terça-feira, 3 de abril de 2012

O caso Demóstenes Torres e as raposas no galinheiro – por Maria Inês Nassif (Carta Maior)

O rumoroso caso Demóstenes Torres (DEM-GO) não é apenas mais um caso de corrupção denunciado pelo Ministério Público. É uma chance única de reavaliar o que foi a política brasileira na última década, e de como ela – venal, hipócrita e manipuladora – foi viabilizada por um estilo de cobertura política irresponsável, manipuladora e, em alguns casos, venal. E hipócrita também.

Teoricamente, todos os jornais e jornalistas sabiam quem foram os arautos da moralidade por eles eleitos nos últimos anos: representantes da política tradicional, que fizeram suas carreiras políticas à base de dominação da política local, que ocuparam cargos de governos passados sem nenhuma honra, que construíram seus impérios políticos e suas riquezas pessoais com favores de Estado, que estabeleceram relações profícuas e férteis com setores do empresariado com interesses diretos em assuntos de governo.

Foram políticos com esse perfil os escolhidos pelos meios de comunicação para vigiar a lisura de governos. Botaram raposas no galinheiro.

Nesse período, algumas denúncias eram verdadeiras, outras, não. Mas os mecanismos de produção de sensos comuns foram acionados independentemente da realidade dos fatos. Demóstenes Torres, o amigo íntimo do bicheiro, tornou-se autoridade máxima em assuntos éticos. Produziu os escândalos que quis, divulgou-os com estardalhaço. Sem ir muito longe, basta lembrar a “denúncia” de grampo supostamente feita pelo Poder Executivo no gabinete do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, então presidente da mais alta Corte do país. Era inverossímil: jamais alguém ouviu a escuta supostamente feita de uma conversa telefônica entre Demóstenes, o amigo do bicheiro, e Mendes, o amigo de Demóstenes.

Os meios de comunicação receberam a suposta transcrição de um grampo, onde Demóstenes elogia o amigo Mendes, e Mendes elogia o amigo Demóstenes, e ambos se auto-elegem os guardiões da moralidade contra um governo ditatorial e corrupto. Contando a história depois de tanto tempo, e depois de tantos escândalos Demóstenes correndo por baixo da ponte, parece piada. Mas os meios de comunicação engoliram a estória sem precisar de água. O show midiático produzido em torno do episódio transformou uma ridícula encenação em verdade.

A estratégia do show midiático é conhecida desde os primórdios da imprensa. Joga-se uma notícia de forma sensacionalista (já dizia isso Antonio Gramsci, no início do século passado, atribuindo essa prática a uma “ imprensa marrom”), que é alimentada durante o período seguinte com novos pequenos fatos que não dizem nada, mas tornam-se um show à parte; são escolhidos personagens e conferido a ele credibilidade de oráculos, e cada frase de um deles é apresentada como prova da venalidade alheia. No final de uma explosão de pânico como essa, o consumo de uma tapioca torna-se crime contra o Estado, e é colocado no mesmo nível do que uma licitação fraudulenta. A mentira torna-se verdade pela repetição. E a verdade é o segredo que Demóstenes – aquele que decide, com seus amigos, quem vai ser o alvo da vez – não revela.

Convenha-se que, nos últimos anos, no mínimo ficou confusa a medida de gravidade dos fatos; no outro limite, tornou-se duvidosa a veracidade das denúncias. A participação da mídia na construção e destruição de reputações foi imensa. Demóstenes não seria Demóstenes se não tivesse tanto espaço para divulgação de suas armações. Os jornais, tevês e revistas não teriam construído um Demóstenes se não tivessem caído em todas as armadilhas construídas por ele para destruir inimigos, favorecer amigos ou chantagear governos. Os interesses econômicos e ideológicos da mídia construíram relações de cumplicidade onde a última coisa que contou foi a verdade. (grifo meu)

Ao final dos fatos, constata-se que, ao longo de um mandato de oito anos, mais um ano do segundo mandato, uma sólida relação entre Demóstenes e a mídia que, com ou sem consciência dos profissionais de imprensa, conseguiu curvar um país inteiro aos interesses de uma quadrilha sediada em Goiás.

Interesses da máfia dos jogos transitaram por esse esquema de poder. E os interesses abarcavam os mais variados negócios que se possa fazer com governos, parlamentos e Justiça: aprovação de leis, regras de licitação, empregos públicos, acompanhamento de ações no Judiciário. Por conta de um interesse político da grande mídia, o Brasil tornou-se refém de Demóstenes, do bicheiro e dos amigos de ambos no poder.

Não foi a mídia que desmascarou Demóstenes: a investigação sobre ele acontece há um bom tempo no âmbito da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Nesse meio tempo, os meios de comunicação foram reféns de um desconhecido personagem de Goiás, que se tornou em pouco tempo o porta-voz da moralidade. A criatura depõe contra seus criadores.

Comentário – por Luzete (blog do Nassif)

Maria Inês, parabéns.

Você, conclui definitivamente, ao constatar "Demóstenes não seria Demóstenes se não tivesse tanto espaço para divulgação de suas armações."

Exatamente! Demóstenes, por princípio, jamais poderia se apresentar como paradigma de qualquer projeto ético para o país. Digo isto, porque o partido que o acolhia era a UDN (ops, ARENA! DEM, tudo a mesma coisa! alguns deles se bandearam para outras siglas, mas a essência é a mesma) e este partido, jamais, jamais, pode ou poderia ser exemplo de nada, senão do atraso nacional, do preconceito, das coisas urdidas em surdina, na caserna, dos conluios que explicam fortunas pessoais inimagináveis. Berço da corrupção, mal tão difícil de ser superado, porque, parece, criou raízes que se estendem para todos os ramos da vida política e civil do país, incluindo o judiciário e, sobretudo, a imprensa.

Esta imprensa, tal como você sugere, é justamente, aquela que legitimava as verdades desta turma. Era ela que funcionava como caixa de ressonância dos desejos de uma quadrilha que, durante décadas, assaltou o país. É ela que está doente. É ela que está em crise, porque não pode mais impor as verdades que lhe interessam e que, no balanço que se faz da história, pode ser responsabilizada por muito do atraso cultural e moral que ainda invade certos setores da vida nacional.

Os tempos mudaram. Estão mudando. Sou otimista.

Comentário

Eu, nem tanto. Por pouco, a associação em 2005 de alguns destes que agora estão vendo “a casa cair” (excetuando Policarpo Jr., que não sofre as consequências óbvias de sua ação, pois o corporativismo da imprensa marrom não permite que uma saudável depuração ocorra em seu meio) não derruba o presidente Lula. Há tanto o que progredir que às vezes até desanima.

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