Maquiavel, provavelmente, foi o autor que mais chamou a atenção sobre o caráter paradoxal do poder (e do Estado e da política). A visão que se tem do poder não só é influenciada pelos interesses dos sujeitos políticos ativos, mas também pelo lugar em que o sujeito ou o analista se situam. O poder visto pelo ângulo de mirada das ruas e praças aparece de uma forma, olhando de dentro dos palácios, aparece de outra; visto de dentro dos partidos e do sistema político aparece com alguns contornos, analisado a partir da sociedade, esses contornos são diversos daqueles. Os paradoxos não se esgotam aí: o partido do governo verá o poder de uma forma e o partido da oposição o verá de forma oposta. O mesmo fenômeno acontece com os analistas e estudiosos do poder. O debate em torno do poder, hoje, apresenta duas grandes teses: Para uns, nos últimos tempos, o poder apresenta fortes tendências de concentração; para outros, o poder estaria se diluindo, se dissipando e se desconcentrando. Para escrever este artigo, tomo como representantes da primeira tese Bennett Harrison e Richard Sennet, e como representante da segunda tese, Moisés Naím.
Concentração sem centralização
Para os representantes da primeira tese, a afirmação de que as organizações em rede desconcentram o poder é uma afirmação falsa. Os novos sistemas de informação colocariam nas mãos dos altos comandos administrativos, privados ou públicos, um quadro tão abrangente de informações que lhes permite tomar decisões sem negociá-las com estruturas hierarquizadas de poder. O fim da estrutura piramidal de poder, inerente à sociedade industrial, fez com que o poder perdesse reflexibilidade. Ou seja, antes, o poder descendia de forma negociada com as camadas intermediárias de comandos e controles, chegando até a base, que também se pronunciava sobre as ordens. Desta forma, o poder se refletia de volta, de forma ascendente, num sistema de conflitos que provocava negociações e acordos.
A perda da reflexibilidade do poder faz com que hoje ele emane de um centro invisível e, de modo geral, não localizável, atenuando o conflito e bloqueando a negociação. Em grande medida, a perda do poder dos sindicatos e de outras estruturas representativas do trabalho e de grupos sociais está relacionada a este processo da redução da reflexibilidade do poder. Nesta nova estrutura, sem hierarquias, as relações são cada vez mais desiguais entre quem decide e quem executa ou opera. As formas de controle são as mais variadas: metas de produção ou de lucro, geralmente inatingíveis, controle dos fornecedores a partir das exigências unilaterais das empresas-líderes de um conglomerado produtivo, etc.
A dominação do alto comando teria duas características principais: seria forte e informe. Forte, porque o alto comando decida o que fazer. Aos nódulos e ilhas da rede caberia apenas decidir sobre o como fazer. É nisto, precisamente, que reside a não centralização. A dominação é informe porque não tem mais a visibilidade de uma forma como, por exemplo, de pirâmide. Ela é uma ordem que se propaga na rede sem que possa ser contestada. Neste sentido, a dominação é também impessoal, algo que alguns estudiosos chamam de poder sem autoridade. O poder com autoridade implica a presença da pessoalidade do poderoso e do caráter reflexivo do poder. Já o poder em rede, prescinde da pessoalidade e este é um forte elemento da sua concentração.
O fim do poder
A segunda tese, sustentada por Naím e por outros autores é a de que o poder está se degradando através de um movimento de dispersão que expressa o desafio de novos atores contra os velhos e tradicionais atores do poder como o Estado, governos, exércitos, partidos, sindicatos, etc. Os atores tradicionais enfrentariam dificuldades crescentes acerca de sua capacidade de lidar com seu poder e o que fazer com ele. O poder estaria transitando também das mãos “daqueles que têm mais força bruta para aqueles que têm mais conhecimento, dos países do norte para os países do sul, do Ocidente para o Oriente, dos velhos gigantes corporativos para mais jovens e ágeis, dos ditadores aferrados ao poder para o povo que protesta em praças e ruas... dos homens para as mulheres e dos mais velhos para os mais jovens”, diz Naím.
A tese é uma meia verdade e, dependendo do lugar de se a olha e dados os paradoxos e ambiguidades do poder ela se torna meia mentira ou até mesmo uma mentira completa. Em primeiro lugar, é preciso observar que o caráter do poder sempre foi mutante. Ele nunca permaneceu concentrado em Roma, em Londres ou em qualquer outro lugar. Também não haverá de permanecer eternamente concentrado em Washington. Da mesma forma, a Shell, o Wal-Mart e a Exxon Mobil não deverão permanecer para sempre no topo da lista das maiores empresas do mundo. O fato de o poder ser mutante não significa, necessariamente, que ele esteja se degradando ou dispersando. No nosso tempo, dada a velocidade das mudanças dos acontecimentos, imprimida pelas forças dinâmicas da economia e da política, pode ocorrer a falsa impressão de que o poder se degrada.
Ambiguidades do poder
Poder político e poder econômico não são exatamente iguais. Eles podem se somar ou não. Nos regimes autocratas, incluindo os comunistas, eles se somam. No capitalismo, os graus de confluência dos dois poderes são variáveis. É certo que nos regimes democráticos é mais difícil concentrar o poder econômico e somá-lo ao poder político. Outro aspecto que precisa ser levado em conta é que quanto mais aumenta a riqueza da humanidade, quanto mais aumenta o número de pessoas no mundo e quanto mais complexas se tornam as sociedades, mais aumenta o estoque de poder e mais se exige poder para que possa haver sistemas de coordenação, visando evitar a anomia e o caos.
As evidências existentes hoje apontam mais para a concentração de poder do que pela sua degradação. Neste sentido, a tese da concentração do poder sem sua centralização parece mais correta. Se olharmos para o lado do poder econômico, das 100 maiores economias do mundo mais de 50% são empresas. Nos últimos anos, a tendência deste indicador é a de aumentar e não a de diminuir.
Acrescente-se que um pouco menos de 1% das pessoas concentra 41% da riqueza mundial. A maior parte dessas pessoas está nos Estados Unidos e na Europa. Embora o número de bilionários chineses e asiáticos possa crescer isto não significará necessariamente a desconcentração da riqueza mundial.
O poder político também parece ter se concentrado, em dois sentidos. Em termos globais, os Estados Unidos têm hoje mais poder e não menos poder em relação ao período da Guerra Fria. É a única superpotência com capacidade de operação militar, política e diplomática global. O fim da URSS pode ter representado a descentralização de parte do poder que antes estava mais centralizada em dois polos. Assim, hoje existem mais atores significativos globais e não apenas dois. Neste sentido, a definição de Samuel Huntington, de que o poder é unimultipolar, parece continuar válida. A forma como os Estados Unidos jogarão com este poder – se é mais branda (soft) ou mais dura (hard) dependerá das circunstâncias e necessidades de cada situação.
Do ponto de vista interno das democracias, o poder também se concentrou. A relação de representação deixou de ser fluida na medida em que o representado perdeu seu poder de barganha com o representante. A relação negocial das democracias se enfraqueceu tanto do ponto de vista político, quanto do ponto de vista econômico, na relação capital-trabalho. Os sindicatos e os movimentos sociais perderam poder, seja em relação ao Estado, seja em relação ao capital. As democracias se tornaram democracias do grande capital.
A concentração do poder econômico e político e o enfraquecimento das democracias enquanto um sistema de mediações e negociações com vistas a produzir equilíbrios está deslocando o embate e o conflito para uma nova arena. Antes a arena principal eram as instituições e os parlamentos. Cada vez mais, a arena vem sendo as praças e as ruas. O poder do capital, das autocracias e das democracias capturadas vem se tornando cada vez mais duro. Será somente neste embate das ruas e das praças que poderá emergir uma nova equação do poder capaz de torná-lo mais desconcentrado e mais equilibrado.
Aldo Fornazieri é Cientista Político e Professor da Escola de Sociologia e Política
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