A decisão do Supremo sobre cotas marca um momento histórico. A mais alta corte de Justiça do país admitiu não só que existem brasileiros tratados como cidadãos de segunda classe, mas que eles têm direito a um tratamento especial para vencer a desigualdade.
A votação unânime mostrou, do ponto de vista jurídico, que as cotas são um projeto compatível com a Constituição.
Do ponto de vista histórico, é a decisão mais relevante sobre o assunto desde a Lei Áurea. Pela primeira vez o Estado brasileiro não se limita a punir o racismo, como se faz desde os anos 50, mas pretende tomar medidas efetivas para beneficiar a população negra e ajudá-la a vencer uma perversidade histórica. Sai de uma perspectiva formal para assumir as funções concretas de combater a desigualdade na vida cotidiana.
A decisão mostrou, do ponto de vista político, um abismo entre nossa elite econômica e política e o conjunto do país.
O STF uniu-se para defender as cotas. Ministros chamados conservadores e progressivas responderam, cada um à sua maneira, às alegações dos adversários das cotas.
Embora tenha usufruído de um espaço imenso nos meios de comunicação, no placar do Supremo o combate às cotas ficou ainda menor do que o partido que a patrocinou, o DEM, cada vez mais insignificante na definição dos rumos do país. Mas um partido político pode ser desfeito, incorporado a outro, reformado e assim por diante.
Mas o que faz uma elite que não consegue compreender para onde vai o país onde ocupa o topo da sociedade, dirige a economia e tem uma influencia importância na ação do Estado, mesmo que o governo não esteja nas mãos de seus representantes prediletos?
Essa é a pergunta.
Ficou claro que, do ponto de vista dos ministros, nos últimos anos o Brasil foi inundado por argumentos retóricos, falsas questões, ginásticas verbais e até teses desqualificadas demais para serem levadas a sério.
Vários ministros ensinaram aos interessados que a principal tese contra as cotas – de que elas ameaçam a igualdade entre os cidadãos – é puro improviso jurídico.
Para começar, vários grupos sociais diferenciados – mulheres, crianças, deficientes físicos – têm direito a preferências negadas aos demais. Ninguém, nunca, achou ruim.
Vários ministros lembraram Ruy Barbosa, que ensinou que é preciso tratar os iguais com igualdade e os desiguais com desigualdade.
Cezar Peluso explicou que só é possível falar em disputa pelo “mérito individual” para ingresso nas universidades públicas entre pessoas que competem em situação de igualdade ou pelo menos “assemelhada.”
Marco Aurélio Mello disse que o combate às cotas se alimenta de uma visão preconceituosa da própria Constituição. Lembrou que dez anos de experiência com o sistema em nada contribuíram para transformar o Rio de Janeiro num estado “racialista”, um dos fantasmas originalíssimos dos adversários, que querem nos fazer acreditar que o racismo brasileiro teria início com as políticas de ação afirmativa – e não seria fruto de um passado perverso, onde a escravidão foi abolida sem que se tomassem medidas coerentes para integrar os negros ao conjunto da sociedade.
Celso Mello lembrou que o país se libertava, naquela votação, do pensamento que havia criado a “ideia, ou mito, da democracia racial” de Gilberto Freyre, para aderir a visão do professor Florestan Fernandes, autor do clássico A Integração do Negro na Sociedade de Classes, e seu aluno, Fernando Henrique Cardoso.
Celso Mello ainda homenageou uma militante aguerrida do movimento negro, Edna Roland, uma das principais ativistas no combate ao racismo.
Mencionando ironicamente um fato ocorrido durante a ditadura militar, Celso Mello lembrou que, ao ser questionado em organismos internacionais sobre medidas que havia tomado para enfrentar a discriminação racial, o governo dos generais escreveu a seguinte resposta: “não há medidas a relatar porque não há discriminação racial no Brasil.”
Essa feia realidade começou a se transformar em entulho após a decisão do Supremo.
O Brasil está mudando e tem gente que não percebe. Vários ministros falaram sobre a necessidade de modificar e ajustar a política de cotas, em particular na forma que ela assumiu na Universidade de Brasília, que foi o foco do julgamento. Este é o debate para o futuro.
A lição de ontem foi vencer o passado, mostrando que não é possível manter eternamente um sistema de opressão e preconceito que prejudica e humilha 51% dos brasileiros.
Quem queria, de verdade, que a desigualdade fosse vencida por idéias clássicas que nunca foram implementadas – como escolas melhores nos bairros pobres — deve reconhecer que o tempo histórico para iniciativas convencionais já passou. Foram décadas e décadas de promessas jamais cumpridas.
Também cabe perguntar: se as escolas públicas ficaram piores até mesmo em bairros de classe média, por que se deveria levar a sério a promessa de ocasião de que irão melhorar na periferia?
Vamos combinar: seria até falta de respeito pedir aos cidadãos negros que aguardassem o tempo histórico de várias gerações em nome da promessa de que, um dia, seus bisnetos e tataranetos quem sabe poderiam disputar um lugar ao sol como os demais brasileiros.
Seria lhes pedir — olha o tamanho da indignidade — que aceitassem a posição subalterna por muitos e muitos anos ainda, concordassem com a cidadania de segunda classe em nome do conforto alheio. Em resumo: o que se queria é seguissem concordando com a própria discriminação.
Isso é até possível sob uma ditadura. Mas é difícil sob uma democracia, onde os homens e mulheres não são iguais mas, a cada quatro anos, cada um vale um voto. Essa é, no fundo, a grande mensagem da votação. Quem não entendeu, não entendeu o país.
Comentário: acho que o Ali Kamel acabou deixando escapar este texto...
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