terça-feira, 17 de agosto de 2010

Maria da Conceição Tavares – 80 anos de reflexões – por Julio Cesar Macedo Amorim (Carta Capital)

A mais influente economista brasileira fala de sua chegada ao País, de seus heróis na academia e na política e dos anos FHC e Lula

Portuguesa de origem, brasileira de corpo e alma, ela é certamente a intelectual mais importante do país no último meio século. Como professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro, formou e influenciou gerações de economistas, bem como o debate econômico. Como ex-integrante do PMDB, ex-deputada federal e filiada ao PT, nunca se esquivou da militância progressista, inspirada na ideia de Darcy Ribeiro de apostar na construção de "uma democracia racial nos trópicos". Em comemoração a seus 80 anos, completados em abril, a Editora da UFMG, em parceira com a Fundação Perseu Abramo, lança, na terça 24, em Belo Horizonte, uma coletânea de artigos sobre sua obra. Escalados para analisar o legado da economista, Emir Sader, Ricardo Bielschowsky, José Carlos de Souza Braga e Maurício Borges Lemos. O livro foi organizado por Juarez Guimarães, responsável também por uma longa entrevista com ela publicada nas páginas finais. A seguir, CartaCapital reproduz os principais trechos dessa entrevista, uma panorama da vida pública de Maria da Conceição desde a sua chegada ao Brasil, em 1954. A revista encaminhou ainda três perguntas complementares à professora, referentes aos períodos de FHC e Lula no poder. As respostas aparecem em quadro separado da entrevista concedida a Guimarães.


Juarez Guimarães: Como se formou esta sua identidade de esquerda, que se mostrou tão resistente às duras provas do tempo, no contexto da ditadura salazarista? Que personalidades e episódios foram decisivos?
Maria da Conceição Tavares: A influência familiar foi decisiva. Meu pai, Fausto Tavares, era anarquista e dava asilo aos refugiados da Guerra Civil Espanhola. Do ponto de vista intelectual, a influência mais importante, em Portugal, foi a do professor Bento de Jesus Caraça, matemático de esquerda e produtor cultural das mais brilhantes enciclopédias do país. Além disso, era militante do Partido Comunista Português, ilegal, dando aulas para trabalhadores que organizavam o jornal A Voz Operária.

JG: A senhora falou, uma vez, do apelo de Darcy Ribeiro. Como ele a influenciou?
MCT: Ele foi uma figura muito importante entre os intelectuais que conheci quando cheguei ao Brasil. Ele tinha não apenas o otimismo da vontade, mas também, ao contrário da maioria, o otimismo da razão. Acreditava na criatividade do povo brasileiro, na sua complexidade, na sua capacidade de recuperação nas derrotas. Sua frase mais marcante para isso era a que ele considerava o destino do povo brasileiro na construção da nação: "vamos construir uma democracia multirracial nos trópicos".

JG: Sua formação como economista deu-se em um período em que as duas grandes tradições do pensamento econômico brasileiro, a economia política do desenvolvimento e a economia liberal, estavam formando seus campos e suas instituições. O que aprendeu e qual a sua apreensão crítica do pensamento econômico liberal brasileiro nesse período?
MCT: Da parte dos liberais, que eram maioria na escola de economia onde me formei (a Faculdade de Economia e Administração da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), o autor mais importante era Eugênio Gudin. Para mim, particularmente por seu liberalismo político, que contrastava com o seu conservadorismo econômico, foi o professor Octávio Gouvêa de Bulhões, de quem fui assistente de 1960 até sua aposentadoria, em 1978. Com ambos aprendi algumas coisas importantes do ponto de vista da construção institucional da moeda e do crédito no Brasil, algo que a esquerda até hoje tem dificuldade de manejar. Eu era "monetarista"de manhã e "estruturalista"de tarde. Para o lado estruturalista, contribuiu muito a leitura de Formação Econômica do Brasil, do mestre Celso Furtado.

JG: Como foi sua aproximação de Celso Furtado e San Tiago Dantas?
MCT: Minha vinculação ao que se pode denominar "esquerda positiva", que não anulava o meu pensamento crítico sobre o nacional-desenvolvimentismo, prende-se aos desastres sociais, que tinha verificado naquilo que se pode chamar de esquerda golpista ou, dito de outra forma, as tentativas de tomar o poder sem apoio popular amplo. Na verdade, para mim, "esquerda positiva” era toda aquela que apontava um programa reformista que incluísse reformas amplas de caráter social. Esse era o caso de Celso Furtado, mas não creio que valha o mesmo para San Tiago Dantas. No caso de Furtado, tanto na SUDENE quanto no próprio Plano Trienal, esse programa reformista era evidente. No que diz respeito ao diálogo entre cepalinos e marxistas, ele era mais fácil no Rio de Janeiro, por causa do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). Já os cientistas sociais de São Paulo, em particular da USP, tinham uma visão "marxiana"do marxismo, vale dizer, estritamente acadêmica. Nenhum deles, com exceção de Paul Singer, tinha propriamente relação com os movimentos sociais e o movimento operário. Mais do que isso, os sociólogos e politólogos paulistas eram mais weberianos do que propriamente marxistas. Depois de 1964, o diálogo entre marxistas e cepalinos avançou sobretudo na Unicamp, durante a década de 1970, com as contribuições iniciais de João Manuel Cardoso de Mello, o Capitalismo Tardio, e de Luiz Gonzaga Belluzzo, Valor e Capitalismo: Um ensaio sobre economia política.

JG: A senhora chegaria em 1964 à direção do escritório Cepal-BNDE, então seguramente o principal centro intelectual do nacional-desenvolvimentismo brasileiro. Nessa trajetória, seria possível, em um esforço sintético, identificar quais economistas críticos foram mais importantes na sua formação?
MCT: Do ponto de vista da minha formação econômica, inclusive a crítica, o economista mais importante foi Aníbal Pinto Santa Cruz, diretor do Centro Cepal-BNDE, entre 1961 e 1964, que tinha a dupla formação cepalina e marxista. Além disso, fiz contato com os economistas do BNDE (hoje BNDES) durante o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Lá conheci Ignácio Rangel, que, além de marxista, também tinha feito o curso da Cepal em Santiago e havia realizado a sua crítica ao pensamento cepalino, no que diz respeito à escassez da oferta de alimentos. Foi ele que me aconselhou a completar minha formação lendo Hilferding, o primeiro grande autor a tratar do tema do capital financeiro, usado por Lenin no seu livro sobre o imperialismo.

JG: Em depoimento à Agência Brasil, a senhora lembra os acontecimentos de 1964, o Comício da Central do Brasil, o crescimento vertiginoso da conspiração e o incêndio da UNE (União Nacional dos Estudantes). Recém nacional-brasileira, grávida, como viveu essa dramática descontinuidade? Como reestruturou sua força intelectual e existencial para o novo período da resistência que, então, se iniciava?
MCT: O golpe de 1964 bateu forte na minha vida até porque ele foi inaugurado e ganhou a sua primeira força aqui no Rio. Ver a UNE em chamas não é propriamente uma memória fácil de apagar. A duras penas, entre 1964 e 1968, consegui suportar graças à minha militância em toda a universidade brasileira. Nunca dei tanta palestra na minha vida, com exceção do período da redemocratização. Outra contribuição foi o surto da MPB, nesses anos, que também se espalhou por todas as universidades. Mas, decididamente, o que me fez superar a mágoa desse período foi o fato de ter estado no Chile entre o fim de 1968, antes do AI-5, e março de 1973. No último período do governo (Salvador) Allende, antes do golpe militar, a situação econômica e política tinha se complicado muito. A maioria dos diretores da Cepal tinha postos importantes no governo. Assim, a partir de março de 1972 até março de 1973, pedi licença na Cepal e fui colaborar, assim como outros economistas estrangeiros, entre os quais o brasileiro José Serra e o então ministro chileno da Economia Carlos Matus. Foi também um período duro, porque para nós, brasileiros, estava claro que a confiança de Allende sobre a vocação democrática dos militares era infundada.

JG: O seu caminho foi diferente, desde o início, daquele formulado no eixo Cebrap-USP, sob a liderança de FHC, de dissolução da problemática histórica do subdesenvolvimento em uma nova perspectiva das relações entre dependência e desenvolvimento. Como a senhora avalia hoje o debate sobre a dependência à luz do conceito de maior alcance histórico do subdesenvolvimento?
MCT: o debate sobre a dependência decorre da imprecisão do próprio conceito. Basta ler as obras de Cardoso e Falletto (1970), Ruy Mauro Marini (1973), Theotonio dos Santos (1972) e André Gunder Frank (1967). Este último (Capitalism and Underdevelopment in Latin America) é apenas uma versão marxistizada da visão de Celso Furtado sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento. O primeiro (Dependência e Desenvolvimento na América Latina), de FHC e Enzo Faletto, é uma colagem sociológica, de tipo weberiano, sobre as classes dominantes em cima de um modelo centro-periferia, basicamente cepalino. Já o conceito de subdesenvolvimento é historicamente referido ao desenvolvimento coetâneo dos países centrais e periféricos. Como se trata de um modelo histórico-estrutural, o próprio Furtado admite que não pode ser confundido com atraso e modernização, já que se reproduz tanto no estágio agrário-exportador quanto no estágio mais avançado de substituição de importações. O livro fundamental do mestre Furtado vai, portanto, mais fundo e mais além do que a simples noção de dependência, seja ela econômica, financeira ou cultural.

JG: Após oito anos de governo Lula, em que medida avançou-se na republicanização do País?
MCT: Na minha opinião, o governo Lula foi o que mais avançou na republicanização do Brasil, porque a sua luta fundamental é por incluir os excluídos nos seus direitos econômicos, sociais e políticos. Avançou muito na questão do trabalho, mas relativamente pouco na questão da terra. A luta por tornar republicano e democrático o próprio Estado brasileiro ainda está no começo. E quanto ao rentismo financeiro, sobretudo nas suas formas de arbitragem de movimentos livres de capitais internacionais, isso praticamente não avançou. Essa é uma herança do neoliberalismo iniciado no mundo na década de 1970 e tardiamente, mas de forma perversa, no Brasil, que deixou uma herança mundial responsável inclusive pela recente crise mundial.

JG: Durante dez anos a senhora foi parte da direção executiva nacional do PMDB. Como foi essa experiência e que balanço faz dela?
MCT: É difícil fazer um balanço desses dez anos, mas posso ressaltar duas coisas. Primeiro, ter lidado de perto com uma das figuras políticas mais interessantes e competentes que me foi dado conhecer, Ulysses Guimarães. Em segundo lugar, o fato de que, durante dez anos, conheci por dentro a classe política brasileira que se reunia numa ampla frente democrática, mas cujas características de participação política não eram particularmente agradáveis. A começar pelo fato de que, na sua maioria, se guiavam mais pelo seu interesse privado do que pelo bem público. Assim, embora o líder político do PMDB não possa ser posto em tela de juízo, a expressão regional do partido era muitas vezes paroquial na luta parlamentar. A visão de mundo e sua capacidade de identificar um projeto para o Brasil eram francamente limitadoras em relação ao que o velho Ulysses e seus assessores, entre os quais me incluo, tínhamos proposto como programa partidário, sobretudo, em 1982. Os programas nunca foram discutidos a sério em qualquer instância partidária, a não ser em alguns poucos aspectos setoriais.

JG: Por que a senhora entrou no PT e qual a sua participação na formação do novo programa que ali estava se construindo?
MCT: Entrei no PT para continuar a luta política pelos meus sonhos de um Brasil novo. Minha participação na formação dos programas que foram se gestando de 1994 em diante foi particularmente intensa no período 1994-2002, quando Lula, ademais de nosso candidato permanente, dirigia o Instituto da Cidadania. Uma ONG na qual participavam ativamente a maioria dos intelectuais de esquerda do Brasil e boa parte dos dirigentes partidários e dos líderes sindicalistas do próprio PT. Foi um período muito rico, uma espécie de universidade aberta para todos. O "aluno" que mais participava, com atenção extrema e perguntas provocadoras, era, sem dúvida, o próprio Lula. Suas ideias a respeito do Brasil e do mundo, sua memória e sua inquietação permanente fazem dele o maior intelectual orgânico do povo brasileiro.

JG: A senhora foi deputada federal. Quais os momentos mais marcantes do mandato?
MCT: Infelizmente, o meu mandato popular foi, sobretudo, de resistência às políticas de desmantelamento da Constituição de 1988 de todo o período FHC. Não fosse a camaradagem com a bancada do próprio PT e do PCdoB, teria "capotado" durante esse período. A nossa transição democrática, na verdade, só começou para valer, no aspecto social, no governo Lula, já que a bancada do PT sempre foi minoritária no Congresso Nacional. Em um regime presidencialista do tipo brasileiro, o peso do chefe do Estado para o destino do nosso país ganha uma importância desmedida. Espero, por isso, que ganhemos as próximas eleições da República para continuar aprofundando a transição democrática e republicana.

JG: Que esperanças novas alimentam hoje sua vida?
MCT: Alimento as mesmas esperanças que tive por inspiração do velho Darcy Ribeiro e pelo amor que desenvolvi pelo povo brasileiro. A saber: "A construção de uma democracia racial nos trópicos". O fato de minha militância recente ter ficado mais branda decorre apenas de que já estou um pouco mais cansada ao chegar aos meus 80 anos.

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