Por Renato Janine Ribeiro
Sou um dos signatários dessa lei de origem popular, uma das raras a terem procedido dos cidadãos e não dos parlamentares. Estava no encontro anual do Instituto Ethos, em 2009, quando o ex-vereador Chico Whitaker me trouxe o projeto e eu o assinei. Acho muito bom, mas é claro que tenho dúvidas, especialmente quanto à retroatividade das punições.
Agora, é bom saber de um efeito pelo menos curioso da lei: graças a ela, a família do senador Sarney está ou estará liberada de dois adversários de peso, nos dois Estados em que tem influência. Jackson Lago, o governador eleito em 2006 e cassado pelo TSE para ser substituído pela derrotada Roseana Sarney, ficará fora do pleito maranhense, se a lei for aplicada. João Capiberibe, o adversário de Sarney no Amapá, cassado por ter dado menos de trinta reais a uma eleitora, também ficará fora. Vejam que mesmo uma lei altamente moral pode ter efeitos que muita gente não desejaria.
Por Idelber Avelar
Caro Renato:
Com todo o respeito, só mesmo com muita ingenuidade para não ter percebido que o resultado desse projeto demagógico, autoritário e flagrantemente inconstitucional não seria exatamente este. É isso que acontece quando confundimos moral com política. Leis não devem ser promulgadas segundo o critério de serem "morais", mas segundo o efeito que produzirão no mundo real. E, de acordo com esse critério, só um completo desconhecimento das relações entre o Judiciário brasileiro e a política pôde levar alguém, de boa fé, a acreditar que a "moralização da política" seria o resultado do projeto "Ficha Limpa" (uso aspas porque, segundo a Constituição brasileira, ninguém tem "Ficha Suja" até trânsito em julgado de sentença penal condenatória).
Corrijamos algumas coisas.
Primeiro, é enganoso dizer que o projeto tem origem "popular", se por esta palavra entendemos o "povão", a massa de trabalhadores que forma a imensa maioria do Brasil. Em inúmeros contatos com sindicatos, associações de bairro, de empregadas domésticas, de sem-terra etc., eu jamais vi nenhuma instituição das classes populares defender esse projeto. É nitidamente um projeto da classe média alta, base de outras iniciativas moralistas como o "Cansei" e o "Não reeleja ninguém". É verdade que ela veio de cidadãos. Dizer que é de "origem popular" é enganoso.
Segundo, o projeto é flagrantemente inconstitucional. A Constituição brasileira, no Artigo 5o, inciso LVII, diz claramente: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Ora, a menos que a expressão "trânsito em julgado" tenha passado a significar outra coisa, o "Ficha Limpa" – ao determinar a inelegibilidade de alguém por condenação em órgão colegiado anterior à instância final – está em patente contradição com a Carta da República. Pois se alguém foi condenado em instância colegiada anterior à final, não pode ainda ser considerado culpado. E se não é culpado, não pode ter nenhum direito tolhido. É simples, não? Todos os membros do Supremo sabem disso, mas a gritaria moralista foi de tal ordem que nem mesmo o Supremo – imune a qualquer represália política – teve coragem de encarar o desgaste de detê-lo.
Terceiro, os efeitos reais. Qual é o desconhecimento da realidade do Judiciário brasileiro que nos permitiria imaginar que os efeitos, por exemplo, no Maranhão, não seriam exatamente estes? Alguém aqui quer dar ao TJ-MA o direito de decretar quem é elegível e quem não é no estado? Um vereador do Psol foi impedido de se candidatar em SP por ter a "ficha suja". Seu crime? Ter usado um automóvel da Câmara para auxiliar um ato do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, um uso claramente legítimo do mandato. Enquanto isso, Maluf continua com a "Ficha Limpa". Vocês realmente não sabiam que isso ia acontecer? Gritar "contra tudo o que está aí", ao estilo do movimento Cansei, é bem fácil que pensar politicamente, né?
Sobre esse execrável projeto, vale a pena ler os textos do jornalista gaúcho Marco Aurélio Weissheimer (http://bit.ly/bTAbhl) e do penalista mineiro Túlio Vianna (http://bit.ly/9NdmGW) e, quem sabe, começar a pensar num pedido de desculpas à sociedade brasileira.
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