esse lobby está se quebrando”. E então, com a certeza de um otimista incorrigível, digo: “Obama será nosso próximo presidente”. Castro sorri, parece que de minha ingenuidade, mas o sorriso desaparece e ele diz: “Se ele não for assassinado antes de 4 de novembro, ele será seu próximo presidente.” Noto que ele ainda não respondeu a minha pergunta sobre o encontro em Washington. “Você sabe”, ele diz, “Eu tenho lido os discursos que Obama tem feito, que vai manter o bloqueio”. Eu digo “Seu termo é embargo”. “Sim”, diz Castro, “bloqueio é um ato de guerra, então os americanos preferem embargo, uma palavra usada em procedimentos legais...mas em todo caso, sabemos que isso é discurso pré-eleição, e que ele também disse que está aberto à discussão com qualquer um”.

Raúl interrompe a si mesmo: “Você provavelmente está pensando, Oh, o irmão fala tanto como Fidel!” Nós rimos. “Não é comum ser assim mas, você sabe, certa vez Fidel tinha recebido uma delegação, nesta sala, da China. Muitos diplomatas e um jovem tradutor. Eu acho que era a primeira vez do tradutor com dirigentes de Estado. Eles todos tinham tido um longo vôo e estavam sob efeito do fuso. Fidel, é claro, sabia disso, mas ainda assim falou por horas. Rapidamente, um dos visitantes, próximos ao fim da mesa, logo ali [aponta para a uma cadeira vizinha a minha], seus olhos começaram a pesar. Então outro, depois outro. Mas Fidel continuou a falar. Logo logo todos, inclusive os mais poderoso deles, a quem Fidel dirigia suas palavras diretamente, fizeram o barulho de ronco nas suas cadeiras. Então, Fidel dirigiu o olhar para a única pessoa acordada, o jovem tradutor, e continuou conversando com ele até amanhecer”. A essas alturas da história, tanto Raúl como eu estavámos às gargalhadas. Eu só tinha tido um encontro com Fidel, cuja mente assombrosa e paixão inundavam as palavras. Mas era suficiente para fazer a figura. Só o nosso tradutor não ria, quando Castro retornou ao ponto.

“No meu primeiro discurso depois que Fidel ficou doente, eu disse que estávamos querendo discutir nossa relação com os EUA em pé de igualdade. Depois, em 2006, eu disse isso de novo na Praça da Revolução. Eu era motivo de risos na mídia norte-americana por estar aplicando medidas cosméticas à ditadura”. Eu ofereço uma nova oportunidade para falar ao povo americano. Ele responde: “O povo americano está entre os nossos vizinhos mais próximos. Deveríamos respeitar uns aos outros. Nós nunca tivemos nada contra o povo norte-americano. Ter boas relações seria vantajoso para ambos. Talvez não possamos resolver todos os nossos problemas, mas podemos resolver muitos deles”. Ele parou agora, vagarosamente considerando um pensamento. “Eu vou lhe dizer uma coisa que nunca disse publicamente antes. Informações sobre mim tinham sido vazadas, em determinada altura, por alguém no Departamento de Estado dos EUA, mas isso foi rapidamente silenciado por conta da preocupação sobre o eleitorado da Flórida, ainda que agora, enquanto conto isso a você, o Pentágono venha a me considerar indiscreto”.

Temos tido contato permanente com as forças armadas dos EUA, através de acordos secretos, desde 1994.”

Eu dou uma parada na respiração e espero. “Temos tido contato permanente com as forças armadas dos EUA, através de acordos secretos, desde 1994”, Castro me conta: “Esses acordos se baseavam na premissa de que discutiríamos unicamente questões relacionadas a Guantánamo. Dezessete de fevereiro de 1993, atendendo a uma solicitação dos EUA para discutir questões relativas à localização de bóias para navegação na baía foi o primeiro contato entre nós na história da revolução. Entre 4 de março e 1 de julho, a crise dos balseiros tomou lugar. Uma linha de contato militar para militar foi estabelecida, e em 9 de maio de 1995 concordamos em ter encontros mensais com altos representantes de ambos os governos. Até hoje foram 157 reuniões, e há uma fita gravada de cada uma. Os encontros ocorrem a cada terceira sexta-feira, todo mês. Alternamos locais entre a base norte-americana de Guantánamo e em território cubano.

Temos feitos manobras conjuntas de respostas de emergência. Por exemplo, nós botamos fogo e helicópteros norte-americanos trazem água da baía, junto com helicópteros cubanos. [Antes disso] a base americana de Guantánamo tinha gerado um caos. Nós tínhamos perdido guardas de fronteira, e havia evidência documental disso. Os EUA encorajaram uma emigração ilegal e perigosa, com os barcos da Guarda Costeira norte-americana interceptando cubanos que tentavam sair da ilha. Eles os trariam para Guantánamo, e uma cooperação mínima começou. Deixaríamos de vigiar nossas costas. Se alguém quisesse deixar o país, diríamos, vá em frente.

E assim, com as questões de navegação começou essa colaboração. Agora, nos encontros das sexta-feiras há um representante do Departamento de Estado norte-americano”. Nenhum nome foi dado. Ele continua: “O Departamento de Estado norte-americano tende a ser menos razoável do que o Pentágono. Mas ninguém levanta sua voz porque...Eu não tomo partido. Porque eu falo alto. Este é o único lugar do mundo em que essas duas forças militares se encontram em paz”.

Havendo um encontro entre você e o nosso próximo presidente, qual seria a prioridade de Cuba?" Sem pestanejar, Castro responde: “Normalizar o comércio.”

“E quanto a Guantánamo?” Eu pergunto. “Eu vou lhe dizer a verdade”, diz Castro. “A base é nossa hóspede. Como presidente, eu digo que o EUA deveria partir. Como um militar, eu os deixo ficar”. Por dentro, eu me perguntava: será que tenho uma boa história nova para contar, aqui? Ou isso é de pouca relevância? Ninguém deveria surpreender-se com o fato de que inimigos se encontram por trás dos cenários. O que é surpresa é que ele está me contando isso. E, com isso, eu retorno à questão do encontro com Obama. “Havendo um encontro entre você e o nosso próximo presidente, qual seria a prioridade de Cuba?” Sem pestanejar, Castro responde: “Normalizar o comércio. A indecência do embargo norte-americano jamais foi tão evidente como agora, quando da passagem de três furacões devastadores. As necessidades do povo cubano nunca foram mais desesperadoras. O embargo é simplesmente desumano e completamente improdutivo”.

Raúl continua: “A única razão para o bloqueio é nos fazer sofrer. Nada pode deter a revolução. Deixem os cubanos visitarem suas famílias. Deixem os americanos virem a Cuba”. Parece que ele está dizendo “deixem eles virem ver essa terrível ditadura comunista sobre a qual continuam a escutar na imprensa, onde mesmo representantes do Departamento de Estado dos EUA e dissidentes proeminentes reconhecem que, em eleições abertas e livres hoje, em Cuba, o Partido Comunista que está no poder venceria com 80% do eleitorado. Eu listo vários conservadores norte-americanos que têm sido críticos ao embargo, do recém falecido Milton Friedman a Colin Powell, até mesmo o Senador Republicano do Texas, Kay Bailey Hutchison, que disse: “Eu acreditei por um tempo que deveríamos buscar uma nova estratégia para Cuba. E esta é abrir mais o comércio, especialmente o comércio de alimentos, sobretudo se podemos oferecer às pessoas mais contato com o mundo exterior. Se pudermos erguer a economia, isso pode fazer com que o povo se torne capaz de lutar contra a ditadura”. Castro, com certo ar de descaso, responde prontamente: “O desafio nos é bem-vindo”.

Nós somos tão pacientes como os chineses. Setenta por cento de nossa população nasceu sob o bloqueio.

Até aqui fomos levados do chá ao vinho tinto e ao jantar. “Deixe-me dizer uma coisa”, ele diz. “Nós temos pesquisas recentes que sugerem fortemente que temos reservas de petróleo em águas profundas, que as companhias norte-americanas podem vir aqui perfurar. Nós podemos negociar. Os EUA é protegido pelas mesmas leis de comércio de Cuba, como qualquer país. Talvez possa haver alguma reciprocidade. Há cem mil quilômetros quadrados de mar na área dividida. Deus seria injusto em não nos dar algum petróleo. Eu não acredito que ele nos privaria dessa maneira”. De fato, o US Geological Survey especula que há na área 9 bilhões de barris de petróleo e 21 trilhões de pés cúbicos de reservas de gás na bacia norte de Cuba. Agora que ele vem melhorando as relações com o México, Castro também está buscando fazê-lo com a União Européia. “As relações com a União Européia devem melhorar com a saída de Bush”, ele diz, confidencialmente.

“E os EUA?”, eu pergunto. “Escuta”, ele diz, “nós somos tão pacientes como os chineses. Setenta por cento de nossa população nasceu sob o bloqueio. Eu sou o mais antigo ministro das Forças Armadas da história. Quarenta e oito anos e meio até o último outubro. É por isso que estou neste uniforme e continuo a trabalhar no meu antigo escritório. No gabinete de Fidel nada foi tocado. Nos exercícios militares do Pacto de Varsóvia, eu era o mais jovem, e o que terá sido o mais velho. O Iraque é uma brincadeira de criança se comparado com o que aconteceria se os EUA invadisse Cuba”. Depois de outra taça de vinho, Castro diz, “Prevenir uma guerra é o mesmo que vencer uma. Essa é nossa doutrina”.

Com nosso jantar terminado, eu caminhei com o presidente através das portas corridas de vidro e entramos num jardim de inverno com plantas tropicais e pássaros. Enquanto bebíamos mais vinho, ele disse, “Há um filme americano – a elite está sentada numa mesa, decidindo quem será o próximo presidente. Eles olham para fora da janela, onde vêem o jardineiro. Você conhece o filme de que estou falando?”. “Being There” [Muito Além do Jardim, no Brasil], eu digo. “Sim!” Castro responde com entusiasmo, “Being There, eu gosto muito desse filme. Com os EUA, qualquer possibilidade objetiva existe. Os chineses dizem 'Em caminhos logos, você começa com o primeiro passo'. O presidente dos EUA deveria dar ele mesmo esse passo, mas sem ameaça à nossa soberania. Isso não é negociável. Podemos fazer acordos sem dizer ao outro o que fazer no interior de suas fronteiras”.

“Senhor Presidente”, eu digo, “vendo o último debate presidencial nos EUA, escutamos John McCain defender um acordo de livre comércio com a Colômbia, um país em que esquadrões da morte são notórios e onde vêm ocorrendo assassinatos de líderes de trabalhadores e que, ainda assim, continua a manter relações próximas com os EUA, tanto que a administração Bush está tentando passar esse acordo no Congresso. Como você sabe, eu acabei de vir da Venezuela que, como Cuba, a administração Bush considera inimigo nacional, ainda que, claro, compremos muito petróleo de lá. Me ocorreu que a Colômbia pode se tornar nosso parceiro estratégico na América do Sul, como Israel o é no Oriente Médio. O que você diria disso?”.

Ele pensa com cuidado sobre a pergunta, falando num tom lento e compassado. “Neste momento”, ele diz, “nós temos boas relações com a Colômbia. Mas eu diria que, se há um país na América do Sul em que há um ambiente vulnerável a isso...é a Colômbia”. Pensando na suspeita de Chávez das intenções de Bush em intervir na Venezuela, respiro fundo.

Vai ficando tarde e eu não queria deixá-lo sem perguntar sobre as alegações de violações dos direitos humanos e da suposta facilitação do narco-tráfico pelo governo cubano. Um informe de 2007 da Human Rights Watch afirma que Cuba “permanece sendo o único país na América Latina que reprime praticamente todas as formas de divergência política”. Mais ainda, que há algo como 200 prisioneiros políticos em Cuba, hoje, aproximadamente 4% deles condenados por dissenso não-violento. Enquanto aguardava os comentários de Castro, não conseguia parar de pensar na vizinha prisão norte-americana de Guantánamo e nas horrendas ofensas contra os direitos humanos que lá ocorrem.

“Nenhum país está 100% livre de abusos dos direitos humanos”, Castro me conta. Mas, ele insiste: “informes na mídia dos EUA são altamente exagerados e hipócritas”. De fato, mesmo grandes figuras dissidentes de Cuba, como Eloy Gutierrez Menoyo, reconhecem as manipulações, acusando a Secção de Interesses dos EUA de comprar o testemunho de dissidentes em dinheiro vivo. Ironicamente, em 1992 e 94, Human Rights Watch também descreveu ilegalidades e intimidações nos grupos anti-Castristas em Miami, que o escritor/jornalista Reese Erlich chamou de “violações normalmente associadas às ditaduras latino-americanas”.

Tendo dito isso, quero dizer que sou um americano orgulhoso e infinitamente consciente de que se eu fosse um cidadão cubano e escrevesse um artigo como esse sobre o governo de Cuba eu seria preso. Mais ainda, eu tenho orgulho do sistema criado pelos nossos pais fundadores que, ainda que não esteja exatamente intacto hoje, jamais foi dependente de um grande líder por época. Essas coisas permanecem em questão para os heróis românticos de Cuba e da Venezuela. Eu pensei em mencionar isso, e talvez devesse, mas eu tinha outra coisa na mente.

“Podemos falar sobre drogas?”, eu perguntei a Castro. Ele responde, “Os EUA é o maior consumidor de narcóticos no mundo. Cuba está situada diretamente entre os EUA e seus fornecedores. Isso é um grande problema para nós...Com a expansão do turismo, desenvolveu-se um novo mercado e nós lutamos contra isso. Também é dito que nós permitimos que narcotraficantes viajem através do espaço aéreo cubano. Nós não permitimos isso. Estou certo de que alguns desses aviões passam por nosso espaço aéreo. Isso se deve simplesmente à restrição econômica que faz com que não tenhamos mais um radar de baixa altitude funcionando”.

Os cubanos são nossos melhores parceiros nas guerras contra a droga e contra o terror no Caribe. São melhores inclusive que o México".

Por mais que isso soe exagerado, não o é, de acordo com o Coronel Lawrence Wikerson, um ex-assessor de Colin Powell. Wilkerson disse a Reese Erlich numa entrevista em janeiro: “Os cubanos são nossos melhores parceiros nas guerras contra a droga e contra o terror no Caribe. São melhores inclusive que o México. As forças armadas olham para Cuba como um parceiro bastante competitivo”.

Eu quero perguntar uma última vez a Castro minha questão não respondida, enquanto nossa múltipla linguagem corporal sugeria que estava chegando a hora de terminar. Já passava de uma da manhã, mas ele iniciou: “Agora”, ele diz, “você me pergunta se eu aceitaria me encontrar com [Obama] em Washington. Eu teria de pensar sobre isso. Iria discutir com todos os meus camaradas da direção. Pessoalmente, eu penso que não seria justo eu ser o primeiro a visitá-lo, porque sempre os presidentes da América Latina vão aos EUA primeiro. Mas também seria injusto ter a expectativa de que o presidente dos EUA venha a Cuba. Nós deveríamos nos encontrar num lugar neutro.

Ele faz uma pausa, deixando sua taça de vinho vazia na mesa. “Talvez pudéssemos nos encontrar em Guantánamo. Nós devemos nos encontrar e começar a resolver nossos problemas e, no fim do encontro, poderíamos dar um presente ao presidente...poderíamos levá-lo para casa com a bandeira dos EUA que tremula na baía de Guantánamo”.

Quando deixamos seu gabinete, somos acompanhados pelos assessores enquanto o Presidente Castro desce comigo ao lobby e me conduz ao carro que me esperava. Eu o agradeço pela generosidade de seu tempo. Quando meu motorista pôs o carro em marcha, o presidente bateu no vidro da janela ao meu lado. Eu o abaixei enquanto o presidente checou em seu relógio, vendo que sete horas tinham se passado desde o começo da entrevista. Sorrindo, ele disse “Vou telefonar para Fidel, agora. Posso prometer a você isso. Quando Fidel descobrir que eu passei sete horas falando com você ele terá certeza de que vai lhe dar sete horas e meia quando você retornar a Cuba”. Nós rimos e apertamos a mão em despedida.

Tinha chovido no começo da noite. Nas primeiras horas escuras, os pneus do nosso carro jorravam água sobre o calçadão húmido de uma quieta manhã de Havana, me dou conta de que a maior parte das questões básicas sobre soberania nos permitem entender substancialmente o antagonismo norte-americano contra Cuba e Venezuela, assim como contra as políticas desses países. Eles sempre tiveram só duas escolhas: serem imperfeitamente nossos ou imperfeitamente deles mesmos.

Viva Cuba, Viva Venezuela. Viva os Estados Unidos.

Quando volto à casa de protocolo, era quase duas da manhã. Meu velho amigo Fernando, imaginando que eu tivesse chegado bêbado, esperou por mim. Meus companheiros tinham tido uma noite ruim. O pobre Fernando teve de arcar com o peso da frustração deles. Eles não tinham ficado sabendo onde eu tinha ido, nem por que tinha lhes deixado para trás. E os oficiais cubanos com que eles podiam fazer contato insistiram para que eles estivessem a postos, caso um dos irmãos Castro lhes oferecesse espontaneamente uma entrevista. Assim eles perderam a última noite cubana na cidade. Depois de ter me deixado a par das coisas, Fernando foi tirar umas duas horas de sono. Eu fiquei acordado, revisando minhas notas e fui o primeiro na mesa do café da manhã, às 4:45hs. Quando Douglas e Hitch desceram as escadas, eu pus a ponta da toalha da mesa na minha cabeça, fingindo que estava com vergonha, de brincadeira. Eu acho, dadas as circunstâncias, que era um pouco cedo (não apenas com relação às horas) para testar o humor deles. A piada não funcionou. Enquanto Fernando tomou um vôo separado para Buenos Aires, nós tivemos um café da manhã e um vôo silencioso de volta ao lar doce lar.

Quando nós chegamos em Houston, eu me dei conta de que tinha subestimado o pelo duro desses dois grandes profissionais. Um gelo qualquer foi derretido. Dissemos nossos adeus, comemorando a viagem de vários dias. Nenhum deles foi malicioso para perguntar sobre o conteúdo da minha entrevista, mas Cristopher, quando foi pegar sua conexão para o leste me disse, na nossa partida: “Bem...eu acho que vamos todos lê-la”.

Sí, Se Puede!

Estava sentado num canto de minha cama com minha mulher, meu filho e minha filha, lágrimas caíndo do meu rosto, enquanto Barack Obama falava pela primeira vez como presidente-eleito dos Estados Unidos da América. Eu fechei meus olhos e comecei a ver o filme na minha cabeça. Também podia escutar a música, que muito apropriadamente era Dixie Chicks cantando uma música de Fleetwood Mac, sobre imagens montadas em baixa velocidade. Lá estavam eles: Bush, Hannity, Cheney, McCain, Limbaugh e Robertson. Eu os vi todos. E a música soava mais alto quando a imagem de Sarah Palin entrou em cena. Natalie Maines cantava docemente:

E eu vi meu reflexo nas montanhas cobertas de neve
até que a vitória acachapante me derrubou
A vitória acachapante me derrubou...(1)

(*) Sean Penn é ator e diretor de cinema

Texto publicado em The Nation

Tradução: Katarina Peixoto

(1) Em caso de interesse no complemento da peça cinematográfica imaginada por Sean Penn, pode-se ver e escutar a performance musical (sic) por ele referida via este link:http://www.youtube.com/watch?v=hGErtl9HZ7I&feature=related. N.deT.


Comentário: Numa reportagem longa e bela como esta, às vezes perdemos os detalhes. Raúl Castro afirma no meio da reportagem: "Fidel é um comunista. Eu não sou. Eu sou um social-democrata. Fidel é um marxista-leninista. Eu não sou".
Extremamente preocupante.
Acho que depois que Fidel falecer a coisa não ficará boa para Cuba. Desfalecer-se-á, como a Rússia, que era uma potência em muitos sentidos, e hoje... A influência que (ainda) possui é baseada no resto do arsenal militar que possuía do período comunista.

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