Exigência Neoimperial
Como é publicamente sabido, sou ligado ao PT desde os primeiros anos de existência do partido. Esta declaração seria desnecessária se os argumentos do debate público fossem julgados pelo seu conteúdo e não pelo sectarismo adesista que não quer reconhecer o debate democrático e a legitimidade das opiniões dos outros. O fato de alguém militar ou simpatizar com um partido não o isenta do juízo crítico acerca dos rumos partidários ou de governos integrados por membros desse partido. O bem e o interesse de um povo e de um país estão acima dos bens e dos interesses dos partidos.
O fato é que o governo Dilma vem errando em muitas frentes. E quanto menos tem a oferecer para garantir os direitos dos cidadãos, mais parece flertar com o conservadorismo. A aproximação da copa do mundo, que vem se revelando cada vez mais uma escolha errada para o Brasil e uma falta de noção de prioridades para o povo, parece aumentar o risco desse flerte.
O governo parece ter sido tomado por uma fúria legiferante visando regulamentar e criar travas às manifestações populares. Mas não é só ao Congresso que o governo dirige seus esforços legislativos. Em dezembro passado, o Ministério da Defesa publicou a Portaria N° 3.461/MD, que trata da “Garantia da Lei e da Ordem”. A Portaria se remete ao Artigo 142 da Constituição de 1988, que prevê o uso das Forças Armadas na garantia da “Lei e da Ordem” internas, o que vale dizer, em funções de segurança pública. Convêm lembrar que, na Constituinte, os parlamentares do PT e outros parlamentares progressistas lutaram contra a possibilidade de uso das Forças Armadas para fins de segurança interna, pois ela era de clara inspiração no regime militar.
Mais tarde, na medida em que a Guerra Fria caminhava para seus estertores com o fim da União Soviética, os Estados Unidos, a partir da concepção imperial dos neoconservadores que se articularam nos governos de Bush pai e de Bush filho, pressionaram os países periféricos para que direcionassem as Forças Armadas para as funções de segurança interna. As próprias Forças Armadas dos EUA passariam a desempenhar funções técnicas de polícia, garantindo a Paz e a Lei e a Ordem no mundo, numa clara visão imperial de dissolução das idéias de fronteiras e de interesses nacionais. As Forças Armadas dos países periféricos deixariam de ter a conotação de forças armadas nacionais destinadas à defesa do Estado e do território nacional frente a ameaças externas para se engajarem na vontade imperial de garantir a Lei e a Ordem interna ou em outras partes do mundo onde a Pax americana, elevada ao estatuto de Pax mundial, fosse ameaçada. Decorreram daí os conceitos de “guerra preventiva” e de “guerra ao terror”, que autorizam as forças de segurança dos EUA a intervirem em qualquer lugar do mundo para garantir a Lei e a Ordem.
Em que pese o fracasso dos esforços conservadores na afirmação de uma ordem neoimperial, as tentativas de destinação das Forças Armadas em países periféricos para funções de garantia da Lei e da Ordem internas não foram afastadas. Agora a portaria do Ministério da Defesa confirma essas funções. Esta Portaria, nos seus pressupostos e nos seus objetivos, se inspira claramente na Lei de Segurança Nacional do regime militar.
A Portaria do Ministério da Defesa
Como se sabe, a Lei de Segurança Nacional do regime militar voltava-se para a segurança interna e articulava-se em torno da necessidade de combater o “inimigo interno”. O parágrafo primeiro do Artigo 3° diz o seguinte: “A segurança interna, integrada na segurança nacional, diz respeito às ameaças ou pressões antagônicas, de qualquer origem, forma ou natureza, que se manifestem ou produzam efeito no âmbito interno do país”. A Portaria substitui o conceito de “inimigo interno” pelo de “forças oponentes”. Define: “Forças Oponentes (F Opn) são pessoas, grupos de pessoas ou organizações cuja atuação comprometa a preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Na sequência define-se o que se entende por ameaça: “Ameaça são atos ou tentativas potencialmente capazes de comprometer a ordem pública ou a incolumidade de pessoas e do patrimônio praticados por F Opn previamente identificadas ou pela população em geral”.
É preciso perceber que a definição de “ameaça” assume todo o viés dos regimes autoritários: não apenas organizações e grupos representam ameaças, mas a própria população em geral. Aqui a oposição é clara: trata-se de proteger o Estado contra a sociedade. A sociedade (força oponente), representa uma ameaça potencial à ordem pública – prerrogativa exclusiva do Estado. Nas “Considerações Iniciais” da Portaria se diz que as Operações de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO) são operações de “não guerra”, mas se reconhece que podem, “em circunstâncias especiais, envolver o uso da força de forma limitada, podendo ocorrer tanto no ambiente urbano quanto rural”. Isto equivale dizer que poderão ser feitas operações de guerra limitada.
Mais adiante, a Portaria afirma que deverá ser usada a dissuasão para evitar confrontos entre as Operações de Garantia da Lei e da Ordem e as Forças Oponentes. Mas acrescenta que se a dissuasão não funcionar e as condições o permitirem “a tropa deverá fazer uso progressivo da força”. A Portaria prevê ainda o emprego de operações de inteligência e contrainteligência, emprego da comunicação social e de operações psicológicas.
A portaria afirma que em Operações de Garantia da Lei e da Ordem não existe a caracterização de “inimigo” na forma clássica das operações militares. E neste ponto existe uma definição mais clara do que sejam as Forças Oponentes:
“a) movimentos ou organizações;
b) organizações criminosas, quadrilhas de traficantes de drogas, contrabandistas de armas e munições, grupos armados etc;
c) pessoas, grupos de pessoas ou organizações atuando na forma de segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos, entidades, instituições, organizações ou em OSP, provocando ou instigando ações radicais e violentas; e
d) indivíduos ou grupo que se utilizam de métodos violentos para a imposição da vontade própria em função da ausência das forças de segurança pública policial”.
O que fica claro é que qualquer movimento social ou até mesmo partidário poderá ser enquadrado como Força Oponente. Chama a atenção também o que a Portaria entende o que sejam ameaças:
“a) ações contra realização de pleitos eleitorais afetando a votação e a apuração de uma votação;
b) ações de organizações criminosas contra pessoas ou patrimônio incluindo os navios de bandeira brasileira e plataformas de petróleo e gás na plataforma continental brasileiras;
c) bloqueio de vias públicas de circulação;
d) depredação do patrimônio público e privado;
e) distúrbios urbanos;
f) invasão de propriedades e instalações rurais ou urbanas, públicas ou privadas;
g) paralisação de atividades produtivas;
h) paralisação de serviços críticos ou essenciais à população ou a setores produtivos do País;
i) sabotagem nos locais de grandes eventos; e
j) saques de estabelecimentos comerciais”.
O destaque aqui vai para as letras c, d, e, f, g, h e j. Em tese, a Portaria entende que é possível empregar as Forças Armadas em protestos, quebra-quebras, conflitos urbanos, invasões e ocupações mesmo em aeras privadas e greves. Basta que haja um entendimento de que as forças policiais não são capazes de enfrentar esses conflitos e, a partir disto, por decisão da presidência da República, ou mediante uma requisição até mesmo demandada por um governador, para que ocorra uma militarização de conflitos sociais inerentes a qualquer processo democrático. A Portaria merece uma análise mais aprofundada que foge ao âmbito deste artigo. Mas o que fica claro é que ela resvala para uma perigosa possibilidade militarização dos conflitos sociais. Conflitos e movimentos sociais que precisam ganhar as ruas para conquistar direitos, dada a impermeabilidade e a carência de legitimidade das instituições e dos partidos. Se isto ocorrer, a democracia brasileira assumirá um forte contorno repressivo.
Aldo Fornazieri – Cientista Político e Professor da Escola de Sociologia e Política.
Comentário
Para quem acha que existe alguma coisa de esquerda no governo Dilma, um aviso: desistam. O caminho não passa pelo PT, nem pela Dilma, muito menos por Aécio, Marina, Joaquim Barbosa e Eduardo Campos. São tudo farinha do mesmo saco.
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